quarta-feira, 3 de setembro de 2014

7 Dias Depois - Quem é você, Alasca?

PASSEI O DIA SEGUINTE NO QUARTO, jogando futebol americano com o som da tevê desligado, ao mesmo tempo incapaz de não fazer nada e incapaz de fazer qualquer coisa por muito tempo. Era o dia de Martin Luther King, nosso último dia de férias antes de as aulas recomeçarem, e a única coisa em que eu conseguia pensar era que eu a tinha matado. O Coronel me fez companhia pela manhã, mas depois resolveu ir para o refeitório comer bolo de carne.
— Vamos, — ele disse.
— Estou sem fome.
— Você precisa se alimentar.
— Quer apostar? — perguntei sem tirar os olhos do jogo.
— Santo Deus! Está bem, então. — Ele soltou um suspiro e saiu batendo a porta. Continua bastante zangado, pensei, sentindo um pouco de pena. Não havia motivo para ficar zangado. A raiva só nos distraía da tristeza onipresente e do fato inegável de que nós a tínhamos matado e privado de um futuro e de uma vida. Ficar zangado não consertaria as coisas, porra.
— Como estava o bolo de carne? — perguntei para o Coronel quando ele voltou.
— Do jeito que você se lembra. Não parece nem bolo nem carne. — O Coronel se sentou ao meu lado. — O Águia almoçou comigo. Quis saber se tínhamos disparado as bombinhas. — Pausei o jogo e me virei para ele. Com uma das mãos, ele arrancou um dos últimos pedaços de couro sintético azul do sofá de espuma.
— E o que foi que você disse? — perguntei.
— Não dedurei ninguém. Ele falou que a tia da Alasca, eu acho, vinha esvaziar o quarto amanhã. Então, se houver algo que seja nosso ou que a tia não gostaria de ver...
Voltei-me para o jogo e disse: — Não quero fazer isso hoje.
— Então faço sozinho, — ele respondeu. Virou-se e saiu do quarto, deixando a porta aberta, e o frio amargo do inverno rapidamente venceu o radiador. Pausei o jogo e me levantei para fechar a porta. Quando espiei para fora, querendo ver se o Coronel tinha entrado no quarto da Alasca, dei com ele parado na frente do quarto. Puxou-me pelo moletom, sorriu e disse: — Eu sabia que você não ia me deixar fazer isso sozinho. Sabia. — Balancei a cabeça e revirei os olhos, mas fui atrás dele, caminhando pela calçada, passando pelo telefone público e entrando no quarto dela.
Eu não tinha pensado em seu cheiro depois que ela morreu. Mas, quando o Coronel abriu a porta, peguei um resquício de seu odor: terra e grama molhadas, fumaça de cigarro e, por trás disso, um vestígio de creme para pele com aroma de baunilha. Ela se derramou sobre meu presente, e só o bom-senso me impediu de enfiar o rosto no cesto cheio de roupas sujas perto da cômoda. Tudo estava como em minhas lembranças: centenas de livros empilhados contra as paredes, o edredom cor de alfazema amarrotado ao pé da cama, uma pilha de livros erguendo-se perigosamente na mesa de cabeceira, a vela vulcânica aparecendo debaixo da cama. Tudo estava como eu imaginava, mas o cheiro, inequivocamente seu, pegou-se desprevenido. Fiquei de pé, no centro do quarto, com os olhos fechados, inspirando lentamente pelo nariz, o aroma de baunilha e a grama virgem de outono, mas cada vez que eu inspirava, o cheiro enfraquecia à medida que eu me acostumava com ele, até que por fim, ela sumiu novamente.
— Isso é insuportável, — eu disse, desanimado, pois era verdade. — Santo Deus! Todos estes livros que ela nunca vai ler. A Biblioteca da Vida dela.
— Comprados em vendas de garagem e, agora, provavelmente, destinados a vendas de garagem.
— Das cinzas às cinzas. Das vendas de garagem às vendas de garagem, — eu disse.
— Certo. Vamos lá. Mãos à obra. Pegue tudo o que a tia dela não gostaria de ver, — o Coronel disse, e eu o vi se ajoelhar perto da escrivaninha, a gaveta debaixo do computador aberta, seus pequenos dedos manuseando os montes de folhas grampeadas. — Meu Deus, ela guardava todos os trabalhos. Moby Dick. Ethan Frome.
Procurei debaixo do colchão pelos preservativos que eu sabia que ela guardava para as visitas do Jake. Coloquei-os no bolso, depois fui até a cômoda e revirei sua roupa íntima à procura de garrafas de bebida, brinquedos eróticos ou sei lá o quê. Não encontrei nada. Então me voltei para os livros, empilhados de lado, a lombada para fora, o amontoado de literatura que era a Alasca. havia um livro em especial que eu queria levar, mas não conseguia encontrá-lo.
O Coronel estava sentado no chão, inclinando a cabeça para olhar debaixo da cama.
— Ela não deixou nenhuma garrafa de bebida, não é verdade? — perguntou.
Eu quase disse: Ela enterrava as garrafas na floresta, perto do campo de futebol, então me dei conta de que o Coronel não sabia. Ela não o tinha levado até a orla da floresta para cavar um tesouro escondido. Só eu e ela conhecíamos esse segredo. Guardei isso comigo como um suvenir, como se a lembrança pudesse se dissipar se eu a compartilhasse com mais alguém.
— Está vendo O general no seu labirinto? — perguntei enquanto corria os olhos pelos títulos na lombada dos livro. — A capa é meio verde, eu acho. O livro é em brochura e foi molhado, então as páginas devem estar inchadas, mas não acho que ela...
Então ele me interrompeu: — Certo, está aqui.
Voltei-me para ele e vi o livro em sua mão, as páginas abertas como uma sanfona azul, da cor dos cabelos de Longwell, Jeff e Kevin. Caminhei em sua direção, peguei o livro e me sentei na cama. Os trechos sublinhados e as anotações feitas por ela estavam borrados por causa da inundação, mas boa parte do livro continuava legível. Estava pensando em levá-lo para o quarto para ler, embora fosse uma biografia, quando deparei com aquela página no final:
'Estremeceu diante da revelação de que a corrida arrojada entre seus males e seus sonhos estava chegando ao fim. O resto eram trevas. — Droga, —  ele suspirou. — Como sairei deste labirinto?'
Toda a passagem tinha sido sublinhada em tinta preta ensopada que, agora, parecia se esvair em sangue. Mas havia outra tinta, uma tinta azul mais nítida, pós-inundação, e uma seta que ligava "Como sairei deste labirinto?" a uma nota no rodapé com sua letra cursiva: rápida e diretamente.
— Olha só, ela escreveu uma coisinha depois da inundação, — eu disse. — Mas é estranho. Olha. Página cento e noventa e dois.
Joguei o livro para o Coronel. Ele o folheou até encontrar a página, depois olhou para mim.
— Rápida e diretamente, — ele disse.
— Estranho, não? Acho que é a saída do labirinto.
— Calma, como foi que aconteceu? O que aconteceu?
E, como só tinha acontecido uma coisa, eu sabia o que ele estava falando.
— Já lhe disse o que o Águia me contou. Um caminhão derrapou e bloqueou a pista. A polícia apareceu para organizar o trânsito, e ela bateu na viatura. Estava tão bêbada que nem ao menos desviou.
— Tão bêbada? Tão bêbada? O carro da polícia devia estar com o pisca-alerta ligado. Gordo, ela bateu numa viatura com o pisca-alerta ligado, — ele disse depressa. — Rápida e diretamente. Rápida e diretamente. Para fora do labirinto.
— Não, — eu disse, mas enquanto dizia, imaginei a cena em minha cabeça. Imaginei-a bastante bêbada e nervosa. (Por que? Por ter traído o Jake? Por ter me magoado? Por gostar mais de mim do que dele? Ou por ter dedurado a Marya?) Imaginei-a olhando para o carro da polícia e acelerando, sem se importar com mais ninguém, nem com a promessa que me fez, nem com seu pai, nem com ninguém. Aquela vagabunda, aquela vagabunda se matou. Mas não. Isso não era de seu feitio. Não. Ela disse que Continuaríamos depois. Não, claro que: — Não.
— É, acho que você tem razão, — o Coronel disse. Largou o livro, sentou-se na cama ao meu lado e mergulhou a testa nas mãos espalmadas. — Quem é que sai do campus e dirige por dez quilômetros para depois se matar? Não faz sentido. Mas 'Rápida e diretamente'. É uma premonição meio esquisita, não acha? Além disso, ainda não sabemos ao certo o que aconteceu, se você parar para pensar. Aonde ela esta indo, por quê. Quem ligou. Alguém ligou, não foi? Ou será que inventei...
O Coronel continuou falando, tentando desvendar o mistério, enquanto eu me abaixava para pegar o livro e procurava a página onde a corrida do general tinha chegado ao fim. Estávamos imersos em nossos próprios pensamentos, a distância entre nós intransponível, e não ouvi o que o Coronel disse, porque estava ocupado demais tentando absorver o último vestígio do cheiro dela, tentando me convencer de que ela não tinha se matado. Eu era o culpado - eu tinha feito aquilo, e o Coronel também. Ele podia tentar escapar com seus mistérios, mas eu sabia, sabia que éramos completa e imperdoavelmente culpados.

6 Dias Depois - Quem é você, Alasca?

NAQUELE DOMINGO, acordei depois de três horas de sono e fui tomar meu primeiro banho em alguns dias. Vesti meu único terno. Quase não o trouxera, mas minha mãe insistira em que nunca se sabe quando vamos precisar de um terno, e ela estava certa.
O Coronel não tinha terno e, por causa da baixa estatura, não podia pegar um emprestado com outro colega, então vestiu calças pretas largas e uma camisa social cinzenta.
— Será que posso usar a gravata dos flamingos? — ele perguntou, calçando meias pretas.
— É um pouco alegre demais para a ocasião, — respondi.
— Não serve para a ópera, — disse o Coronel, quase sorrindo. — Não serve para o funeral. Não serve para eu me enforcar. É meio inútil como gravata.
Emprestei-lhe uma das minhas.
A escola tinha fretado alguns ônibus para levar os alunos para o norte do estado, para a cidade da Alasca, Vine Station, mas Lara, o Coronel, Takumi e eu viajamos no utilitário esportivo do Takumi, pegando as estradas secundárias para não termos de passar pelo local. Fiquei olhando pela janela do carro, observando enquanto o subúrbio de Birmingham se transformava aos poucos nas colinas suaves e nos campos do norte do Alabama.
No banco da frente, Takumi contou para Lara sobre o garoto que tinha buzinado o peito da Alasca no verão. Ela riu. Aquele tinha sido nosso primeiro encontro, e agora estávamos nos encaminhando para o último. Acima de tudo, eu sentia a injustiça daquilo, a inegável injustiça de amar alguém que talvez também me amasse, mas que agora não podia fazer nada porque estava morta. Inclinei-me para a frente, a testa nas costas do assento do motorista, e chorei, choraminguei. O que estava sentindo não era bem tristeza, era dor. Aqui doía, e não é um eufemismo. Doía como uma surra.
As últimas palavras de Meriwether Lewis foram: "Não sou covarde, sou forte demais. É difícil morrer." Não duvido que seja, mas não pode ser muito pior do que ser deixado para trás. Eu pensava em Lewis enquanto seguia Lara para o interior da capela em formato de "A" anexado ao prédio de um só andar da funerária de Vine Station, Alabama, uma cidade tão deprimida e deprimente quanto Alasca nos fizera crer. O lugar cheirava a mofo e desinfetante e o papel de parede amarelo do vestíbulo estava descascando nos cantos.
— Estão aqui por causa da Srta. Young? — alguém perguntou ao Coronel. Ele assentiu com a cabeça, e fomos conduzidos a um cômodo amplo com fileiras de cadeiras dobráveis ocupadas por um único homem. Ele estava ajoelhado diante do caixão, perto do altar. O caixão estava fechado. Fechado. Eu nunca mais a veria. Não poderia lhe beijar a testa. Não poderia vê-la uma última vez. Mas eu precisava, precisava vê-la, por isso perguntei alto demais, — Por que está fechado? — e o homem cuja pança se projetava do terno apertado virou e caminhou em minha direção.
— A mãe dela, — disse. — A mãe dela foi velada num caixão aberto, então Alasca me pediu: ‘Não deixe que eles me vejam morta, papai', e foi isso. Além do mais, filho, ela não está mais ali dentro, ela está com o Senhor.
E colocou as mãos em meus ombros, aquele homem que tinha engordado desde a última vez que precisara vestir um terno. Eu não podia acreditar no que tinha feito com ele, seus olhos verdes e cintilantes como os da Alasca, porém afundados nas órbitas escuras como um fantasma de olhos verdes que ainda respirava. Por favor, Alasca, não morra, por favor. Não morra. Desvencilhei-me dele, caminhei até o caixão, passando por Lara e Takumi, ajoelhei-me e coloquei as mãos sobre a madeira polida, o mogno escuro da cor de seus cabelos. Senti as mãos pequenas do Coronel em meu ombro. Uma lágrima pingou em minha cabeça, e, por um breve instante, éramos apenas nós três - os ônibus com nossos colegas ainda não tinham chegado, Takumi e Lara tinham desaparecido no plano de fundo, e ficamos apenas nós três -, três corpos, duas pessoas - os três que sabiam o que havia acontecido, separados por uma quantidade excessiva de camadas e de coisas que nos afastavam um do outro. O Coronel disse:
— Queria tanto poder salvá-la.
E eu:
— Chip, ela se foi.
E ele:
— Pensei que ia sentir a presença dela aqui, olhando por nós, mas você está certo. Ela se foi.
E eu:
— Ai, meu Deus! Alasca, eu te amo, eu te amo.
Então o Coronel sussurrou:
— Sinto muito, Gordo. Sei que você a amava.
E eu:
— Não. Não no pretérito. — Ela já não era uma pessoa, era um monte de carne em decomposição, mas eu a amava no presente. O Coronel se ajoelhou ao meu lado, levou os lábios ao caixão e sussurrou:
— Sinto muito, Alasca. Você merecia um amigo melhor.
Será que é tão difícil morrer, Sr. Lewis? Será que esse labirinto é tão pior do que este daqui?

4 Dias Depois - Quem é você, Alasca?

ERAM CINCO DA MANHÃ. Eu estava lendo uma biografia do explorador Meriwether Lewis (da famosa dupla Lewis & Clark), tentando permanecer acordado, quando a porta se abriu e o Coronel apareceu.
Suas mãos pálidas tremiam, e o almanaque que ele trazia consigo mais parecia uma marionete dançando sem cordas.
— Está com frio? — perguntei.
Ele fez que sim com a cabeça, tirou o tênis e se deitou em minha cama, no beliche de baixo, puxando as cobertas sobre o corpo. Seus dentes batiam como um telégrafo.
— Santo Deus! Você está bem?
— Melhor agora. Mais quente, — ele disse. Uma pequena mão branca de fantasma surgiu debaixo do edredom. — Segura minha mão, por favor?
— Seguro, mas é só isso. Nada de beijos. — Ele riu, fazendo a colcha tremer.
— Onde você estava?
— Fui andando até Montevallo.
— Sessenta e cinco quilômetros?
— Sessenta e oito, — ele me corrigiu. — Bem, sessenta e oito para ir. Sessenta e oito para voltar. Cento e vinte e seis ao todo. Não. Cento e trinta e seis. Isso. Cento e trinta e seis quilômetros e quarenta e cinco horas.
— Mas que diabos tinha em Montevallo? — perguntei.
— Nada de mais. Só andei até não aguentar o frio, depois dei meia-volta.
— Não dormiu?
— Não! Os pesadelos são horríveis. Nos meus sonhos, ela nem mesmo se parece com ela. Nem mesmo consigo me lembrar como ela era.
Larguei sua mão, peguei o anuário e mostrei o retrato dela. Na foto em preto e branco, ela está com sua tradicional camiseta regada cor de laranja e um short jeans cortado que lhe cobre metade das coxas finas, a boca escancarada numa eterna risada, enquanto o braço esquerdo segura Takumi numa gravata. O cabelo lhe cai pelo rosto, escondendo suas bochechas.
— Certo, — o Coronel disse. — Pois é. Eu estava cansado de vê-la aborrecida sem motivo. Ela ficava triste e falava sobre a porcaria do peso opressivo da tragédia ou qualquer coisa assim, mas nunca dizia o que estava errado, nunca dizia o motivo por que estava triste. Acho que a pessoa precisa de um motivo. Minha namorada me deu um fora, por isso estou triste. Fui pego fumando, por isso estou irritado. Minha cabeça está doendo, por isso estou mal-humorado. Ela nunca tinha motivo, Gordo. Eu já estava cansado de todo aquele drama. Então a deixei ir embora. Santo Deus.
Às vezes o mau humor dela também me irritava, mas não naquela noite. Naquela noite, eu a deixei ir embora porque ela mandou. Era simples assim, idiota assim.
A mão do Coronel era tão pequenina. Apertei-a com força, o frio dele passando para o meu corpo e o meu calor passando para o dele.
— Decorei os contingentes populacionais, — ele disse
— Uzbequistão.
— Vinte e quatro milhões, setecentos e cinquenta e cinco mil, quinhentos e dezenove.
— Camarões, — eu disse, tarde demais. Ele estava dormindo, a mão inerte na minha. Coloquei-a debaixo da colcha novamente e subi no beliche de cima. Teria de ser o homem do beliche de cima pelo menos naquela noite. Adormeci ouvindo sua respiração, lenta e cadenciada, sua rebeldia finalmente se desfazendo diante do cansaço invencível.