quarta-feira, 3 de setembro de 2014

7 Dias Depois - Quem é você, Alasca?

PASSEI O DIA SEGUINTE NO QUARTO, jogando futebol americano com o som da tevê desligado, ao mesmo tempo incapaz de não fazer nada e incapaz de fazer qualquer coisa por muito tempo. Era o dia de Martin Luther King, nosso último dia de férias antes de as aulas recomeçarem, e a única coisa em que eu conseguia pensar era que eu a tinha matado. O Coronel me fez companhia pela manhã, mas depois resolveu ir para o refeitório comer bolo de carne.
— Vamos, — ele disse.
— Estou sem fome.
— Você precisa se alimentar.
— Quer apostar? — perguntei sem tirar os olhos do jogo.
— Santo Deus! Está bem, então. — Ele soltou um suspiro e saiu batendo a porta. Continua bastante zangado, pensei, sentindo um pouco de pena. Não havia motivo para ficar zangado. A raiva só nos distraía da tristeza onipresente e do fato inegável de que nós a tínhamos matado e privado de um futuro e de uma vida. Ficar zangado não consertaria as coisas, porra.
— Como estava o bolo de carne? — perguntei para o Coronel quando ele voltou.
— Do jeito que você se lembra. Não parece nem bolo nem carne. — O Coronel se sentou ao meu lado. — O Águia almoçou comigo. Quis saber se tínhamos disparado as bombinhas. — Pausei o jogo e me virei para ele. Com uma das mãos, ele arrancou um dos últimos pedaços de couro sintético azul do sofá de espuma.
— E o que foi que você disse? — perguntei.
— Não dedurei ninguém. Ele falou que a tia da Alasca, eu acho, vinha esvaziar o quarto amanhã. Então, se houver algo que seja nosso ou que a tia não gostaria de ver...
Voltei-me para o jogo e disse: — Não quero fazer isso hoje.
— Então faço sozinho, — ele respondeu. Virou-se e saiu do quarto, deixando a porta aberta, e o frio amargo do inverno rapidamente venceu o radiador. Pausei o jogo e me levantei para fechar a porta. Quando espiei para fora, querendo ver se o Coronel tinha entrado no quarto da Alasca, dei com ele parado na frente do quarto. Puxou-me pelo moletom, sorriu e disse: — Eu sabia que você não ia me deixar fazer isso sozinho. Sabia. — Balancei a cabeça e revirei os olhos, mas fui atrás dele, caminhando pela calçada, passando pelo telefone público e entrando no quarto dela.
Eu não tinha pensado em seu cheiro depois que ela morreu. Mas, quando o Coronel abriu a porta, peguei um resquício de seu odor: terra e grama molhadas, fumaça de cigarro e, por trás disso, um vestígio de creme para pele com aroma de baunilha. Ela se derramou sobre meu presente, e só o bom-senso me impediu de enfiar o rosto no cesto cheio de roupas sujas perto da cômoda. Tudo estava como em minhas lembranças: centenas de livros empilhados contra as paredes, o edredom cor de alfazema amarrotado ao pé da cama, uma pilha de livros erguendo-se perigosamente na mesa de cabeceira, a vela vulcânica aparecendo debaixo da cama. Tudo estava como eu imaginava, mas o cheiro, inequivocamente seu, pegou-se desprevenido. Fiquei de pé, no centro do quarto, com os olhos fechados, inspirando lentamente pelo nariz, o aroma de baunilha e a grama virgem de outono, mas cada vez que eu inspirava, o cheiro enfraquecia à medida que eu me acostumava com ele, até que por fim, ela sumiu novamente.
— Isso é insuportável, — eu disse, desanimado, pois era verdade. — Santo Deus! Todos estes livros que ela nunca vai ler. A Biblioteca da Vida dela.
— Comprados em vendas de garagem e, agora, provavelmente, destinados a vendas de garagem.
— Das cinzas às cinzas. Das vendas de garagem às vendas de garagem, — eu disse.
— Certo. Vamos lá. Mãos à obra. Pegue tudo o que a tia dela não gostaria de ver, — o Coronel disse, e eu o vi se ajoelhar perto da escrivaninha, a gaveta debaixo do computador aberta, seus pequenos dedos manuseando os montes de folhas grampeadas. — Meu Deus, ela guardava todos os trabalhos. Moby Dick. Ethan Frome.
Procurei debaixo do colchão pelos preservativos que eu sabia que ela guardava para as visitas do Jake. Coloquei-os no bolso, depois fui até a cômoda e revirei sua roupa íntima à procura de garrafas de bebida, brinquedos eróticos ou sei lá o quê. Não encontrei nada. Então me voltei para os livros, empilhados de lado, a lombada para fora, o amontoado de literatura que era a Alasca. havia um livro em especial que eu queria levar, mas não conseguia encontrá-lo.
O Coronel estava sentado no chão, inclinando a cabeça para olhar debaixo da cama.
— Ela não deixou nenhuma garrafa de bebida, não é verdade? — perguntou.
Eu quase disse: Ela enterrava as garrafas na floresta, perto do campo de futebol, então me dei conta de que o Coronel não sabia. Ela não o tinha levado até a orla da floresta para cavar um tesouro escondido. Só eu e ela conhecíamos esse segredo. Guardei isso comigo como um suvenir, como se a lembrança pudesse se dissipar se eu a compartilhasse com mais alguém.
— Está vendo O general no seu labirinto? — perguntei enquanto corria os olhos pelos títulos na lombada dos livro. — A capa é meio verde, eu acho. O livro é em brochura e foi molhado, então as páginas devem estar inchadas, mas não acho que ela...
Então ele me interrompeu: — Certo, está aqui.
Voltei-me para ele e vi o livro em sua mão, as páginas abertas como uma sanfona azul, da cor dos cabelos de Longwell, Jeff e Kevin. Caminhei em sua direção, peguei o livro e me sentei na cama. Os trechos sublinhados e as anotações feitas por ela estavam borrados por causa da inundação, mas boa parte do livro continuava legível. Estava pensando em levá-lo para o quarto para ler, embora fosse uma biografia, quando deparei com aquela página no final:
'Estremeceu diante da revelação de que a corrida arrojada entre seus males e seus sonhos estava chegando ao fim. O resto eram trevas. — Droga, —  ele suspirou. — Como sairei deste labirinto?'
Toda a passagem tinha sido sublinhada em tinta preta ensopada que, agora, parecia se esvair em sangue. Mas havia outra tinta, uma tinta azul mais nítida, pós-inundação, e uma seta que ligava "Como sairei deste labirinto?" a uma nota no rodapé com sua letra cursiva: rápida e diretamente.
— Olha só, ela escreveu uma coisinha depois da inundação, — eu disse. — Mas é estranho. Olha. Página cento e noventa e dois.
Joguei o livro para o Coronel. Ele o folheou até encontrar a página, depois olhou para mim.
— Rápida e diretamente, — ele disse.
— Estranho, não? Acho que é a saída do labirinto.
— Calma, como foi que aconteceu? O que aconteceu?
E, como só tinha acontecido uma coisa, eu sabia o que ele estava falando.
— Já lhe disse o que o Águia me contou. Um caminhão derrapou e bloqueou a pista. A polícia apareceu para organizar o trânsito, e ela bateu na viatura. Estava tão bêbada que nem ao menos desviou.
— Tão bêbada? Tão bêbada? O carro da polícia devia estar com o pisca-alerta ligado. Gordo, ela bateu numa viatura com o pisca-alerta ligado, — ele disse depressa. — Rápida e diretamente. Rápida e diretamente. Para fora do labirinto.
— Não, — eu disse, mas enquanto dizia, imaginei a cena em minha cabeça. Imaginei-a bastante bêbada e nervosa. (Por que? Por ter traído o Jake? Por ter me magoado? Por gostar mais de mim do que dele? Ou por ter dedurado a Marya?) Imaginei-a olhando para o carro da polícia e acelerando, sem se importar com mais ninguém, nem com a promessa que me fez, nem com seu pai, nem com ninguém. Aquela vagabunda, aquela vagabunda se matou. Mas não. Isso não era de seu feitio. Não. Ela disse que Continuaríamos depois. Não, claro que: — Não.
— É, acho que você tem razão, — o Coronel disse. Largou o livro, sentou-se na cama ao meu lado e mergulhou a testa nas mãos espalmadas. — Quem é que sai do campus e dirige por dez quilômetros para depois se matar? Não faz sentido. Mas 'Rápida e diretamente'. É uma premonição meio esquisita, não acha? Além disso, ainda não sabemos ao certo o que aconteceu, se você parar para pensar. Aonde ela esta indo, por quê. Quem ligou. Alguém ligou, não foi? Ou será que inventei...
O Coronel continuou falando, tentando desvendar o mistério, enquanto eu me abaixava para pegar o livro e procurava a página onde a corrida do general tinha chegado ao fim. Estávamos imersos em nossos próprios pensamentos, a distância entre nós intransponível, e não ouvi o que o Coronel disse, porque estava ocupado demais tentando absorver o último vestígio do cheiro dela, tentando me convencer de que ela não tinha se matado. Eu era o culpado - eu tinha feito aquilo, e o Coronel também. Ele podia tentar escapar com seus mistérios, mas eu sabia, sabia que éramos completa e imperdoavelmente culpados.

6 Dias Depois - Quem é você, Alasca?

NAQUELE DOMINGO, acordei depois de três horas de sono e fui tomar meu primeiro banho em alguns dias. Vesti meu único terno. Quase não o trouxera, mas minha mãe insistira em que nunca se sabe quando vamos precisar de um terno, e ela estava certa.
O Coronel não tinha terno e, por causa da baixa estatura, não podia pegar um emprestado com outro colega, então vestiu calças pretas largas e uma camisa social cinzenta.
— Será que posso usar a gravata dos flamingos? — ele perguntou, calçando meias pretas.
— É um pouco alegre demais para a ocasião, — respondi.
— Não serve para a ópera, — disse o Coronel, quase sorrindo. — Não serve para o funeral. Não serve para eu me enforcar. É meio inútil como gravata.
Emprestei-lhe uma das minhas.
A escola tinha fretado alguns ônibus para levar os alunos para o norte do estado, para a cidade da Alasca, Vine Station, mas Lara, o Coronel, Takumi e eu viajamos no utilitário esportivo do Takumi, pegando as estradas secundárias para não termos de passar pelo local. Fiquei olhando pela janela do carro, observando enquanto o subúrbio de Birmingham se transformava aos poucos nas colinas suaves e nos campos do norte do Alabama.
No banco da frente, Takumi contou para Lara sobre o garoto que tinha buzinado o peito da Alasca no verão. Ela riu. Aquele tinha sido nosso primeiro encontro, e agora estávamos nos encaminhando para o último. Acima de tudo, eu sentia a injustiça daquilo, a inegável injustiça de amar alguém que talvez também me amasse, mas que agora não podia fazer nada porque estava morta. Inclinei-me para a frente, a testa nas costas do assento do motorista, e chorei, choraminguei. O que estava sentindo não era bem tristeza, era dor. Aqui doía, e não é um eufemismo. Doía como uma surra.
As últimas palavras de Meriwether Lewis foram: "Não sou covarde, sou forte demais. É difícil morrer." Não duvido que seja, mas não pode ser muito pior do que ser deixado para trás. Eu pensava em Lewis enquanto seguia Lara para o interior da capela em formato de "A" anexado ao prédio de um só andar da funerária de Vine Station, Alabama, uma cidade tão deprimida e deprimente quanto Alasca nos fizera crer. O lugar cheirava a mofo e desinfetante e o papel de parede amarelo do vestíbulo estava descascando nos cantos.
— Estão aqui por causa da Srta. Young? — alguém perguntou ao Coronel. Ele assentiu com a cabeça, e fomos conduzidos a um cômodo amplo com fileiras de cadeiras dobráveis ocupadas por um único homem. Ele estava ajoelhado diante do caixão, perto do altar. O caixão estava fechado. Fechado. Eu nunca mais a veria. Não poderia lhe beijar a testa. Não poderia vê-la uma última vez. Mas eu precisava, precisava vê-la, por isso perguntei alto demais, — Por que está fechado? — e o homem cuja pança se projetava do terno apertado virou e caminhou em minha direção.
— A mãe dela, — disse. — A mãe dela foi velada num caixão aberto, então Alasca me pediu: ‘Não deixe que eles me vejam morta, papai', e foi isso. Além do mais, filho, ela não está mais ali dentro, ela está com o Senhor.
E colocou as mãos em meus ombros, aquele homem que tinha engordado desde a última vez que precisara vestir um terno. Eu não podia acreditar no que tinha feito com ele, seus olhos verdes e cintilantes como os da Alasca, porém afundados nas órbitas escuras como um fantasma de olhos verdes que ainda respirava. Por favor, Alasca, não morra, por favor. Não morra. Desvencilhei-me dele, caminhei até o caixão, passando por Lara e Takumi, ajoelhei-me e coloquei as mãos sobre a madeira polida, o mogno escuro da cor de seus cabelos. Senti as mãos pequenas do Coronel em meu ombro. Uma lágrima pingou em minha cabeça, e, por um breve instante, éramos apenas nós três - os ônibus com nossos colegas ainda não tinham chegado, Takumi e Lara tinham desaparecido no plano de fundo, e ficamos apenas nós três -, três corpos, duas pessoas - os três que sabiam o que havia acontecido, separados por uma quantidade excessiva de camadas e de coisas que nos afastavam um do outro. O Coronel disse:
— Queria tanto poder salvá-la.
E eu:
— Chip, ela se foi.
E ele:
— Pensei que ia sentir a presença dela aqui, olhando por nós, mas você está certo. Ela se foi.
E eu:
— Ai, meu Deus! Alasca, eu te amo, eu te amo.
Então o Coronel sussurrou:
— Sinto muito, Gordo. Sei que você a amava.
E eu:
— Não. Não no pretérito. — Ela já não era uma pessoa, era um monte de carne em decomposição, mas eu a amava no presente. O Coronel se ajoelhou ao meu lado, levou os lábios ao caixão e sussurrou:
— Sinto muito, Alasca. Você merecia um amigo melhor.
Será que é tão difícil morrer, Sr. Lewis? Será que esse labirinto é tão pior do que este daqui?

4 Dias Depois - Quem é você, Alasca?

ERAM CINCO DA MANHÃ. Eu estava lendo uma biografia do explorador Meriwether Lewis (da famosa dupla Lewis & Clark), tentando permanecer acordado, quando a porta se abriu e o Coronel apareceu.
Suas mãos pálidas tremiam, e o almanaque que ele trazia consigo mais parecia uma marionete dançando sem cordas.
— Está com frio? — perguntei.
Ele fez que sim com a cabeça, tirou o tênis e se deitou em minha cama, no beliche de baixo, puxando as cobertas sobre o corpo. Seus dentes batiam como um telégrafo.
— Santo Deus! Você está bem?
— Melhor agora. Mais quente, — ele disse. Uma pequena mão branca de fantasma surgiu debaixo do edredom. — Segura minha mão, por favor?
— Seguro, mas é só isso. Nada de beijos. — Ele riu, fazendo a colcha tremer.
— Onde você estava?
— Fui andando até Montevallo.
— Sessenta e cinco quilômetros?
— Sessenta e oito, — ele me corrigiu. — Bem, sessenta e oito para ir. Sessenta e oito para voltar. Cento e vinte e seis ao todo. Não. Cento e trinta e seis. Isso. Cento e trinta e seis quilômetros e quarenta e cinco horas.
— Mas que diabos tinha em Montevallo? — perguntei.
— Nada de mais. Só andei até não aguentar o frio, depois dei meia-volta.
— Não dormiu?
— Não! Os pesadelos são horríveis. Nos meus sonhos, ela nem mesmo se parece com ela. Nem mesmo consigo me lembrar como ela era.
Larguei sua mão, peguei o anuário e mostrei o retrato dela. Na foto em preto e branco, ela está com sua tradicional camiseta regada cor de laranja e um short jeans cortado que lhe cobre metade das coxas finas, a boca escancarada numa eterna risada, enquanto o braço esquerdo segura Takumi numa gravata. O cabelo lhe cai pelo rosto, escondendo suas bochechas.
— Certo, — o Coronel disse. — Pois é. Eu estava cansado de vê-la aborrecida sem motivo. Ela ficava triste e falava sobre a porcaria do peso opressivo da tragédia ou qualquer coisa assim, mas nunca dizia o que estava errado, nunca dizia o motivo por que estava triste. Acho que a pessoa precisa de um motivo. Minha namorada me deu um fora, por isso estou triste. Fui pego fumando, por isso estou irritado. Minha cabeça está doendo, por isso estou mal-humorado. Ela nunca tinha motivo, Gordo. Eu já estava cansado de todo aquele drama. Então a deixei ir embora. Santo Deus.
Às vezes o mau humor dela também me irritava, mas não naquela noite. Naquela noite, eu a deixei ir embora porque ela mandou. Era simples assim, idiota assim.
A mão do Coronel era tão pequenina. Apertei-a com força, o frio dele passando para o meu corpo e o meu calor passando para o dele.
— Decorei os contingentes populacionais, — ele disse
— Uzbequistão.
— Vinte e quatro milhões, setecentos e cinquenta e cinco mil, quinhentos e dezenove.
— Camarões, — eu disse, tarde demais. Ele estava dormindo, a mão inerte na minha. Coloquei-a debaixo da colcha novamente e subi no beliche de cima. Teria de ser o homem do beliche de cima pelo menos naquela noite. Adormeci ouvindo sua respiração, lenta e cadenciada, sua rebeldia finalmente se desfazendo diante do cansaço invencível.

sábado, 30 de agosto de 2014

2 Dias Depois - Quem é você, Alasca?

NÃO DORMI NAQUELA NOITE. O dia custou a raiar, e, quando raiou, o sol brilhando intensamente através das persianas, o radiador velho não conseguiu nos manter aquecidos, então o Coronel e eu nos sentamos no sofá e ficamos em silêncio. Ele começou a ler o almanaque.
Na noite anterior, eu tinha me aventurado no frio para ligar para os meus pais, e dessa vez, quando disse: “Oi, é o Miles”, e minha mãe respondeu: “O que houve? Está tudo bem?”, pude lhe dizer com convicção que não, não estava tudo bem. Meu pai pegou o telefone.
— O que houve? — perguntou.
— Não grite, — minha mãe disse.
— Não estou gritando; é o telefone.
— Bem, então fale mais baixo, — ela disse, de modo que custou um pouco até eu poder dizer alguma coisa. Quando chegou minha vez de falar, demorei para colocar as palavras em ordem:
— Minha amiga, Alasca, morreu num acidente de carro. — Olhei fixamente para os números de telefone e para os recados rabiscados na parede.
— Ah! Miles, — minha mãe disse. — Sinto muito, Miles. Quer voltar para casa?
— Não, — eu disse. — Quero ficar aqui... Não consigo acreditar, — o que ainda era verdade em parte.
— Que coisa horrível, — meu pai disse. — Coitados dos pais da menina. — Coitados, disse comigo e pensei no pai dela. Não conseguia nem imaginar o que meus pais fariam se eu morresse. Dirigindo bêbado. Santo Deus, se ele descobrisse, iria eviscerar o Coronel e eu.
— O que podemos fazer por você neste instante? — minha mãe perguntou.
— Só precisava que me atendessem e que falassem comigo. Isso vocês já fizeram. — Ouvi uma fungada atrás de mim – de resfriado ou de tristeza, não sei – e disse para os meus pais: — Alguém está querendo usar o telefone. Preciso ir.
A noite inteira, eu me senti paralisado no silêncio, aterrorizado. Do que tinha tanto medo, afinal? A coisa já tinha acontecido. Ela estava morta. Estava quente e macia contra a minha pele, minha língua em sua boca. Estava rindo, tentando me ensinar a beijar, prometendo continuar depois. E agora...
E agora ela ficava mais fria a cada instante, mais morta a cada respiração minha. Pensei: Isso é o medo: Perdi uma coisa importante, não consigo achá-la, preciso dela. É o que a pessoa sentiria se perdesse os óculos, fosse até uma ótica e descobrisse que todos os óculos do mundo tinham se acabado e que, agora, ela teria de se virar sem eles.
Pouco antes das oito da manhã, o Coronel anunciou sem especificar a quem: — Acho que teremos bufritos no almoço.
— É, — eu disse. — Está com fome?
— Não, não. Mas foi ela que deu esse nome, sabia? Quando chegamos aqui, os bufritos se chamavam ‘burritos frios’. Então ela começou a dizer bufritos, e todos imitaram, até a própria Maureee. — Fez uma pausa, — Não sei o que fazer, Miles.
— É, eu sei.
— Já decorei as capitais, — ele disse.
— Dos estados?
— Não, isso eu fiz na quinta série. Dos países. Diga um país.
— Canadá, — eu disse.
— Mais difícil.
— Hmm. Uzbequistão?
— Tashkent. — Ele nem mesmo parou para pensar. Estava ali, na ponta da língua, como se estivesse esperando eu dizer “Uzbequistão”, — Vamos fumar.
Fomos para o banheiro e abrimos a ducha. O Coronel pegou um maço de cigarros no bolso do jeans e riscou um fósforo. Mas o fósforo não acendeu.
Tentou outra vez. Não conseguiu. E mais outra, riscando com força, ficando mais e mais irritado, então jogou os fósforos no chão e gritou:
— MAS QUE MERDA!
— Está tudo bem, — eu disse, pegando um isqueiro no bolso da calça.
— Não, Gordo, não está, — ele disse, jogando o cigarro no chão e ficando de pé, subitamente irritado. — Que merda! Santo Deus, como isso foi acontecer? Como ela pôde ser tão idiota? Nunca parou para pensar em nada. Tão impulsiva. Meu Deus. Não está tudo bem. Não acredito que ela tenha sido tão idiota!
— Deveríamos tê-la impedido, — eu disse.
Ele estendeu o braço na direção do boxe, desligou o chuveiro e bateu com a mão espalmada na parede de azulejo.
— É, eu sei que deveríamos tê-la impedido. Porra! Sei muitíssimo bem que deveríamos tê-la impedido. Mas não deveríamos precisar fazer isso. Tínhamos de vigiá-la como uma garotinha de três anos. Uma pisada de bola, e ela morre. Meu Deus! Estou ficando maluco. Vou dar uma caminhada.
— Tudo bem, — respondi, tentando soar calmo.
— Desculpa, — ele disse. — Estou me sentindo mal, como se estivesse morrendo.
— E está, — eu disse.
— É. Todos nós estamos. Nunca se sabe. De repente. PUF. Pronto, acabou.
Eu o segui até o quarto. Ele pegou o almanaque no beliche de cima, fechou o zíper do casaco, bateu a porta e PUF. Sumiu.
Quando amanheceu, chegaram as visitas. Uma hora depois de o Coronel ter saído, nosso colega maconheiro, Hank Walsten, veio me oferecer um baseado. Recusei educadamente. Ele me abraçou e disse: — Pelo menos foi instantâneo. Não houve dor.
Eu sabia que era sua maneira de ajudar, mas ele simplesmente não entendia. Havia dor, sim. Uma dorzinha interminável em meu estômago que não passava nem mesmo quando eu me ajoelhava nos azulejos frios do banheiro, vomitando em seco.
Além do mais, como a morte podia ser “instantânea”? Quanto tempo é um instante? Um segundo? Dez? A dor que ela sentiu nesses poucos segundos deve ter sido horrível. Seu coração foi esmagado, o pulmão parou de funcionar, e não havia nem ar nem sangue em sua cabeça, apenas desespero.
Mas que diabos significa “instantâneo”? Nada é instantâneo. Arroz instantâneo leva cinco minutos, pudim instantâneo uma hora. Duvido que um instante de dor intensa pareça instantâneo.
Será que ela tivera tempo de ver a vida passar diante de seus olhos? Será que eu estava lá? Será que o Jake estava lá? Ela tinha prometido, eu lembrei, tinha prometido que continuaríamos depois, mas eu sabia que ela estava indo para o norte quando morreu, para Nashville, para Jake. Talvez aquilo não tivesse significado nada para ela. Talvez tivesse sido apenas mais um exemplo de sua enorme impulsividade. Enquanto Hank permanecia de pé no vão da porta, eu olhava através dele, olhava para o círculo dos dormitórios, que estava quieto demais, imaginando se eu tivera alguma importância para ela, e só conseguia me dizer que sim, claro, ela tinha prometido. Continuaríamos depois.
Lara veio em seguida, os olhos pesados e inchados.
— O que aconteceu? — ela perguntou enquanto eu a abraçava na porta dos pés para colocar o queixo sobre sua cabeça.
— Não sei, — eu disse.
— Viram a Alasca naquela noite? — ela perguntou, falando com a boca encostada em minha clavícula.
— Ela se embebedou, — eu disse. — O Coronel e eu fomos dormir. Acho que ela deve ter saído de carro. — E isso se tornou a mentira-padrão.
Senti os dedos de Lara, úmidos de lágrimas, pressionando minha palma e, sem pensar direito, tirei a mão.
— Desculpa, — eu disse.
— Tudo béém, — ela disse. — Se quiser me visitar, estarei em meu quarto. — Não quis visitá-la. Não sabia o que dizer – fazíamos parte de um triângulo amoroso com um lado morto.
Naquela tarde, entramos novamente em fila no ginásio para participar de uma Assembléia-geral. O Águia anunciou que, no domingo, a escola ia fretar um ônibus para o funeral em Vine Station. Quando nos levantamos para sair, reparei que Takumi e Lara estavam caminhando em nossa direção. Lara me viu e sorriu palidamente. Retribuí o sorriso e me virei depressa, escondendo-me no meio da multidão que saía em fila e em prantos pelo ginásio.




Estou dormindo. Alasca entra voando em meu quarto. Está nua e intacta. Os seios, que eu senti muito rapidamente no escuro, pendem de seu corpo, reluzentes e volumosos. Ela paira a centímetros de mim, o hálito quente e doce em meu rosto, como uma brisa percorrendo o capim alto.
— Oi, — eu digo. — Senti sua falta.
— Você está bonito, Gordo.
— Você também.
— Estou peladona”, ela diz, depois ri. “Como foi que fiquei peladona?
— Só quero que fique comigo, — eu digo.
— Não, — ela diz, e seu corpo cai pesadamente em cima de mim, esmagando meu peito, roubando meu ar. Ela está fria e molhada, como gelo derretido. A cabeça está partida. Um líquido viscoso meio rosado e meio cinzento aflora em seu crânio fraturado e pinga em meu rosto. Ela fede a formol e carne estragada. Sobe-me uma ânsia de vômito, e eu a empurro para o lado, apavorado.
Acordei caindo e me espatifei no chão com um baque surdo. Ainda bem que eu era o homem do beliche de baixo. Tinha dormido catorze horas. Já era de manhã. Quarta- feira, pensei. O funeral seria no domingo. Indaguei-me se o Coronel conseguiria voltar a tempo, onde quer que estivesse. Ele tinha de ir ao funeral, porque eu não conseguiria ir sozinho, e ir com outra pessoa seria o mesmo que ir sozinho.
O vento frio fustigava a porta. As árvores para além da janela dos fundos balançavam com tamanha violência que eu as ouvia do meu quarto. Sentei-me na cama e pensei no Coronel em algum lugar lá fora, a cabeça baixa, os dentes trincados, caminhando contra o vento.

O dia seguinte - Quem é você, Alasca?

O CORONEL DORMIU O SONO INTRANQUILO dos bêbados, e eu fiquei deitado com a barriga para cima no beliche de baixo, a boca formigando e viva como se ainda estivesse beijando, e provavelmente teríamos dormido e perdido as aulas daquela manhã se não fosse o fato de o Águia ter nos acordado às 8h, com três rápidas batidinhas na porta. Virei na cama quando ele entrou, e a luz da manhã se derramou pelo quarto.
 Preciso que vocês vão para o ginásio, — ele disse. Semicerrei os olhos em sua direção. O Águia estava invisível devido à luz clara que lhe batia às costas. — Agora, — acrescentou, e eu soube. Estávamos perdidos. Fôramos pegos. Muitos relatórios de progresso. Muita bebida num curto espaço de tempo. Por que eles tiveram de beber na noite anterior? Então senti novamente seu gosto: vinho, fumaça de cigarro, batom e Alasca, e me indaguei se ela tinha me beijado porque estava bêbada. Não me expulse, pensei. Por favor. Só comecei a beijá-la agora.
E, como para entender a minhas preces, o Águia disse:
 Vocês não estão encrencados. Mas precisam ir para o ginásio agora.
Ouvi o Coronel se revirar na cama de cima.
 O que houve?
 Aconteceu uma coisa terrível, — o Águia disse e fechou a porta.
Enquanto pegava o jeans no chão, o Coronel disse:
 Isso aconteceu dois anos atrás. Quando a mulher do Hyde faleceu. Acho que agora foi o Velho. O pobre coitado já estava nas últimas. — Olhou para mim, os olhos semiabertos e injetados, e bocejou.
 Parece que você está com um pouco de ressaca, — observei.
Ele fechou os olhos.
 Então estou com uma ótima aparência, Gordo, porque, na verdade, estou com muita ressaca.
 Eu beijei a Alasca.
 Pois é. Eu não estava tão bêbado assim. Vamos embora.
Atravessamos o círculo dos dormitórios e caminhamos para o ginásio. Eu estava com calças jeans largas, uma camiseta regata e um caso grave de cara de sono. Todos os professores estavam no círculo dos dormitórios, batendo à porta dos alunos, mas não vi o Sr. Hyde. Imaginei-o morto em sua casa e me perguntei quem o teria descoberto e como teriam dado por sua falta antes mesmo de a aula ter começado.
 Não estou vendo o Sr. Hyde, — eu disse para o Coronel.
 Pobre-diabo.
Quando chegamos, o ginásio estava cheio pela metade. Um púlpito tinha sido colocado no meio da quadra de basquete, próximo à arquibancada. Sentei-me na segunda fila, logo atrás do Coronel. Meus pensamentos oscilavam entre a tristeza pelo Sr. Hyde e a felicidade por Alasca, enquanto me lembrava de sua boca bem próxima sussurrando: "Continuaremos depois?".
E não me ocorreu – nem mesmo quando o Sr. Hyde entrou no ginásio, arrastando os pés, dando passinhos miúdos na nossa direção.
Bati no ombro do Coronel e disse:
 O Hyde está aqui.
E o Coronel:
 Puta merda!
E eu:
 O que foi?
E ele:
 Cadê a Alasca?
E eu:
 Não.
E ele:
 Gordo, ela está ou não está aqui? — Então nos levantamos e sondamos os rostos no ginásio.
O Águia caminhou até o púlpito e disse:
 Estão todos presentes?
 Não, — eu respondi. — A Alasca não está.
O Águia olhou para baixo.
 E quanto ao resto de vocês?
 A Alasca não está presente!
 Certo, Miles. Obrigado.
 Não podemos começar sem a Alasca.
O Águia olhou para mim. Estava chorando, mas sem fazer barulho. Lágrimas caíam dos seus olhos para mim, mas não era o Olhar do Juízo Final. Pestanejando com o rosto coberto de lágrimas, o Águia parecia pedir desculpas.
 Por favor, senhor, — eu disse. — Não podemos esperar pela Alasca? — Senti que todos no ginásio estavam olhando para nós, tentando decifrar o que agora eu já sabia, mas não queria admitir.
O Águia olhou para baixo e mordeu o lábio superior.
 Ontem à noite, Alasca Young sofreu um terrível acidente de carro. — Agora as lágrimas escorriam com maior rapidez. — E faleceu. Ela morreu.
Por um momento, todos no ginásio se calaram. O lugar nunca estivera tão silencioso, nem mesmo quando o Coronel pedira silêncio e ridicularizara os adversários na linha do lance livre. Olhei para baixo, para a nuca do Coronel. Só fiquei olhando para seus cabelos espessos e volumosos. Por um instante, o silêncio foi tão grande que era possível ouvir o barulho da não respiração, o vácuo criado por 190 estudantes que tinham perdido o fôlego com o susto.
Pensei: É tudo culpa minha.
Pensei: Não estou me sentindo muito bem.
Pensei: Vou vomitar.
Levantei-me e corri para fora do ginásio. Consegui chegar até uma lata de lixo a um metro e meio das portas duplas do edifício e ameacei vomitar sobre algumas garrafas de Gatorade e um lanche meio comido do McDonald’s. Mas não saiu nada. Só ameacei vomitar, os músculos do estômago se contraindo e a garganta se abrindo para soltar um bléé ofegante e gutural, repetindo os movimentos do vômito. Entre um engasgo e uma tosse, eu inspirava profundamente. Sua boca. Sua boca morta e fria. Não continuaríamos depois. Eu sabia que ela estava bêbada. Nervosa. Era óbvio que não se podia deixar uma pessoa dirigir bêbada e nervosa. Era óbvio. Pelo amor de Deus Miles, qual é o seu problema? Então, finalmente, o vômito me subiu novamente, e – então está tudo bem, calma, sério, ela não está morta.
Não está morta, está viva. Está viva em algum lugar. Está na floresta. Alasca está se escondendo na floresta e não está morta, só está se escondendo. Só está pregando uma peça em todos nós. Mais uma Peça Extraordinária pregada por Alasca Young. Alasca só estava sendo Alasca, engraçada e brincalhona, sem saber quando e como pisar no freio.
Então me senti bem melhor, porque ela não tinha morrido coisíssima nenhuma.
Voltei para o ginásio, e todos pareciam estar em diferentes estágios de desintegração. Era como algo que se vê na tevê, um documentário da National Geographic sobre rituais fúnebres. Vi Takumi de pé ao lado de Lara, com a mão em seu ombro. Vi Kevin com o cabelo à escovinha, a cabeça metida entre os joelhos. Uma garota chamada Molly Tan, que tinha estudado Pré-Cálculo conosco, ululava tristemente, batendo com os punhos fechados nas próprias coxas. Eu conhecia e desconhecia aquela gente. Todo o mundo parecia estar se desintegrando. Então vi o Coronel, os joelhos dobrados contra o peito, deitado de lado na arquibancada. Madame O’Malley estava sentada ao seu lado, as mãos pairando sobre seus ombros sem tocá-los.
O Coronel gritava. Inspirava depois gritava. Inspirava. Gritava. Inspirava. Gritava.
No começo, pensei que eram apenas gritos. Mas, depois de algumas tomadas de fôlego, notei um ritmo. E, depois de mais algumas, percebi que o Coronel estava falando. Estava gritando: — Desculpa.
Madame O’Malley pegou sua mão.
 A culpa não é sua, Chip. Você não podia ter feito nada. — Mas, se ao menos ela soubesse...
Eu só fiquei ali, olhando para aquela cena, pensando nela viva. Senti uma mão em meu ombro e me virei. Era o Águia. Eu lhe disse:
 Acho que isso é apenas mais um de seus trotes idiotas.
E ele respondeu:
 Não, Miles, não. Sinto muito.
Minhas bochechas se afoguearam, e eu disse:
 Ela é muito boa nisso. Acho que seria capaz de fazer uma coisa dessas.
E ele respondeu:
 Eu vi o corpo. Sinto muito...
 O que aconteceu?
 Alguém estava acendendo bombinhas na floresta, — ele disse. Fechei os olhos e os apertei com força, o fato inegável bem diante de mim: eu a tinha matado. — Fui atrás deles, e acho que ela aproveitou para sair com o carro. Estava tarde. Ela estava em I-65, ao sul do centro da cidade. Um caminhão tinha derrapado, bloqueando a pista. A polícia tinha acabado de chegar. E ela bateu de frente na viatura, nem chegou a desviar. Devia estar muito embriagada. A polícia detectou hálito etílicio.
 Como sabe disso? — Eu perguntei.
 Eu vi o corpo, Miles. Falei com a polícia. Foi instantâneo. Ela bateu com o peito no volante. Sinto muito.
Perguntei: viu o corpo? Ele disse que sim. Perguntei como ela estava. Só um pouco de sangue escorrendo pelo nariz, ele disse. Então me sentei no chão do ginásio. Podia ouvir os gritos do Coronel e sentir os tapinhas em minhas costas, enquanto eu me inclinava para a frente, mas só conseguia ver seu corpo nu estendido numa mesa de metal, um pequeno fio de sangue escorrendo pelo nariz em meia-lua, os olhos verdes abertos, olhando para longe, a boca franzida sugerindo um sorriso. Ela parecera tão quente junto ao meu corpo, os lábios macios e quentes nos meus.
O Coronel e eu estamos voltando para o quarto em silêncio. Estou olhando para o chão. Não consigo parar de pensar que ela está morta. Não consigo parar de pensar que ela simplesmente não pode estar morta. As pessoas não morrem assim de repente. Estou sem fôlego. Estou com medo, como se alguém tivesse dito que ia me bater depois da aula, e agora, fosse o sexto período e eu soubesse o que me aguardava. Está tão frio – literalmente gelado -, e eu me imagino correndo até o regato e mergulhando de cabeça, o regato tão raso que minhas mãos tocam nas pedras do fundo e meu corpo desliza pela água fria, o choque térmico entorpecendo meu corpo, e eu fico ali, boiando, seguindo a corrente até os rios Cahaba e Alabama e desaguando na baía de Mobile e no golfo do México.
Quero me derreter e me fundir à grama marrom que range sob meus pés e os do Coronel enquanto voltamos para o quarto em silêncio. Seus pés são grandes, grandes demais para a sua altura, e o tênis antigo mais parece um sapato de palhaço. Eu me lembro das sandálias dela, pendendo dos dedos do pé com as unhas pintadas de azul, enquanto nos balançamos no balanço perto do lago. Será que o caixão ficará aberto? Será que o agente funerário conseguirá recriar seu sorriso? Ainda posso ouvir suas palavras: “Isso é divertido, mas estou com sono. Continuaremos depois?”
As últimas palavras de Henry Ward Beecher, o pregador do século XIX, foram: “Agora vem o mistério.” O poeta Dylan Thomas, que gostava de beber tanto quanto Alasca, disse: “Tomei dezoito doses de uísque. Creio que é um novo recorde”, antes de morrer. As favoritas da Alasca eram do dramaturgo Eugene O’Neill: “Nasci num quarto de hotel e – maldição! – vou morrer num quarto de hotel.” Até mesmo as vítimas de acidentes de carro, às vezes, tinham tempo para dizer suas últimas palavras. A princesa Diana disse: “Meu Deus, o que aconteceu?” James Dean, o astro do cinema, disse: “Eles precisam nos ver”, antes de bater seu Porsche em outro carro. Conheço tantas últimas palavras. Mas jamais saberei quais foram as dela.
Estou vários passos à sua frente quando percebo que o Coronel desabou. Viro-me, e ele está deitado com o rosto no chão.
 Precisamos nos levantar, Chip. Precisamos nos levantar. Precisamos chegar até o quarto.
O Coronel vira a cabeça para mim, olha em meus olhos e diz:
 Não. Estou. Conseguindo. Respirar.
Mas ele está respirando. Sei disso porque o vejo ofegar, como se pretendesse encher os pulmões de um defunto. Eu o ajudo a se levantar, e ele se agarra em mim e chora, voltando a repetir:
 Sinto muito.
Era a primeira vez que nos abraçávamos, eu e o Coronel, e não há muito o que dizer, porque ele tem mais é que sentir muito. Coloco a mão em sua nuca e digo a única verdade:
 Também sinto muito.