segunda-feira, 16 de junho de 2014

4° Capitulo - A Garota da Capa Vermelha

— Valerie!
Ajoelhada no chão, prendendo um feixe de feno da cor do mel, ela ouviu uma voz masculina forte acima dela. Ele se lembra. Ela ficou quieta, congelada, incapaz de olhar para cima.
— Valerie?
Ela lentamente ergueu a cabeça – apenas para ver Henry Lazar, que segurava um desgastado jarro de água.
— Você está bem?
— Sim.
— Pensei que tivesse ficado surda de tanto trabalhar.
Suas sobrancelhas escuras se ergueram em curvas com a pergunta.
— Ah! Não — ela hesitou, abalada.
Ela ignorou a água e pegou a enorme marreta de cobre que ele segurava na outra mão e levantou-a até o rosto. O metal era fresco e delicioso.
Olhou ao redor; o movimento da colheita havia abrandado na névoa dourada da poeira. Tentou se mexer em um ângulo mais favorável para enxergar melhor. O problema, no entanto, foi que Henry se movimentou, bloqueando Peter de sua visão.
Valerie sentiu o calor penetrar na marreta, e logo ela já não prestava mais. Quando a devolveu, Henry piscou para ela e riu. Valerie colocou a mão no rosto – ela saiu preta. Havia um círculo de fuligem em cada uma de suas bochechas.
— Você é como uma boneca de porcelana durona.
Apesar das palavras, ela gostou de ouvir aquilo.
Valerie dispensou o lenço dele e limpou o rosto em sua manga. Sabia que a água era apenas uma desculpa para Henry estar nos campos, para ser incluído no dia. Ele ficava de fora de um monte de coisas por causa da posição de sua família na cidade; era difícil para ele, ela sabia, estar em uma classe à parte. Porém, ela olhou para as botas de couro novas dele, tão reluzentes que soltavam reflexos, e perdeu qualquer solidariedade que tivesse por ele. Comprar botas como aquelas quando as pessoas ao redor não tinham o que comer parecia muita insensibilidade.
— Sei que são idiotas — ele disse, com um sorriso. Valerie percebeu que não havia sido sutil. — É constrangedor. Mas foram um presente da minha Avó.
“Ainda não está bem”, ela pensou, sentindo-se agressiva. Tentou ver se Peter notara que ela falava com Henry. Mas ele não parecia ter nenhum interesse; Valerie poderia dizer que ele não havia olhado sequer uma vez.
Henry resmungou que precisava oferecer água para os outros. Todas as jovens em torno, que relaxaram o trabalho para observar Henry, rapidamente retomaram a atividade de prender o feno a seus pés. Quando ele continuou abaixo da fileira, porém, Valerie pôde sentir os olhos persistentes nela por mais tempo que deveriam.
Henry sabia que Valerie estava em um de seus dias de humor contrariado. Ela queria ficar sozinha. Ao se afastar, no entanto, não pôde deixar de observá-la. Circulavam boatos, rumores de que ela havia visto o Lobo quando criança, que isso a mudara e que ela nunca voltaria a ser a mesma. Quando alguém perguntava, ela não dizia nada. Mas era um lugarejo, e não havia segredos.
Ele sempre soube que ela era diferente, mas ele sempre se sentiu um pouco diferente também. Henry pensava que talvez eles pudessem ser diferentes juntos.



O sol do meio-dia brilhou abaixo do centro do céu; ele já tinha tostado os campos, que cheiravam a queimado. Abrigados do calor cruel, os trabalhadores cuidavam do almoço sob um bosque na beirada dos campos – como sempre, os homens em um grupo e as mulheres reunidas em outro.
— Olhem para mim! — Roxanne girou, as sementes de feno caindo em volta, como confetes. — Eu me sinto como uma vaca.
— Você está coberta de coisas. — Rose franziu a testa, arrancando pedaços de feno de seu cabelo.
— Pare de girar feito uma idiota — Prudence sibilou. — Você não quer que os rapazes pensem que você é adulta?
Enquanto observava Peter se juntar aos homens ao redor dos barris de água, Valerie desligou-se da voz das amigas, que soavam para ela como um bando de galinhas cacarejando. Levou um bom tempo enxugando as mãos na saia, cuidando para manter certa distância dele. Na fila da bebida, Peter estava curvado, examinando algo em seu alforje. Ele olhou para cima e capturou seu olhar novamente. Ela congelou. Será que ela deveria dizer algo? Esperou silenciosamente, observando a maneira como seus olhos brilhavam. Seria por tê-la reconhecido?
Os ceifadores na fila atrás de Peter o cutucaram. Ele jogou o bornal sobre o ombro e abriu caminho, passando pelo resto dos homens famintos e esquecendo-se da comida.
Uma das garotas puxou a saia de Valerie, e ela relutantemente se afundou no capim, observando-o partir.



À beira do rio, alguns aldeões se dependuravam em uma corda amarrada em um galho pendente, desafiando os outros a pular na água fria.
— Henry, vá! — um deles gritou.
Henry impulsionou seu corpo para fora da borda do barranco, segurando firme a corda, e soltou-a no ponto mais alto do arco superior. Mergulhando na água, ele nadou algumas braçadas e, em seguida, emergiu, batendo os dentes. Um cachorro veio correndo, latindo em protesto. Henry o chamou. Quando ele se recusou a vir, Henry, encolhido pelo frio, atirou um galho. No entanto, o cachorro se distraiu com o seu dono que se inclinara para beber um pouco de água, um dos ceifadores de fora. Outros apareceram, preguiçosamente, ao seu lado – homens exaustos pelo trabalho duro do dia, alquebrados, arrastando os pés. Mas um deles se aproximou da água e se destacou, moreno e imponente.
Henry o reconheceu imediatamente. Era Peter.
O coração de Henry bateu forte. Como precisava pensar, ele encheu os pulmões e afundou abaixo da superfície, fazendo o mundo desaparecer. Abriu os olhos na calma do verde abaixo. A corrente não era rápida onde estava, e ele deixou-se ir, suspenso pelo empuxo da água. Ele ficaria ali para sempre, num mundo de paz, onde não haveria mães mortas. Nem assassinos de mães. “É aqui que eu vou ficar”, a mente submersa de Henry decidiu.
Porém, seus pulmões decidiram de forma diferente, inicialmente incomodando e finalmente ameaçando estourar.
A cabeça explodiu na superfície. Os olhos se fecharam, afastando a água. Ele olhou para a margem, e piscou novamente para ter certeza.
Os trabalhadores haviam ido embora. E com eles, Peter.
Alguns dos outros rapazes se aquietaram, olhando nervosamente para Henry. Fazia silêncio, com exceção de um pássaro piando nos pinheiros próximos. O pai de Henry parecia especialmente preocupado. Adrien observou o filho sair da margem, mas Henry se recusou a encontrar o seu olhar. Em vez disso, nadou furiosamente, em perfeita forma, com os músculos queimando que sentia que iam se rasgar. O choque do frio era um mal menor, um conforto, comparado ao fato de ter visto Peter.
Ao nadar, ele tentou afastar para longe a lembrança horrível do dia em que Peter deixara a cidade. Entretanto, mesmo se nadasse até o fim do mundo não seria o suficiente para deixar para trás a imagem de seu pai, um homem duro, alto e forte, chorando lágrimas desesperadas sobre a sua mãe deitada na rua.



Ver Henry Lazar olhando para ele com horror deixara Peter se sentindo mal. Do mesmo modo que sentira naquele dia, há tantos anos. Teve de se afastar antes de Henry emergir novamente da água. Encontrou uma desculpa – disse aos homens que deveria ajudar a montar o acampamento das mulheres.
Por que ele voltou para a aldeia? Por muitos anos, Peter evitara Daggorhorn, o local do terrível acidente.
Ele martelava uma estaca, dirigindo-a impiedosamente para a terra, a um ritmo em que ele poderia ordenar seus pensamentos. Havia algo em Daggorhorn que sempre o atraía, ele se lembrou. Mas tinha medo de estar li. Com ela. Sua lembrança era de que a amava tanto. Eles eram apenas crianças. Era melhor mantê-la como era, mantê-la a salvo como uma pedra polida.
Chegando de carroça, Peter havia encontrado seu caminho como se estivesse em um sonho, impulsionado por uma força irresistível até a aldeia que ele já conhecera tão bem. Como é estranho que tudo à vista, cada árvore, cada pequena curva na estrada, recordava-lhe a mesma garota, a única com enormes olhos enormes verdes. E lá estava ela, imóvel.
Linda. Uma beleza tão poderosa que quase doía. Mas que trazia lembranças de um passado que ele havia tentado esquecer.
A cometa soou dos campos, sinalizando o fim do almoço, marcando o fim das lembranças. Estava na hora de voltar ao trabalho.
Por que voltei?



O oficial de justiça, exausto, organizava os pares de mulheres que pisoteariam o feno nos leitos das carroças, junto com os homens que passariam as braçadas para elas. Sua barba espessa estava espetada, devido ao calor.
Valerie olhou adiante na fileira de feixes bem amarrados e olhou para a esquerda na fila dos homens, procurando-o. Algo atraiu seu olhar para o meio da fila. Os olhos claros de Peter estavam fixos nos dela, e a distância entre eles parecia irradiar um calor translúcido. Sem pensar, ela afastou-se de algumas mulheres ansiosas atrás dela e se pôs mais para trás na fila. Ela seria colocada em dupla com Peter.
O oficial de justiça passou no meio do corredor entre os homens e as mulheres, tocando nos ombros para distribuir os parceiros. Com a palma áspera, ele encostou em Valerie e depois em Peter; em seguida, murmurou “você com você” com a voz rude. Embora ela ouvisse o oficial de justiça recitar essas mesmas palavras fila abaixo, ela sentiu que, ao dizer isso em relação a ela e Peter, elas foram mágicas, tornando a ligação entre eles concreta.
O pulso dela se acelerou enquanto trabalharam duro juntos durante toda a tarde. Ela gostava de sentir os feixes que ele acabava de passar.
E, no entanto, ele não olhou para ela sequer uma vez. Foi esse não olhar, porém, que significava mais que tudo. Ou Valerie estaria apenas imaginando isso?
O oficial de justiça se metia entre as fileiras, monitorando sempre, e nunca havia a oportunidade de conversar. Foram fiscalizados a tarde inteira. Parecia que ela não fora a única a notar o homem surpreendente – ou que se lembrava dele. Toda vez que Valerie começava a se curvar para baixo, empenhada em dizer algo, alguém aparecia para interromper.
O dia girou lentamente até seu desfecho: o céu tornou-se um cinza-esverdeado poeirento. O oficial de justiça estava em pé por perto, olhando, apoiado em uma perna, um tornozelo cruzado sobre o outro. Seu cavalo grande e preto piscava os olhos lentamente e também observava, pois não havia muita coisa para se ver além dos aldeões se agrupando, hesitantes em deixar o dia passar. Eles sabiam que quanto mais cedo a noite caía, mais cedo viria a manhã.
Tendo trabalhado muito, agora estavam exaustos, as mãos penduradas frouxamente ao seu lado, segurando ferramentas obsoletas. Eles se reuniram em massa, como um enxame de gafanhotos, e riam à solta como se não tivessem sequer uma preocupação.
Os rapazes brincavam de pega-pega, esquivando-se um do outro e puxando-se pelas camisas; seus corpos jovens sentiam-se despertos após o duro dia de trabalho. Bebiam lá fora, no frio, sentindo a maneira com que as mãos calejadas se movimentavam pelo ar noturno abafado, obscurecido pelo feno.
Empilhando seu último fardo, Valerie viu Peter curvar-se para pegar seu alforje, prestes a partir.
Era agora ou nunca.
— Peter...
Ele se endireitou, de costas para ela como uma parede. Então, lentamente, virou o rosto na direção dela e encontrou os seus olhos. Seu olhar fixo penetrou-a como uma faca.
Antes que ela pudesse se deter, perguntou:
— Você se lembra?
Ele deu um passo na direção dela. Ela sentiu uma labareda de calor surgir entre eles.
— Como poderia esquecer?
Ela sentiu-se enfraquecer de alegria. O supervisor tocou a cometa nos campos brilhantes cor de ferrugem, sinalizando o fim do dia e o início da celebração da fogueira no acampamento.
Peter manteve os olhos nos dela por um momento mais antes de se virar e partir. Valerie observou, empoleirada na carroça, enquanto ele desaparecia entre as árvores.

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