segunda-feira, 16 de junho de 2014

7° Capitulo - A Garota da Capa Vermelha

— Eu me lembro quando era menina — Suzette dizia, sentada em um banquinho. — Tinha onze anos quando vi a minha primeira lua de sangue. Era jovem e louca por um garoto. Foi quase romântico.
Com um trejeito vaidoso, ela enrolou no dedo uma mecha de seu cabelo ondulado na altura dos ombros.
— Se não tivesse sido tão horrível, é claro.
Perdida em seus próprios pensamentos, Valerie não ouvia nada. Na parte da manhã, com tarefas a fazer, os medos de noite anterior pareciam triviais, e o pânico, injustificado. Enquanto ela sovava uma massa cheia de farinha e firme, a mente saltava de um pensamento a outro. Não estava preocupada com Peter, havia ponderado, porque ele parecia saber de coisas que as outras pessoas ignoravam.
Sentia que ele poderia lhe ensinar os seus segredos e lhe contar sobre o mundo. Sentia que poderia dar forma às coisas, do mesmo jeito que fazia para esculpir santos de blocos de madeira disformes. Porém, ela se lembrou... ele estava lá apenas para a colheita... e sua família jamais permitiria que fosse com ele por causa de seu passado na cidade.
Valerie pressionou todo o seu peso na massa, irracionalmente irritada com a dificuldade da tarefa e com a monotonia de estar dentro de casa em um dia lindo. Ontem foi o último dia do outono, hoje o primeiro do inverno. Havia acordado nesta manhã com as solas dos pés lisas e secas no frio. Ela gostava disso. Agora, ouvia vozes lá fora, mas não pôde dizer a quem pertenciam – até ouvir a risada. A risada aguda de Rose. Ela se esforçou para saber se Lucie estava com ela. Ela era muito melhor que Valerie no preparo de pães e biscoitos, e normalmente a teria ajudado depois de ter feito a parte dela. Mas ela havia escapado, passando a noite na casa de Prudence.
— De qualquer forma — Suzette concluiu, percebendo que Valerie não estava ouvindo — eu diria que agora temos biscoitos prontos suficientes — e bateu as mãos sobre a mesa de forma decidida. — Nós vamos guardar... a sua massa — acrescentou, olhando para o tijolo pouco atraente que Valerie segurava.
Valerie ficou meio ausente enquanto Suzette embrulhava a dúzia de biscoitos de cevada quente e um pouco de queijo em um pano branco macio e os preparou para levá-los para os homens. Ela podia sentir o sabor do sonho que tivera na noite anterior; era fresco e cortante como um limão que experimentara certa vez numa feira.
— Valerie, enquanto eu levo o almoço para os homens, por favor, limpe e varra o chão. E depois — a mãe falou, assumindo um tom cansado — você poderia buscar um pouco de água?
— Sim. — Valerie respondeu, talvez um pouco rápido demais. — Pode deixar, vou sim.



No poço, Valerie começou a puxar a corda, recuperando o balde de água. Pensava na bebida fresca que estava prestes a levar para Peter, e em como se olhariam sobre a caneca enquanto ele bebia, concentrado nela. Imaginando o seu olhar penetrante, ela parou de puxar, relaxou o corpo, e os dedos soltaram a corda. O balde caiu e bateu violentamente contra a parede de pedra do poço. Respirou, ofegante, e puxou a corda enquanto o balde fazia barulho, quebrando a superfície da água.
Decidida e calma, puxou um novo balde de água. Em seguida, partiu para a área onde os homens cortavam as árvores.
O aroma seco de madeira recém-cortada penetrou nas narinas de Valerie quando ela se aproximou.
O oficial de justiça havia reunido um grupo de homens bem treinados que lançavam pesados golpes nas árvores. Ele não era de desperdiçar a oportunidade de contratar trabalhadores baratos quando estavam na cidade. Os homens trabalhavam em grupo, fazendo os mesmos movimentos, usando as mesmas roupas. Mas Peter se destacava. Ele havia prendido a camisa preta sobre os ombros, revelando músculos bronzeados e tesos. Recostada a uma árvore, ela viu seu belo corpo retorcendo a cada golpe do machado. Parecia ilícito vê-lo dessa forma. Mas de algum modo, também, já sentia que ele era dela.
Valerie ficou contente ao ver alguns restos do almoço de sua mãe descartados no chão. Suzette já havia chegado e ido.
— Estas acácias... elas têm a casca muito grossa — Peter disse ao oficial de justiça, apontando para as árvores espinhosas.
Ele enterrou o machado no tronco de uma árvore próxima e partiu para uma serra.
Valerie, vendo seu machado sozinho, disparou adiante para agarrá-lo e correu para se esconder atrás de uma árvore.
Um lenhador que estava por perto cessara os seus golpes e colocara o machado no ombro. Olhando para baixo, ele sorriu e fez um gesto cúmplice, prometendo ficar de boca calada.
Ela se afastou. Mas então viu que alguém havia deixado seu posto: era Cesaire, curvado e apoiado numa árvore, com a garrafa na mão e os olhos vazios. Ele erguia bocados de cozido à boca, a esmo, por vezes, errando o alvo.
Ela desviou o olhar, como sempre fazia. Seu pai era descuidado e um caso perdido; bebia até cair. Mas também era lenhador, caçador, forte e honesto. Era difícil vê-lo assim. Valerie sentiu emoções conflitantes; ele havia sido motivo de muito orgulho e de muita vergonha para ela.
À espera, começou a se perguntar por que Peter levava tanto tempo para perceber o machado roubado. Mas depois ele reapareceu, e imediatamente olhou para seu esconderijo. O sangue dela acelerou. Ele ficou feliz em vê-la, era certo, mas quando se aproximou, estava sombrio, não lhe dedicando a recepção calorosa que esperava.
Algo estava errado. Não podia ser que estivesse zangado com ela por lhe tomar o machado – não seria do seu feitio.
Ele a puxou mais para o meio da cobertura de folhagens para não ser visto ou ouvido. Ela estendeu a mão para ele. No ar mais frio, o cabelo dele estava tão seco e espesso que ela pensou que poderia contar os fios.
— Peter...
Ele a silenciou – seus dedos cobriram os lábios dela. Ela interpretou mal o seu gesto e, por um momento, ficou irritada, pois não aceitava muito bem a submissão. Mas como estava muito feliz, essa sensação se dissipou e ela esqueceu a raiva.
— Por que você está tão triste? — ela se ouviu lutando com ele, antes de qualquer coisa.
Não pôde evitar; seu coração parecia estar pronto para florescer.
— Me dá o machado.
— E o que você vai me dar em troca? — ela respondeu.
Ele deu um passo na direção dela, mas ela se afastou até um pinheiro. Ele se movimentou para bem perto, mas sem tocá-la. Vendo como ele estava sério, ela se rendeu; pressionou suavemente o machado contra o peito dele, deixando os dedos se abrirem no calor que ela encontrou lá.
— Valerie? — Peter parecia triste agora. — Eles não te contaram...
— O quê? — Valerie sorriu.
Ele ficava bonito quando estava preocupado. Ela pensou se o estava incomodando ou se ficaria irritada se os outros a vissem como uma forasteira.
— Me contaram o quê? — ela perguntou, impaciente.
— Ouvi sua mãe conversando com seu pai mais cedo — Peter falou, hesitante.
Ele cutucou um rasgo no ombro do vestido azul claro.
— E...? — ela perguntou bruscamente, chegando a puxar o tecido rasgado.
Ela nunca dava muita atenção às suas roupas.
— Valerie, Valerie — viu que teria de lhe dizer e se aproximou mais. — Você está comprometida.
A mão dela largou a costura desfeita em seu ombro. Ela olhou adiante, na pele dele tocada pelo sol.
— Com...
— Henry Lazar.
Não foi fácil para ele mencionar esse nome.
Valerie sentiu algo bater no fundo do estômago, como um pano molhado.
— Não — ela disse, não querendo acreditar nele. — Não pode ser — ela repetiu recostada no peito dele.
Peter ficou mudo, desejando que pudesse dizer o que ela queria ouvir.
— Não é possível — ela disse.
— É. Estou dizendo, já está feito.
Está feito. Ela tentou pensar.
— Isto é... mas e se... eu não sei se...
Os pensamentos de Valerie eram incoerentes, mas cada vez que ela falava era com um tom de urgência, como se tivesse conseguido uma maneira de se desvencilhar de Henry.
— O que vamos fazer? — ela perguntou, recostando-se na árvore.
Peter andava para lá e para cá; a rebeldia sombreava sua expressão.
— Você quer se casar com ele?
Peter parou diante dela, aproximando-se.
— Você sabe que não.
— Eu sei? Será que nós ainda nos conhecemos? Foi há muito tempo. Não sou a mesma pessoa que eu era.
— É sim — ela insistiu. — Sei quem você é.
Ela sabia que era ridículo, sentir-se tão segura, tão rápido... Porém, era assim que via as coisas. Era como se eles devessem permanecer juntos. Pegou a mão dele e a segurou com firmeza.
O rosto dele se suavizou.
— Tudo bem, então. Pode haver um jeito... — ele falou, olhando o matiz delicado e prateado dos pântanos no horizonte.
Valerie olhou para ele assustada; sua mente disparou por conta própria.
— Nós poderíamos fugir — ele sugeriu, dando sua opinião antes que ela tivesse realmente processado o pensamento.
Ele chegou ainda mais perto, quase tocando a testa na dela.
— Fuja comigo! — ele repetiu as palavras, com sorriso sincero, pleno e obscuro, daquela forma terrível dele, embora suas ações fossem discretas, como se não houvesse consequências. Ela queria fazer parte de seu mundo menos agitado.
— Para onde iríamos?
Os lábios dele roçaram sua orelha.
— Para qualquer lugar que quiser — ele respondeu. — Para o mar, a cidade, as montanhas.
Para qualquer parte. Com ele.
Ele se afastou para observá-la.
— Você está com medo.
— Não, não estou.
— Você abandonaria a sua casa? Deixaria sua família? Por toda sua vida?
— A-acho que sim. Faço qualquer coisa para ficar com você.
Ela se ouviu dizendo isso e percebeu que era verdade.
— Qualquer coisa?
Valerie fingiu pensar por um instante, para mostrar, para ser capaz de dizer a si mesma que ela o faria. Então, quase que humildemente, proclamou:
— Sim.
— Sim?
— Sim.
Peter deixou-se absorver tudo. Ouviram o relincho de um cavalo e, em seguida, avistaram uma carroça ao longe, sem ninguém, pronta para partir. Não havia ninguém a vista. Parecia o destino.
— Se vamos fazer isso, precisamos ir agora — ela sugeriu, compartilhando do mesmo pensamento.
— Nós estaríamos com meio dia de vantagem antes de alguém perceber a nossa ausência — ele concordou, dando-lhe um sorriso malicioso.
— Então, vamos!
— Vou correr com você.
Ele pegou a mão dela, puxando-a pela tarde brilhante até o cavalo que aguardava. A água espirrou no chão quando Valerie largou seu balde.
“Um dia”, ela pensou, “vou viver com Peter em uma casa para nós dois, e haverá um pomar e também um riacho estreito onde nós dois vamos tomar banho e nadar. O sol vai cantar durante as tardes, e à noite, as aves vão colocar as cabeças sob suas asas em espera”.
A imagem foi ficando mais clara quanto mais rápido ela corria.
Sentindo a carga da liberdade, ela se sentiu leve como se fosse uma semente de dente-de-leão sendo levada pelo ar.



Foi nessa hora que Claude encontrou o que não estava procurando.
O silencioso Claude percebia coisas que ninguém mais via. Notava como os galhos da árvore batiam como asas, como o grão se agitava como uma tempestade no mar. Enxergava o que estava nas sombras, e o que estava por trás delas também.
Levava o mistério a sério e tentava entendê-lo, O que era incompreensível era que havia tanto para ver, tanta beleza, que ele era obrigado a negligenciar cada momento. Ele tinha dificuldade em se concentrar porque estava focado em tudo. Carregava um alforje de couro cru no qual depositara aquelas frutas e pétalas cujos pigmentos achara especialmente lindos. Era ao mesmo tempo um sensitivo e um criador.
Hoje já havia construído um espantalho enorme usando um chapéu folgado. O espantalho era uma cruz fina de feixe de feno, cuja cabeça explodia em uma pluma de trigo. Claude andava ao seu redor, batendo palmas e esperando uma resposta, um despertar para a vida. Ele era mágico e tinha fé na magia.
Claude tirou o tarô que ele mesmo havia pintado com materiais que havia conseguido na cozinha: vinagre escuro e vinho, suco de beterraba e líquido de cenouras esmagadas. Estudou o baralho que fora trazido à aldeia por um mascate. Apesar das cores limitadas da tinta, as cartas estavam pintadas com precisão, de modo que cada personagem era vívido e especial. Ele tirou uma carta de trás da cabeça do espantalho – um truque de mão que vinha praticando. Olhando para ele, percebeu que a luz da manhã já havia se transformado em um brilho mais forte de início de tarde. Assustado pelo tempo que esteve fora, Claude começou a caminhar para casa, mexendo no baralho enquanto andava.
No entanto, uma carta órfã, a Lua, escapou da pilha, movimentando-se e girando ao vento. Ao persegui-la, apertando o nariz ao sol, chegou numa área de trigo que havia sido colhido.
Estava manchada de sangue.
Claude pôde sentir no ar instável que algo de mau estivera lá, e que ele chegara tarde demais.
Seguiu a carta, hesitante, até chegar a algo terrível, algo que o deixou paralisado na trilha. Ele estacou e completamente. O que ele viu foi muito horrível.
Carne rasgada e a bainha suja de um vestido amarelo. A carta de tarô estava virada para cima, perto de uma mão imóvel.
Hesitou por um instante, com o corpo rígido de medo, e então disparou para a aldeia, tropeçando nos nós das raízes expostas e nos sulcos pelo caminho. Atrás dele, o espantalho acenou a cabeça para trás com o vento, vendo tudo e nada.



Correndo na direção da carroça, Valerie se sentia incrivelmente livre. Ela se percebia visível, mas não vista, como um botão de flor aninhado no mato que ninguém parece notar.
O mundo era dela, e a beleza estava em toda parte.
No cabelo desalinhado de Peter, na madeira áspera sob suas mãos quando ela saltou para dentro do banco, na forma como as rédeas de couro azeitado atraíam a luz do sol.
Bleim.
Bleim.
Bleim.
O terceiro toque dos sinos da igreja pairava no e tudo ficou imóvel. Alguém na aldeia havia morrido. Valerie gelou.
Bleim.
Um quarto toque rompeu o silêncio. O mundo abriu, expondo o interior cru.
Valerie e Peter entreolharam-se confusos; em seguida, caíram em si horrorizados.
O quarto toque significava apenas uma coisa: ataque do Lobo.
Ela nunca ouvira o quarto sino, exceto quando ela e Peter o tocaram por conta própria. Com aqueles sinos, Valerie sabia, sua vida nunca mais seria a mesma.

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