Ainda era tão cedo que a luz da manhã lançava um brilho rosado discreto sobre os campos de feno. Com isso, eles pareciam quase bonitos demais para serem tocados. Valerie e as amigas observavam quando os primeiros homens, saindo da aldeia, ficaram indecisos e calados. Sentiam-se tolos, mas ninguém queria ser o primeiro a invadir a camada uniforme de feno. Porém, trabalho era trabalho, e assim se puseram à faina.
Os homens mal começavam a dar os primeiros golpes quando ouviram o troar de rodas. Uma semana antes, um casamento na cidade provocara grande alvoroço entre as amigas de Valerie; naquele momento, as meninas não conseguiram evitar pensar se a carga estrangeira das carroças mudaria suas vidas. Mas os homens mais velhos da aldeia, já calejados no trabalho, eram donos de um triste saber: por melhor que os rapazes fossem, nunca seriam capazes de corresponder às expectativas das garotas.
A carroça deu um solavanco até parar; o cavalo que a puxava, preto que nem tinta, parecia uma sombra contra o fundo claro de trigo. À medida que os trabalhadores convidados de outras aldeias começaram a aparecer, as garotas se ergueram dos montes de feno onde estavam sentadas, batendo nas saias para se prepararem. Os rapazes eram cheios de energia, jovens e fortes, e Valerie ficou feliz pelas amigas que estavam abobadas de tanta excitação. De alguma forma, porém, sabia que não haveria ninguém para ela – não entre esses rapazes da aldeia. Faltava-lhes... alguma coisa.
Ao saírem, os homens protegeram os olhos do sol. Carregavam cobertores enrolados em pacotes e casacos pendurados soltos sobre os ombros.
Os olhos dos mais jovens passaram rapidamente pelas meninas. Eles conheciam bem essa dança. Um ceifador especialmente ansioso parou diante de uma atordoada Roxanne, que prendeu a respiração com medo de perturbar o ar ao seu redor.
— Oi! — ele disse, se esforçando e mostrando todos os dentes.
Ele não viu Prudence beliscar a coxa de Roxanne.
— Olá! — Prudence respondeu por ela.
Lucie olhou para baixo, recatada, enquanto Rose ergueu os seios no espartilho. Os olhos de Prudence brilhavam, disparando de um rapaz para outro, pesando seus contras (este tem os braços compridos demais) e suas vantagens (mas tem também o alforje de couro mais bonito). A escolha parecia uma questão de extrema importância.
Assim que eles se foram, as meninas correram em direção às outras em um amontoado, mal conseguindo evitar a colisão.
— São tantos! — Roxanne gritou, soprando uma mecha solta de cabelo.
— Apenas a quantidade certa — Prudence recuperou a respiração, tendo selecionado os bons.
— Um para cada, com alguns sobrando para mim — Rose tropeçou na saia.
— Valerie, você tem certeza que trouxe o chá? — Lucie interrompeu, dando uma parada momentânea na excitação.
— Sim.
Lucie lançou-lhe um olhar, conhecendo a cabeça distraída da irmã.
— Sim, sim, tenho certeza — Valerie disse, batendo na sua sacola.
Elas começaram a desfiar as reclamações sem mesmo considerar que os rapazes poderiam gostar de dar mínima palavrinha na questão. Prudence sentiu que ela merecia o ceifador que viera até Roxanne, pois havia sido a única a realmente falar com ele. Valerie pensou que ela estava se impondo um pouco demais, mas Roxanne não argumentou, pois estava de olho em alguém mais calmo e menos saliente, de qualquer maneira.
Lucie apontou para um ceifador que passava, corpulento e de ceroulas.
— Lá vai o seu marido agora, Rose!
— Pelo menos não tenho queda por um tosador de ovelhas que poderia ser meu avô — o rosto anguloso de Rose fazia-a parecer zangada, mesmo quando não estava.
Roxanne sentiu-se compelida a mencionar a pessoa que faltava no cenário.
— Ah, quem se importa? — ela disse, alisando uma mecha de seu cabelo vermelho. — Henry é mais bonito que todos eles.
— Você sabe que ele não vai se casar com qualquer uma de nós, moças da aldeia — Prudence falou rispidamente, como ela fazia às vezes. — Somos todas muito pobres.
As meninas viram o chefe da aldeia e o oficial de justiça vindo até elas, então se meteram nos campos e se puseram a trabalhar, movimentando as pernas finas conforme recolhiam o feno com os ancinhos, deixando-o em fileiras para a secagem. Valerie gostaria de não se sentir tão distante da emoção de suas amigas; deveria ser maravilhoso sentir-se estonteada de tanta alegria, como acontecia com elas. Por mais que tentasse, o amor nunca havia sido um tema de muito interesse para ela. Naquele momento, sentiu o desânimo que as pessoas sentem após um feriado ter vindo e acabado.
Vendo o desinteresse de Valerie, Prudence ficou satisfeita. “Haverá mais para eu escolher”, pensou, examinando os homens nos campos. Apenas então viu outra carroça chegando, tão inesperadamente que sequer teve a chance de trocar olhares com as amigas antes de suas rodas enormes pararem de girar. No entanto, as outras também viram. Lucie ergueu a cabeça, mas fingia trabalhar, catando e deixando a mesma pequena pilha várias vezes. Rose secou o rosto com o forro da saia, e Roxanne afastou o cabelo que pendia na sua testa, já grudenta de suor do ar opressivo.
O cavalo desacelerou até parar; as rodas da carroça deram um tranco para a frente pela última vez e, em seguida, pendeu para trás num sulco da estrada. Valerie observou como alguns homens mais velhos saíram com dificuldade da carroça, mas depois voltou a trabalhar com seu ancinho de dentes largos enquanto o resto dos ceifadores foi saindo. Ela podia sentir suas amigas examinando os recém-chegados.
Anos mais tarde, ao se lembrar desta manhã, ela não tinha certeza do que a fizera erguer o olhar novamente, alterando o rumo de sua vida para sempre – ela sempre dissera que havia sentido algo no canto dos olhos, obrigando-a a olhar quase como se alguém tivesse dado um tapinha no seu ombro para fazê-la se virar. Ao levantar os olhos, viu um jovem de cabelos escuros, estonteante de parar o coração.
Ele parecia selvagem e fantasmagórico, todo vestido de preto, como um cavalo que não podia ser domesticado. Valerie sentiu a respiração se esvair de dentro dela.
Peter e Valerie haviam passado o dia perseguindo um ao outro pelos campos, colhendo enormes cogumelos brancos, cujos fundos cor de carvão, sujos e em camadas, eram tenros e farinhentos. Ao chegarem à praça, desabaram de tão cansados e começaram um jogo de adivinhação e mímica, uma coisa na qual Valerie nunca fora boa. Ficou totalmente perdida, incapaz de lembrar se estavam na terceira ou na segunda sílaba da terceira ou da quinta palavra e, depois, pensou: “espere aí, quantas palavras eram no total?”
Mas o pai de Peter apareceu do nada e o puxou, dizendo: “Precisamos partir. Agora.”
Os gritos ecoavam atrás dele: “Vigarista! Canalha! Ladrão!”
Peter havia olhado por cima do ombro de seu pai enquanto este o arrastava pela mão. Os moradores se reuniram em uma multidão, agitando armas. Um camponês irritado perseguiu-os com uma tocha acesa estendida: “Isso mesmo, saiam daqui! E não voltem mais.”
Eles deixaram a cidade imediatamente, e foi a última vez que Valerie viu Peter. Pelo olhar dos aldeões naquele dia, ela presumiu que ele estava morto. Mas agora...
“Devo estar louca”, pensou. Havia sido há dez anos. Ela desistira, parara de buscar suas setas. Não podia ser a mesma pessoa... será?
Também vendo o rapaz, as amigas se entreolharam preocupadas. Ele não se parecia com mais ninguém; era como o brilho púrpura na base de uma chama: o mais bonito e o mais perigoso.
Ele manteve a cabeça abaixada enquanto se movimentava através dos campos, os olhos presos no chão. Evitou encontrar os olhos dos aldeões; era óbvio, ele não respondia a ninguém.
Vendo o olhar transfigurado de Valerie, Lucie jogou um pouco de feno no ar diante dela. Mas Valerie não despertou.
Ela avançou mais perto dele. Será que é ele? Mas o oficial de justiça a interrompeu, surgindo no meio de um trecho pesado cheio de juncos e a instruiu a ficar em sua fileira. Valerie se perguntou rapidamente se o oficial suspeitara de algo, se ele havia notado a forma como ela reagira, o modo como sua pele havia ruborizado e seus olhos abrandado, e fora separá-los propositadamente. Sentiu-se envergonhada, mas recuperou seu bom senso. Ele não teria nenhum motivo para isso. Estava apenas curiosa, saudosa de seu amigo de infância e da diversão que haviam vivenciado juntos no passado.
Ele era apenas um menino com quem brincara, mais velho agora. Certo?
O oficial de justiça continuou vociferando uma cadeia ininterrupta de ordens que, com o tempo, passou a soar como um refrão. Ela observou quando a pessoa que poderia ser Peter depositou seu bornal no chão – um pedaço de pano desgastado, com a abertura fechada por um pedaço de cordão roto. Começou a manejar a enorme foice, brandindo-a pelo feno com destreza. Ele colou o queixo ao peito, enterrando o rosto no trabalho.
Valerie tentou observá-lo, mas o maior dos ceifadores surgiu entre eles, sem camisa, com os braços musculosos que pareciam toras. Quando o ceifador monolítico não estava no caminho, o oficial ficava se entrelaçando entre as fileiras. Valerie só conseguia ver o objeto de sua atenção de relance. Uma mão segurando o cabo do ancinho... uma panturrilha morena e lisa... um pedaço do queixo. Ele atacava o feno com um movimento rítmico. Batendo. Suando. Os músculos trabalhando.
Finalmente, ela pegou um bom ângulo. Era Peter. Ela tinha certeza. Seu coração bateu mais forte no peito, mesmo agora, tantos anos depois. Naquela época, havia sido uma paixão inocente e passageira, algo entre crianças, mas agora... ela sentiu algo mais.
Valerie lembrou-se de quando ela e Peter costumavam deitar, de bruços, aninhados nas raízes que se alastravam do Grande Pinheiro. Depois, subiam até o topo para ver todas as outras aldeias que visitariam um dia, após deixarem sua própria aldeia.
Apenas Peter havia saído realmente.
Agora Valerie desejava estar perto dele, conhecê-lo novamente, saber se ele ainda era o mesmo. Estava perdida nestes pensamentos, e seus olhos repousavam nele quando ele ergueu o olhar. Seus olhos encontraram os dela em meio ao ar salpicado de feno. Ele fez uma pausa no ritmo de trabalho, os olhos castanhos quietos e opacos. Então, ele desviou o olhar.
Será que não a reconheceu? Será que ele havia se esquecido? Ou talvez pertencesse a outra pessoa...
O ancinho de Valerie pairou no ar, suspenso.
Será que ela deveria ir até ele? Mas, então, como se nada tivesse acontecido – vush, vush, vush – cingindo a foice firme e rapidamente, Peter estava de volta ao trabalho. Ele não ergueu o olhar novamente.
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