segunda-feira, 16 de junho de 2014

6° Capitulo - A Garota da Capa Vermelha

Durante o tempo em que o barco deslizava rio abaixo, as meninas que remavam nunca suspeitaram que Valerie estivesse as conduzindo na direção do sinal de vela de Peter. A luz desaparecera, mas ela havia ficado de olho no lugar em que havia brilhado e sabia exatamente para onde deveriam rumar na escuridão.
Roxanne se inclinou nervosamente na lateral do barco, espiando seu reflexo estilhaçado na água revolta. Ela sentiu que o rio se parecia com tinta sangrenta, mas tentou se convencer de que se parecia mais com suco de amoras.
Prudence aproveitou a oportunidade. Com as mãos segurando os dois lados, ela balançou o barco, deixando Roxanne, cambaleante e gritando, voltar para seu assento.
Prudence riu de forma maldosa; um ar brincalhão e selvagem iluminava seus olhos. Roxanne a encarou e espirrou um pouco de água.
Da margem, as garotas conseguiram ver três fogueiras de acampamentos diferentes enterradas entre as árvores e começaram a remar, de forma competente, até elas. Essas meninas tinham capacidade de fazer coisas que as outras garotas não conseguiam. Puxavam os remos, e o bote deslizava sobre o rio como um pássaro solitário.
Consideraram brevemente a possibilidade de serem pegas, mas conseguiram tirar isso da cabeça facilmente. Eram jovens e livres – e parecia valer a pena correr o risco.
Vendo a luz de Peter brilhar de novo, Valerie virou o barco para a esquerda. Conforme ele adernou, Lucie perdeu o remo. Esticando-se para recuperá-lo, ela mudou o peso muito rapidamente, fazendo com que o rio corresse por cima da borda para dentro do barco.
As meninas gritaram quando a água jorrou com força no interior do barco. Imediatamente souberam que provavelmente haviam estragado seu disfarce.
— Pulem e virem o barco! Escondam-se embaixo! — Valerie tentou gritar e sussurrar ao mesmo tempo.
As garotas tomaram bastante ar e mergulharam na água, virando o barco de cabeça para baixo enquanto se escondiam. Buscando uma à outra sob a água, conseguiram chegar embaixo. Elas se ergueram, com as saias arrastando atrás como mortalhas, para encontrar o bolsão de ar por baixo do barco.
Ninguém ficou feliz. Os cabelos estavam completamente molhados e seus vestidos encharcados, depois de tudo o que fizeram para ficarem belas para os rapazes.
Agora estavam aqui, no mundo sujo e azul de um barco decrépito, chutando as pernas furiosamente e ainda completamente invisíveis para os outros, até mesmo para elas. De repente, tudo lhes pareceu loucamente engraçado, e juntas se contorceram de risos, tentando contê-los. Então cederam, deixando as risadas escaparem pela noite em alguns gritos, mas tentando, ao mesmo tempo, ficar quietas. Elas pareciam estar dentro de uma concha.
Valerie estava começando a desfrutar seu papel de líder.
— Precisamos dar um jeito nisso — disse, afirmando o óbvio.
Em silêncio, fez com que se aquietassem. Elas se esforçaram para ouvir se havia algum movimento na margem.
Roxanne séria, acenou a cabeça, para si mesma, como se Valerie tivesse dito algo perspicaz. Prudence revirou os olhos, exasperada com a tirania recém-descoberta de Valerie.
Após um momento em que nada se pôde ouvir além da água açoitando o bote, Valerie decidiu que elas ainda estavam seguras.
— Tudo bem, vamos lá. Um, dois, três... ergam! — Valerie falou com uma voz que era mais imperativa que o necessário.
O barco caiu fazendo um grande ploft, com o lado certo para cima. As meninas vadearam pela água rasa até a margem, trazendo o barco e se sentindo idiotas com o peso das saias encharcadas de água, tornando cada passo ainda mais vagaroso e humilhante.
— Venha aqui em cima! — ouviu-se um sussurro alto.
Perscrutando a escuridão, as meninas não conseguiam ver quem havia falado. Entreolharam-se, cada uma por si tentando discernir se poderia ter sido seu próprio namorado desejado, antes de prender o barco a uma árvore.
Valerie procurou Peter enquanto escalavam o barranco do rio. As fogueiras dançavam até o céu, e elas se movimentaram para a mais próxima delas, sentindo-se grudentas e sujas até a alma. Lucie correu primeiro, mas se afastou, sussurrando:
— É o pai da Rose!
— Oi? Quem está aí? — surgiu uma voz do círculo de homens agachados ao redor do fogo.
— Desculpe! — Lucie falou, imitando a voz de uma velha.
As cinco garotas tentaram parecer discretas e retraídas, reprimindo as risadinhas com desespero.
Os rapazes deviam estar na próxima fogueira.
Ao se aproximarem da luz, Valerie viu através da agitação de faíscas saindo da fogueira do acampamento que Peter não estava entre eles. Os trabalhadores que estavam lá ficaram felizes em ver as garotas se aproximando, mas também pareciam surpresos.
— Vocês, meninas, como vieram parar aqui?
— Bem...
— Como?
As meninas se entreolharam. Será que eles não...
— Hã..
Lucie entrou na conversa.
— Desculpe. Nós sempre ficamos deste lado quando acampamos.
Não era mentira. Elas nunca haviam acampado antes.
Os rapazes se entreolharam.
— Não estamos reclamando.
As meninas deram de ombros. Os rapazes não eram espertos, mas eram divertidos. Eles riram ao ver como as garotas estavam molhadas e sujas, mas não exageraram para não constrangê-las. Eram até distintos, tentando muito manter os olhos afastados da blusa de Rose, que caíra ainda mais para baixo com o peso da água, mostrando bem mais o seu corpo. Ela não fez nada para corrigir a situação.
Enquanto todos se secavam ao fogo, Lucie se pôs a trabalhar, tecendo guirlandas de capim e trevo, trabalhando com destreza com seus dedos.
— Não há flores aqui — lamentou baixinho para ninguém em especial. — Vão ter de ficar assim.
Ela se iluminava conforme o seu trabalho avançava.
Em pouco tempo, um dos ceifadores – o de Rose ou de Prudence, dependendo de qual garota era solicitada – tirou uma rabeca. Ele não era um bom instrumentista, mas não importava muito. Enquanto as meninas ouviam, a fogueira crepitava, lançando pedaços de cinza que voavam dentro de seus olhos.
Rose dançou descalça ao lado dele, agitando a saia enquanto tentava convocar as outras meninas ao seu lado; seu cabelo escuro brilhava conforme secava ao calor do fogo. Prudence e Roxanne deram-se as mãos e fizeram um passo circular tímido. Teria sido mais fácil, Rose pensou, se eles tivessem se juntado a ela, tomando mais cerveja. Lucie veio e ajustou os círculos de trevo sobre suas cabeças. Voltou ao seu assento com uma guirlanda, descontente com o modo como havia fechado o anel.
— Foi você que ficou piscando com a luz? — Rose perguntou ao tocador de rabeca com a voz baixa, para deixá-lo ciente de que poderia confiar nela.
Mas ele não sabia do que ela estava falando.
— Luz piscando? Onde? — Ele olhou ao redor, pensando que não queria perder nada.
Rose fez beicinho. Acho que não.
O grupo estava preocupado demais para notar Valerie escapar da luz da fogueira e entrar na escuridão.


Sentindo o caminho às cegas através do campo escuro, suas mãos tocaram os talos de capim seco e áspero nas pontas. Quando ela corria os dedos ao longo de uma lâmina da maneira correta, de baixo para cima, parecia liso, mas se ela acidentalmente passava o dedo no outro lado, a lâmina contra-atacava cruelmente, como mil facas pequenas.
Ela esperou, tentando identificar Peter no vazio, mas não viu nada, não ouviu nada. Nunca se importava em ficar sozinha – muitas vezes preferia isso, procurava ficar só – mas buscar alguém inutilmente fazia com que se sentisse tola e ridícula. De repente, odiava a si mesma e detestava Peter. Começou a andar na direção da fogueira do acampamento, dizendo a si mesma que nunca se colocaria na posição de se sentir tão idiota novamente. Foi então que, quando se arrastava furiosamente por entre os juncos, viu o brilho trêmulo de uma vela na floresta. Ela inspirou profundamente e sua respiração desapareceu antes que o seu coração pudesse dar outra batida.
Entrou no emaranhado escuro da floresta e o colocou em movimento. Alguns pássaros e os insetos se manifestaram em seus registros separados, intercalando as suas canções e criando paralelos estranhos e dissonâncias. Ela pôde sentir o leve cheiro adocicado do bosque à noite e ouvir o esmagar das folhas secas sob os pés.
A vela, porém, havia desaparecido.
— Peter... — Valerie chamou em um sussurro.
Andou com cuidado, pensando se havia apenas imaginado a luz e se realmente era tão idiota como havia se sentido momentos atrás.
Mas o que era aquilo no chão? Uma marca? Na forma de... uma seta?
Quando se curvou para baixo, cansada, para descartar essa possibilidade como já fizera inúmeras vezes antes, sentiu um toque pesado e úmido em suas costas. Um leve sopro de ar. Sua respiração foi contida.
— Suba — ela ouviu ao se virar.
Era o nariz de veludo úmido de um cavalo. Peter se delineava contra o céu acima dela, segurando as rédeas soltas.
Uma mão estendeu-se para a dela, e ela aceitou. Era grosseira, calejada e quente. Ele agarrou a dela com força, e sem sequer pensar, Valerie deixou-se erguer e deslizou para o cavalo, seu corpo se ajustando ao de Peter. Ela prendeu timidamente os braços ao redor de sua cintura e depois se enrijeceu quando o cavalo se movimentou. Ele andou lento e cuidadoso enquanto atravessava a clareira, o corpo de Valerie mergulhava adiante com o de Peter quando ele se movimentava para evitar galhos pendentes. Eles não se falaram. Valerie descobriu que não precisava saber quem era esse novo Peter, que tudo bem não saber de nada, que na verdade era melhor assim.
Em seguida, Peter encontrou o que estava procurando: um atalho que cortava a floresta. Ela segurou firme nele quando ele colocou a montaria a galope, e cavalgaram rápidos e livres pelo bosque. Com o corpo perto do dele, recordou a vibração elétrica de estar com ele quando eram jovens, correndo pela floresta tão rápido que o ar assobiava em seus ouvidos. Esse sentimento ainda estava presente, mas significava muito mais agora.
O cavalo ganhou velocidade – o rápido bater dos cascos no ritmo da batida de seu coração. O vento soprava nos seus cabelos, e Valeria, Peter e o animal estavam tão pertos e se sentiam tão poderosos que parecia que ficariam juntos para sempre, voando.
Mas, por fim, Peter virou o cavalo para fazer a volta. Deixou o cavalo trotar e ouviu a respiração ofegante; eles ainda não haviam quebrado o silêncio pesado. De repente, a voz de um homem rompeu o silêncio, gritando:
— Ei! Esse cavalo é meu! Volte aqui!
Valerie não notara que o cavalo não era de Peter. No escuro, sorriu sem acreditar. Peter era perigoso.
— Vou esperar aqui, enquanto você devolve o cavalo.
— Não vá a lugar nenhum — ele falou, descendo-a da sela.
Enquanto ela observava sua silhueta escura voltar para devolver o cavalo, o peito de Valerie se sentiu oprimido como se houvesse muita coisa, como se algo estivesse tentando soltar raízes e brotar lá dentro. Talvez fosse assim o amor.
Ela tentou se lembrar do corpo de Peter, senti-lo em sua ausência. Ele tinha cheiro de árvores e couro, este rapaz perigoso, este ladrão de cavalos. Ela aguardou seu retorno, perguntando-se o que viria a seguir.
Valerie ouviu um estalo de galhos e olhou em volta. Como não viu nada, olhou para o céu e para o emaranhado de ramos acima. Havia bolsões de noite visíveis entre eles, e conseguiu vislumbrar as nuvens se tornarem sem substância no céu e ficarem à deriva mergulhando em nada. No entanto, duas nuvens persistiram, e elas se afastaram para enquadrar a lua.
Demorou um pouco para Valerie perceber que a lua estava cheia. E vermelha. Sua mente ficou turva com a confusão. A lua cheia havia sido na noite anterior, então como... O sangue de Valerie gelou nas veias ao tomar consciência disso. Era algo que os anciãos mencionavam, mas não com tanta confiança; silenciavam quando uma pergunta era feita, resmungando, pois ninguém sabia as respostas com certeza. Só sabiam que não era um bom sinal, assim como um gato preto ou um espelho quebrado.
Lua de sangue.
Houve um uivo sobrenatural a distância.
Valerie saltou correndo para fora da floresta e até a margem do rio, que havia sido jogada em seu próprio caos, o enxame de pessoas em ziguezague correndo para a segurança como abelhas.
Todos haviam se espalhado e se empilhavam nos barcos, remando na direção da aldeia. Ela viu Roxanne e Rose correndo em direção a um barco ao largo da praia, chapinhando na água em pânico. Alguns ceifadores já haviam subido – não havia muito espaço. Valerie se apressou até eles, com os respingos da água até a cintura.
— Meninas, esperem!
— Entre! — Roxanne puxou a mão de Valerie, trazendo-a a bordo.
— Espere! Cadê a Lucie?
— Ela e Prudence foram no primeiro barco — Roxanne respondeu, apontando com urgência para um barco já a meio caminho.
— Suba ou fique! — um dos ceifadores pediu enquanto eles empurravam o barco para fora.
Toda a etiqueta havia desaparecido com a ameaça.
Uma vez na água, Valerie olhou de volta para a praia, que foi sumindo na escuridão conforme os trabalhadores remavam furiosamente. Havia outro barco esperando lá e não havia homens suficientes para enchê-lo. “Peter vai achar um lugar nele”, tentou se acalmar, com uma sensação de ansiedade fermentando em seu peito.



— A lua cheia foi na noite passada — protestou uma voz de uma das carroças na qual todos se empilhavam.
O oficial de justiça já as aprontara e esperava enquanto os barcos se esvaziavam. Os veículos de madeira rangiam enquanto se apressavam para dentro da muralha em ruínas da cidade. Os homens saltaram para fechar as enormes portas de madeira da aldeia atrás deles.
— Deveríamos estar a salvo esta noite.
— A lua de sangue voltou!
Enquanto a carroça avançava impetuosamente até o centro da aldeia, todos falavam ao mesmo tempo, com as vozes perplexas.
Alguns homens mais velhos argumentaram com veemência sobre quantas vezes haviam visto uma lua como esta em suas vidas – duas ou três vezes.
Quando a carroça fazia paradas ao longo das fileiras de casas, havia gritos:
— Noite do Lobo! Todo mundo pra dentro!
Valerie saiu e disparou para sua própria casa, esperando que Suzette ainda estivesse dormindo apesar da comoção. Mas sua mãe estava esperando por ela lá em cima, puxando o xale azul apertado contra o frio. A vela acesa iluminava a varanda; a luz irregular caiu sobre Valerie.
Ao ver a filha, Suzette deu um suspiro de alívio.
— Oh, graças a Deus. — Ela deixou a escada cair.
— Mãe!
Valerie pensou se Suzette já sabia que ela e Lucie haviam fugido do acampamento das mulheres.
— Seu pai está à procura de vocês, meninas!
— Desculpe.
As notícias pareciam não ter chegado até ela.
— Cadê a Lucie?
— Ela ficou com Prudence — Valerie ficou satisfeita consigo mesma.
Era verdade, sem comprometê-las com qualquer irregularidade.
Suzette olhou para baixo na estrada uma última vez, mas mais relaxadamente.
— Tenho certeza que seu pai vai ficar por aí. Vamos colocá-la na cama.



Deitado em seu quarto, o corpo de Valerie sentia falta do de Lucie; ela se sentiu estranha sem sua irmã ao lado. Ouviu barulho de chuva, que rapidamente transformou-se em granizo que caía em listras sólidas para o chão, rápidas demais para o olho humano reconhecer as gotas individualmente. O inverno estava chegando, e a tempestade era fria e rugia como um Deus irado. Valerie pensou em Peter. Houve lampejos de luz; depois, a escuridão os engoliu novamente. Envolta em nuvens, a lua parecia impura, com o brilho avermelhado manchando o céu.
Naquela noite, Valerie sonhou que estava voando.

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