Lá embaixo, perto do rio, um trabalhador puxava punhados de penas de um frango flácido, largando-as descuidadamente no chão. Os aldeões assavam outra ave sobre a fogueira, girando o longo espeto. O cheiro forte do feno recém-cortado, enrolado em fardos desmazelados, despertara os instintos animais dos moradores. Eles se sentiam lascivos em sua exaustão.
Valerie viu os homens colocarem barris enormes que, quando esvaziados, poderiam ser usados para descer morro abaixo. Barris como aqueles em que Valerie e Peter haviam ficado por algum tempo, certa vez, escondidos dos adultos. O mundo exterior reduzira-se a um ruído monótono dos confins do bosque onde estavam agachados, soltando risadas divertidas.
As lembranças de seu tempo com Peter eram tão concretas e compactas como algo que ela pudesse segurar. Como poderia esquecer? A nova lembrança se sobrepunha à antiga.
Alguém agora tocava na flauta uma melodia fantasmagórica. Seu pai comia ao som da música e teatralmente batia os pés a cada trinado.
— Ajuda a digestão — Cesaire falou, movimentando a cabeça conforme o flautista tocava.
Foi a primeira vez que ela o viu o dia todo.
Valerie mordeu a enorme coxa de frango, seu segundo pedaço. Prudence mediu, com inveja, a cintura fina de Valerie com as duas mãos: os dedos se tocavam.
— Não é justo! — ela reclamou.
Rose puxou as meninas de lado e as levou até a beira do rio para mostrar um barco velho que havia sido escondido no mato da margem naquela tarde. Era de um cinza desbotado pelo sol, manchado de excrementos de aves e de vestígios de água barrenta, com o tom decepcionante de manchas marrons cor de café.
— Isso vai bastar — Valerie disse, com um aceno de aprovação.
Caminhando de volta do rio, Valerie viu que Peter havia voltado e que o oficial de justiça estava parado diante dele.
— Vamos limpar a área de pinheiros amanhã, e eu poderia empregar um homem como você. Podemos contratá-lo.
— Você trabalha bem — Cesaire acrescentou, espontaneamente.
Valerie ficou surpresa com o que o pai havia dito, porém satisfeita.
Peter ouviu, olhando com dúvida.
— Vamos lhe dar um machado — o oficial de justiça completou.
Suas bochechas eram grossas e ásperas.
Peter sacou seu próprio machado de um bolso traseiro e o girou.
— Eu tenho o meu. Quero o dobro para cortar árvores.
O oficial de justiça ergueu uma sobrancelha e, mesmo com relutância, concordou com o preço. O rapaz trabalhava bem. Ele havia colhido mais feno que os outros.
— Muito bem! — ele se virou. — Os homens, nas rochas grandes, na outra margem do rio! As mulheres vão ficar deste lado.
Como rezava a tradição, os homens e as mulheres acampariam separados.
Apesar da separação costumeira, a mãe de Prudence estava preocupada. Era o primeiro ano que sua filha estava lá, e dizia-se que há muito tempo alguém havia sido morto pelo Lobo. Alguns diziam que havia sido uma criança; outros disseram que foram três meninas que se afastaram durante um mergulho. Outros ainda garantiram que fora uma mulher que havia fugido após ser surpreendida com um amante.
Tal como acontece com muito do folclore sobre o Lobo, ninguém sabia ao certo o que exatamente acontecera nem com quem. Todo mundo sabia apenas que algo acontecera com alguém.
— Espero que estejamos a salvo aqui. Talvez o meu marido possa ficar.
Ela sempre parecia estar prestes a espirrar ou chorar.
— Mãe — Prudence disse seriamente — não há com o que se preocupar. O Lobo pegou um cordeiro na noite passada no altar. Nós estamos salvos por mais um mês.
— Só mulheres, aqui — outra moça disse bruscamente. — Vai dar tudo certo.
— Tudo bem, então, meninas. — A mãe de Prudence chamou-as para perto, dando-lhes instruções especiais. — Durmam com os sapatos sob o travesseiro. Não deixem que os roubem durante a noite.
As meninas concordaram com falsa seriedade. Estavam acostumadas com suas maluquices.
— Mas, esperem aí, ele ainda não cantou. Vocês vão querer ouvi-lo — um trabalhador gritou, apontando para um homem atarracado, com um nariz que lhe assentava no rosto como um pepino.
— Cante uma música para nós, então. Vamos logo com isso. — O oficial de justiça ordenou, sério.
— Não sei se consigo — o trabalhador respondeu, de cócoras, com falsa modéstia.
— Sim, claro que sim.
— Bem... então, claro. Acho que sim.
Sua música era ritmada e bela, uma balada. Os aldeões se juntaram e deixaram se levar pelo som, um som que deslizava sobre o rio, que envolvia o bosque, que reunia tudo de uma vez. Valerie fechou os olhos, mas os abriu de novo ao sentir alguém próximo dela. Era Peter. Ele havia se aproximado muito; sua respiração aquecia o ouvido dela.
— Me encontre mais tarde.
Ela corajosamente se virou e o encarou.
— Como?
De perto, ele estava lindo, de estontear. O cabelo espesso e escuro caía sobre um dos olhos.
— Espere o meu sinal de luz.
Tudo o que ela pôde fazer foi acenar com a cabeça, impressionada com sua própria reação física. Ela conseguiu se recompor, mas ele já havia partido.
Depois que os homens saíram em barcos para o acampamento do outro lado do rio, as meninas se reuniram dentro da barraca que compartilhavam com a mãe de Prudence. Sentadas em círculo, teciam guirlandas para servir de pesos sobre as pilhas de feno e esperavam que o sono dominasse suas companheiras inquietas. Elas ficaram sobre terra lisa e estavam ao redor de uma grande lanterna que tinha um desenho recortado: pontos e ganchos irradiavam a partir do centro, projetando um mundo de formas no chão e nas paredes revoltas da barraca de lona.
— O chá — Prudence murmurou, estendendo a palma da mão aberta.
A mãe dela não demonstrava nenhum sinal de sono. Bem na noite em que precisavam que ela dormisse, ela estava alerta de preocupação, e Prudence queria ter certeza de que ela não acordaria a cada mexida nos troncos da fogueira. Valerie desenterrou das profundezas de sua bolsa um saco de chá da Avó, com sálvia, para induzir o sono.
Prudence saiu da barraca para preparar a poção do sono; os olhos brilhavam quando ela se inclinou sobre os carvões da fogueira, já enfraquecidos. Pôs-se de cócoras novamente e entrou, entregando a cada menina uma caneca de chá simples, deixando a poção especial da Avó para a última xícara, que entregou a sua mãe.
Elas esperaram que ela bebesse, tentando não parecer interessadas demais.
— Obrigada! — A mãe de Prudence a levou aos lábios e, em seguida, deitou-a para baixo. — Quente demais — ela falou, estremecendo.
As garotas se entreolharam. Mas ela, à sua maneira rápida e nervosa, logo a pegou novamente.
Enquanto ela bebericava o chá, as meninas conversavam sobre bobeiras. A mistura não parecia fazer nenhum efeito. Dentro de mais alguns instantes, porém, as meninas olharam para baixo, e ela tinha se enrolado nas cobertas.
— Agora, meninas, vão para a cama.
Foi tudo que a mãe conseguiu dizer, apoiada nos cotovelos, sentindo-se cada vez mais pesada. Logo caíra no sono e roncava sobre o chão.
As garotas espiaram de longe o acampamento masculino, totalmente escuro do outro lado do rio, ansiosas para ver o que a noite escondia. Prudence tossiu alto: um teste. A mãe nem se mexeu. Agora, elas podiam falar livremente.
Roxanne não conseguia conter a excitação:
— Valerie, peguei o Henry olhando para você hoje.
— Não sei o que fazer — Valerie soltou. — Também achei que ele estava olhando. Na verdade, ele é legal. Mas isso é tudo...
— Legal? Valerie, ele é rico!
— Eu até mataria para estar no seu lugar — Prudence falou com convicção. — Você não deve desperdiçar essa oportunidade.
— Não sei, realmente — Valerie refletiu, pensando no que sentiu ao ver Peter. — Como será que é o amor?
— Se você não sabe como é, então, obviamente você não ama — falou Lucie rispidamente, o que não era típico dela.
Valerie se sentiu magoada. No entanto, ela sabia que Lucie fazia as outras pessoas se apaixonarem por ela instantaneamente, mas havia algo que evitava que ela fosse a garota que todos os rapazes amavam. Valerie tinha consciência de que era um assunto delicado e, portanto, impressionada com o seu próprio tato, ficou em silêncio.
— Você acredita que Peter está de volta? — perguntou Roxanne, mudando rapidamente de assunto, enquanto penteava a chama de seu cabelo colorido com os dedos para tirar qualquer vestígio de palha.
— Não — Valerie respondeu, feliz com a mudança de assunto até perceber que não poderia ser muito franca sobre isso, também. Ela balançou a cabeça para si mesma. — Não dá mesmo para acreditar.
— Ele está incrível, lindo.
— Acho que ele parece um vilão! — Lucie segurou uma foice imaginária e imitou seu andar pomposo, provocando um acesso de risos nas garotas. Ela fechou os olhos enquanto ria, algo que Valerie sempre apreciava na irmã.
Prudence, porém, manteve-se séria.
— Você acha que ele matou pessoas?
— Como quem? — Roxanne se perguntou.
— Mulheres.
Roxanne parecia desconfortável.
— O que eu não consigo acreditar é que você costumava ser a melhor amiga dele — Prudence se dirigiu a Valerie.
— Eles tinham o hábito de fazer tudo juntos — Lucie acrescentou, com um pouco de má vontade.
Valerie ficou surpresa. Lucie não parecia ser a mesma.
— Antes de ele se tornar um assassino — Prudence disse com prazer.
As meninas pensavam no assunto. Valerie sempre teve medo de saber os detalhes precisos do que acontecera. Havia sido um acidente. Quando Peter e seu pai criminoso fugiram da aldeia, o cavalo deles haviam empinado, amedrontado e assustado pela multidão e suas tochas – e a mãe de Henry fora atingida. Valerie sabia apenas vagamente do incidente, pois era muito nova para ouvir essas coisas na época, e o assunto foi velado mais tarde – totalmente proibido. Daggorhorn era assim. Os traumas iam e vinham. Tinham de ser superados e assim terminavam. Mas Valerie sabia que Henry nunca superara isso.
— Espere só — Prudence falou — trouxe uma coisa.
Ela buscou sua bolsa e tirou alguns frascos. Havia roubado um pouco de cerveja de casca de carvalho fabricada pelo pai em um tonel gigante na parte de trás do estábulo.
— Achei que ele não sentiria a falta de alguns frascos — ela disse.
As garotas se revezaram, tomando pequenos goles do líquido ardente, mas Rose era a mais entusiasmada.
— Ouvi dizer que isso pode cegar — Lucie fez cara de gozação e pegou a garrafa.
— Tem gosto de mingau podre — Valerie experimentou e cuspiu.
Prudence olhou para ela, ofendida. Ela também não gostou, mas sentiu que, de certa forma, a declaração de Valerie atingia o pai dela em cheio.
— Tudo bem, sobra mais para nós, então — ela retrucou.
— Roxanne? — Rose ofereceu o frasco, provocando e já sabendo a resposta.
— Também ouvi dizer isso, da cegueira — ela olhou, encurralada. — Caso contrário, eu tomaria mais. — ela acrescentou rapidamente.
— Você que sabe. — Rose deu de ombros. Entusiasmada com a bebida, deixou escapar algo que obviamente morria de vontade de compartilhar. — Henry pode ter sido visto olhando para você, Valerie, mas foi o meu ombro que ele tocou quando passou por mim na igreja nesta semana.
— Tocou como? — Roxanne quis saber.
— De modo muito suave e doce.
Rose demonstrou em Valerie. Em um de seus raros momentos de sinceridade feminina, ela perguntou:
— Você acha que foi um flerte?
— Eu acho — Roxanne era otimista.
Lucie corou. Ela sempre se sentia desconfortável ao falar de rapazes.
— Você vai ter de enfrentá-los em algum momento, Lucie — Roxanne repreendeu. — Vamos lá, você deve achar que alguém é bonito...
Lucie sorriu, e as lágrimas foram se formando em seus olhos, tanto de riso quanto de constrangimento. Ainda sorrindo, ela se inclinou e escondeu o rosto no colo de Valerie.
A conversa das meninas se aquietou enquanto a noite escurecia até ficar completamente negra. Juntas, estavam confortáveis mesmo sem conversar, ouvindo apenas os elementos da natureza.
Valerie olhou para Lucie, que adormecera em seu colo com as mãos juntas sob o rosto. Engraçado como às vezes parecia que ela era a irmã mais velha.
— Você já se perguntou — Rose quis saber, inclinando-se para o círculo — como o Henry é...
— Como ele é...? — Roxanne franziu o nariz arrebitado e sardento, confusa.
— Sem as roupas? — Rose explodiu.
— Credo! Não! E você?
Rose sorriu diabolicamente e ajeitou o cabelo.
— Acho que sim... se estou perguntando.
A cena que Rose imaginava incluía, naturalmente, um fogo crepitando, peles de animais dobradas e abundantes taças de vinho.
— Eu já vi meu pai uma vez — Prudence interrompeu.
As meninas gritaram juntas, animadas e com repugnância ao mesmo tempo, e então rapidamente se aquietaram. Com chá ou sem chá, elas poderiam acordar a mãe de Prudence.
Lucie, ainda aninhada no colo de Valerie, acordou com os gritos delas bem quando Valerie viu o sinal de Peter – uma vela cuja chama tremulava vagamente do outro lado do rio.
— Vamos!
Lucie olhou para ela com os olhos ainda enevoados.
— Qual é a pressa? — ela perguntou, apertando os olhos.
Ela conhecia bem a irmã. Bem demais...
— Porque... — Valerie pensou rapidamente. — Estamos perdendo tempo. Precisamos atravessar o rio agora, antes que o efeito do chá diminua.
As meninas se entreolharam e, em seguida, viram o rio fresco que lambia insistentemente a margem. Valerie estava certa. Já estava na hora.
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