sábado, 30 de agosto de 2014

2 Dias Depois - Quem é você, Alasca?

NÃO DORMI NAQUELA NOITE. O dia custou a raiar, e, quando raiou, o sol brilhando intensamente através das persianas, o radiador velho não conseguiu nos manter aquecidos, então o Coronel e eu nos sentamos no sofá e ficamos em silêncio. Ele começou a ler o almanaque.
Na noite anterior, eu tinha me aventurado no frio para ligar para os meus pais, e dessa vez, quando disse: “Oi, é o Miles”, e minha mãe respondeu: “O que houve? Está tudo bem?”, pude lhe dizer com convicção que não, não estava tudo bem. Meu pai pegou o telefone.
— O que houve? — perguntou.
— Não grite, — minha mãe disse.
— Não estou gritando; é o telefone.
— Bem, então fale mais baixo, — ela disse, de modo que custou um pouco até eu poder dizer alguma coisa. Quando chegou minha vez de falar, demorei para colocar as palavras em ordem:
— Minha amiga, Alasca, morreu num acidente de carro. — Olhei fixamente para os números de telefone e para os recados rabiscados na parede.
— Ah! Miles, — minha mãe disse. — Sinto muito, Miles. Quer voltar para casa?
— Não, — eu disse. — Quero ficar aqui... Não consigo acreditar, — o que ainda era verdade em parte.
— Que coisa horrível, — meu pai disse. — Coitados dos pais da menina. — Coitados, disse comigo e pensei no pai dela. Não conseguia nem imaginar o que meus pais fariam se eu morresse. Dirigindo bêbado. Santo Deus, se ele descobrisse, iria eviscerar o Coronel e eu.
— O que podemos fazer por você neste instante? — minha mãe perguntou.
— Só precisava que me atendessem e que falassem comigo. Isso vocês já fizeram. — Ouvi uma fungada atrás de mim – de resfriado ou de tristeza, não sei – e disse para os meus pais: — Alguém está querendo usar o telefone. Preciso ir.
A noite inteira, eu me senti paralisado no silêncio, aterrorizado. Do que tinha tanto medo, afinal? A coisa já tinha acontecido. Ela estava morta. Estava quente e macia contra a minha pele, minha língua em sua boca. Estava rindo, tentando me ensinar a beijar, prometendo continuar depois. E agora...
E agora ela ficava mais fria a cada instante, mais morta a cada respiração minha. Pensei: Isso é o medo: Perdi uma coisa importante, não consigo achá-la, preciso dela. É o que a pessoa sentiria se perdesse os óculos, fosse até uma ótica e descobrisse que todos os óculos do mundo tinham se acabado e que, agora, ela teria de se virar sem eles.
Pouco antes das oito da manhã, o Coronel anunciou sem especificar a quem: — Acho que teremos bufritos no almoço.
— É, — eu disse. — Está com fome?
— Não, não. Mas foi ela que deu esse nome, sabia? Quando chegamos aqui, os bufritos se chamavam ‘burritos frios’. Então ela começou a dizer bufritos, e todos imitaram, até a própria Maureee. — Fez uma pausa, — Não sei o que fazer, Miles.
— É, eu sei.
— Já decorei as capitais, — ele disse.
— Dos estados?
— Não, isso eu fiz na quinta série. Dos países. Diga um país.
— Canadá, — eu disse.
— Mais difícil.
— Hmm. Uzbequistão?
— Tashkent. — Ele nem mesmo parou para pensar. Estava ali, na ponta da língua, como se estivesse esperando eu dizer “Uzbequistão”, — Vamos fumar.
Fomos para o banheiro e abrimos a ducha. O Coronel pegou um maço de cigarros no bolso do jeans e riscou um fósforo. Mas o fósforo não acendeu.
Tentou outra vez. Não conseguiu. E mais outra, riscando com força, ficando mais e mais irritado, então jogou os fósforos no chão e gritou:
— MAS QUE MERDA!
— Está tudo bem, — eu disse, pegando um isqueiro no bolso da calça.
— Não, Gordo, não está, — ele disse, jogando o cigarro no chão e ficando de pé, subitamente irritado. — Que merda! Santo Deus, como isso foi acontecer? Como ela pôde ser tão idiota? Nunca parou para pensar em nada. Tão impulsiva. Meu Deus. Não está tudo bem. Não acredito que ela tenha sido tão idiota!
— Deveríamos tê-la impedido, — eu disse.
Ele estendeu o braço na direção do boxe, desligou o chuveiro e bateu com a mão espalmada na parede de azulejo.
— É, eu sei que deveríamos tê-la impedido. Porra! Sei muitíssimo bem que deveríamos tê-la impedido. Mas não deveríamos precisar fazer isso. Tínhamos de vigiá-la como uma garotinha de três anos. Uma pisada de bola, e ela morre. Meu Deus! Estou ficando maluco. Vou dar uma caminhada.
— Tudo bem, — respondi, tentando soar calmo.
— Desculpa, — ele disse. — Estou me sentindo mal, como se estivesse morrendo.
— E está, — eu disse.
— É. Todos nós estamos. Nunca se sabe. De repente. PUF. Pronto, acabou.
Eu o segui até o quarto. Ele pegou o almanaque no beliche de cima, fechou o zíper do casaco, bateu a porta e PUF. Sumiu.
Quando amanheceu, chegaram as visitas. Uma hora depois de o Coronel ter saído, nosso colega maconheiro, Hank Walsten, veio me oferecer um baseado. Recusei educadamente. Ele me abraçou e disse: — Pelo menos foi instantâneo. Não houve dor.
Eu sabia que era sua maneira de ajudar, mas ele simplesmente não entendia. Havia dor, sim. Uma dorzinha interminável em meu estômago que não passava nem mesmo quando eu me ajoelhava nos azulejos frios do banheiro, vomitando em seco.
Além do mais, como a morte podia ser “instantânea”? Quanto tempo é um instante? Um segundo? Dez? A dor que ela sentiu nesses poucos segundos deve ter sido horrível. Seu coração foi esmagado, o pulmão parou de funcionar, e não havia nem ar nem sangue em sua cabeça, apenas desespero.
Mas que diabos significa “instantâneo”? Nada é instantâneo. Arroz instantâneo leva cinco minutos, pudim instantâneo uma hora. Duvido que um instante de dor intensa pareça instantâneo.
Será que ela tivera tempo de ver a vida passar diante de seus olhos? Será que eu estava lá? Será que o Jake estava lá? Ela tinha prometido, eu lembrei, tinha prometido que continuaríamos depois, mas eu sabia que ela estava indo para o norte quando morreu, para Nashville, para Jake. Talvez aquilo não tivesse significado nada para ela. Talvez tivesse sido apenas mais um exemplo de sua enorme impulsividade. Enquanto Hank permanecia de pé no vão da porta, eu olhava através dele, olhava para o círculo dos dormitórios, que estava quieto demais, imaginando se eu tivera alguma importância para ela, e só conseguia me dizer que sim, claro, ela tinha prometido. Continuaríamos depois.
Lara veio em seguida, os olhos pesados e inchados.
— O que aconteceu? — ela perguntou enquanto eu a abraçava na porta dos pés para colocar o queixo sobre sua cabeça.
— Não sei, — eu disse.
— Viram a Alasca naquela noite? — ela perguntou, falando com a boca encostada em minha clavícula.
— Ela se embebedou, — eu disse. — O Coronel e eu fomos dormir. Acho que ela deve ter saído de carro. — E isso se tornou a mentira-padrão.
Senti os dedos de Lara, úmidos de lágrimas, pressionando minha palma e, sem pensar direito, tirei a mão.
— Desculpa, — eu disse.
— Tudo béém, — ela disse. — Se quiser me visitar, estarei em meu quarto. — Não quis visitá-la. Não sabia o que dizer – fazíamos parte de um triângulo amoroso com um lado morto.
Naquela tarde, entramos novamente em fila no ginásio para participar de uma Assembléia-geral. O Águia anunciou que, no domingo, a escola ia fretar um ônibus para o funeral em Vine Station. Quando nos levantamos para sair, reparei que Takumi e Lara estavam caminhando em nossa direção. Lara me viu e sorriu palidamente. Retribuí o sorriso e me virei depressa, escondendo-me no meio da multidão que saía em fila e em prantos pelo ginásio.




Estou dormindo. Alasca entra voando em meu quarto. Está nua e intacta. Os seios, que eu senti muito rapidamente no escuro, pendem de seu corpo, reluzentes e volumosos. Ela paira a centímetros de mim, o hálito quente e doce em meu rosto, como uma brisa percorrendo o capim alto.
— Oi, — eu digo. — Senti sua falta.
— Você está bonito, Gordo.
— Você também.
— Estou peladona”, ela diz, depois ri. “Como foi que fiquei peladona?
— Só quero que fique comigo, — eu digo.
— Não, — ela diz, e seu corpo cai pesadamente em cima de mim, esmagando meu peito, roubando meu ar. Ela está fria e molhada, como gelo derretido. A cabeça está partida. Um líquido viscoso meio rosado e meio cinzento aflora em seu crânio fraturado e pinga em meu rosto. Ela fede a formol e carne estragada. Sobe-me uma ânsia de vômito, e eu a empurro para o lado, apavorado.
Acordei caindo e me espatifei no chão com um baque surdo. Ainda bem que eu era o homem do beliche de baixo. Tinha dormido catorze horas. Já era de manhã. Quarta- feira, pensei. O funeral seria no domingo. Indaguei-me se o Coronel conseguiria voltar a tempo, onde quer que estivesse. Ele tinha de ir ao funeral, porque eu não conseguiria ir sozinho, e ir com outra pessoa seria o mesmo que ir sozinho.
O vento frio fustigava a porta. As árvores para além da janela dos fundos balançavam com tamanha violência que eu as ouvia do meu quarto. Sentei-me na cama e pensei no Coronel em algum lugar lá fora, a cabeça baixa, os dentes trincados, caminhando contra o vento.

O dia seguinte - Quem é você, Alasca?

O CORONEL DORMIU O SONO INTRANQUILO dos bêbados, e eu fiquei deitado com a barriga para cima no beliche de baixo, a boca formigando e viva como se ainda estivesse beijando, e provavelmente teríamos dormido e perdido as aulas daquela manhã se não fosse o fato de o Águia ter nos acordado às 8h, com três rápidas batidinhas na porta. Virei na cama quando ele entrou, e a luz da manhã se derramou pelo quarto.
 Preciso que vocês vão para o ginásio, — ele disse. Semicerrei os olhos em sua direção. O Águia estava invisível devido à luz clara que lhe batia às costas. — Agora, — acrescentou, e eu soube. Estávamos perdidos. Fôramos pegos. Muitos relatórios de progresso. Muita bebida num curto espaço de tempo. Por que eles tiveram de beber na noite anterior? Então senti novamente seu gosto: vinho, fumaça de cigarro, batom e Alasca, e me indaguei se ela tinha me beijado porque estava bêbada. Não me expulse, pensei. Por favor. Só comecei a beijá-la agora.
E, como para entender a minhas preces, o Águia disse:
 Vocês não estão encrencados. Mas precisam ir para o ginásio agora.
Ouvi o Coronel se revirar na cama de cima.
 O que houve?
 Aconteceu uma coisa terrível, — o Águia disse e fechou a porta.
Enquanto pegava o jeans no chão, o Coronel disse:
 Isso aconteceu dois anos atrás. Quando a mulher do Hyde faleceu. Acho que agora foi o Velho. O pobre coitado já estava nas últimas. — Olhou para mim, os olhos semiabertos e injetados, e bocejou.
 Parece que você está com um pouco de ressaca, — observei.
Ele fechou os olhos.
 Então estou com uma ótima aparência, Gordo, porque, na verdade, estou com muita ressaca.
 Eu beijei a Alasca.
 Pois é. Eu não estava tão bêbado assim. Vamos embora.
Atravessamos o círculo dos dormitórios e caminhamos para o ginásio. Eu estava com calças jeans largas, uma camiseta regata e um caso grave de cara de sono. Todos os professores estavam no círculo dos dormitórios, batendo à porta dos alunos, mas não vi o Sr. Hyde. Imaginei-o morto em sua casa e me perguntei quem o teria descoberto e como teriam dado por sua falta antes mesmo de a aula ter começado.
 Não estou vendo o Sr. Hyde, — eu disse para o Coronel.
 Pobre-diabo.
Quando chegamos, o ginásio estava cheio pela metade. Um púlpito tinha sido colocado no meio da quadra de basquete, próximo à arquibancada. Sentei-me na segunda fila, logo atrás do Coronel. Meus pensamentos oscilavam entre a tristeza pelo Sr. Hyde e a felicidade por Alasca, enquanto me lembrava de sua boca bem próxima sussurrando: "Continuaremos depois?".
E não me ocorreu – nem mesmo quando o Sr. Hyde entrou no ginásio, arrastando os pés, dando passinhos miúdos na nossa direção.
Bati no ombro do Coronel e disse:
 O Hyde está aqui.
E o Coronel:
 Puta merda!
E eu:
 O que foi?
E ele:
 Cadê a Alasca?
E eu:
 Não.
E ele:
 Gordo, ela está ou não está aqui? — Então nos levantamos e sondamos os rostos no ginásio.
O Águia caminhou até o púlpito e disse:
 Estão todos presentes?
 Não, — eu respondi. — A Alasca não está.
O Águia olhou para baixo.
 E quanto ao resto de vocês?
 A Alasca não está presente!
 Certo, Miles. Obrigado.
 Não podemos começar sem a Alasca.
O Águia olhou para mim. Estava chorando, mas sem fazer barulho. Lágrimas caíam dos seus olhos para mim, mas não era o Olhar do Juízo Final. Pestanejando com o rosto coberto de lágrimas, o Águia parecia pedir desculpas.
 Por favor, senhor, — eu disse. — Não podemos esperar pela Alasca? — Senti que todos no ginásio estavam olhando para nós, tentando decifrar o que agora eu já sabia, mas não queria admitir.
O Águia olhou para baixo e mordeu o lábio superior.
 Ontem à noite, Alasca Young sofreu um terrível acidente de carro. — Agora as lágrimas escorriam com maior rapidez. — E faleceu. Ela morreu.
Por um momento, todos no ginásio se calaram. O lugar nunca estivera tão silencioso, nem mesmo quando o Coronel pedira silêncio e ridicularizara os adversários na linha do lance livre. Olhei para baixo, para a nuca do Coronel. Só fiquei olhando para seus cabelos espessos e volumosos. Por um instante, o silêncio foi tão grande que era possível ouvir o barulho da não respiração, o vácuo criado por 190 estudantes que tinham perdido o fôlego com o susto.
Pensei: É tudo culpa minha.
Pensei: Não estou me sentindo muito bem.
Pensei: Vou vomitar.
Levantei-me e corri para fora do ginásio. Consegui chegar até uma lata de lixo a um metro e meio das portas duplas do edifício e ameacei vomitar sobre algumas garrafas de Gatorade e um lanche meio comido do McDonald’s. Mas não saiu nada. Só ameacei vomitar, os músculos do estômago se contraindo e a garganta se abrindo para soltar um bléé ofegante e gutural, repetindo os movimentos do vômito. Entre um engasgo e uma tosse, eu inspirava profundamente. Sua boca. Sua boca morta e fria. Não continuaríamos depois. Eu sabia que ela estava bêbada. Nervosa. Era óbvio que não se podia deixar uma pessoa dirigir bêbada e nervosa. Era óbvio. Pelo amor de Deus Miles, qual é o seu problema? Então, finalmente, o vômito me subiu novamente, e – então está tudo bem, calma, sério, ela não está morta.
Não está morta, está viva. Está viva em algum lugar. Está na floresta. Alasca está se escondendo na floresta e não está morta, só está se escondendo. Só está pregando uma peça em todos nós. Mais uma Peça Extraordinária pregada por Alasca Young. Alasca só estava sendo Alasca, engraçada e brincalhona, sem saber quando e como pisar no freio.
Então me senti bem melhor, porque ela não tinha morrido coisíssima nenhuma.
Voltei para o ginásio, e todos pareciam estar em diferentes estágios de desintegração. Era como algo que se vê na tevê, um documentário da National Geographic sobre rituais fúnebres. Vi Takumi de pé ao lado de Lara, com a mão em seu ombro. Vi Kevin com o cabelo à escovinha, a cabeça metida entre os joelhos. Uma garota chamada Molly Tan, que tinha estudado Pré-Cálculo conosco, ululava tristemente, batendo com os punhos fechados nas próprias coxas. Eu conhecia e desconhecia aquela gente. Todo o mundo parecia estar se desintegrando. Então vi o Coronel, os joelhos dobrados contra o peito, deitado de lado na arquibancada. Madame O’Malley estava sentada ao seu lado, as mãos pairando sobre seus ombros sem tocá-los.
O Coronel gritava. Inspirava depois gritava. Inspirava. Gritava. Inspirava. Gritava.
No começo, pensei que eram apenas gritos. Mas, depois de algumas tomadas de fôlego, notei um ritmo. E, depois de mais algumas, percebi que o Coronel estava falando. Estava gritando: — Desculpa.
Madame O’Malley pegou sua mão.
 A culpa não é sua, Chip. Você não podia ter feito nada. — Mas, se ao menos ela soubesse...
Eu só fiquei ali, olhando para aquela cena, pensando nela viva. Senti uma mão em meu ombro e me virei. Era o Águia. Eu lhe disse:
 Acho que isso é apenas mais um de seus trotes idiotas.
E ele respondeu:
 Não, Miles, não. Sinto muito.
Minhas bochechas se afoguearam, e eu disse:
 Ela é muito boa nisso. Acho que seria capaz de fazer uma coisa dessas.
E ele respondeu:
 Eu vi o corpo. Sinto muito...
 O que aconteceu?
 Alguém estava acendendo bombinhas na floresta, — ele disse. Fechei os olhos e os apertei com força, o fato inegável bem diante de mim: eu a tinha matado. — Fui atrás deles, e acho que ela aproveitou para sair com o carro. Estava tarde. Ela estava em I-65, ao sul do centro da cidade. Um caminhão tinha derrapado, bloqueando a pista. A polícia tinha acabado de chegar. E ela bateu de frente na viatura, nem chegou a desviar. Devia estar muito embriagada. A polícia detectou hálito etílicio.
 Como sabe disso? — Eu perguntei.
 Eu vi o corpo, Miles. Falei com a polícia. Foi instantâneo. Ela bateu com o peito no volante. Sinto muito.
Perguntei: viu o corpo? Ele disse que sim. Perguntei como ela estava. Só um pouco de sangue escorrendo pelo nariz, ele disse. Então me sentei no chão do ginásio. Podia ouvir os gritos do Coronel e sentir os tapinhas em minhas costas, enquanto eu me inclinava para a frente, mas só conseguia ver seu corpo nu estendido numa mesa de metal, um pequeno fio de sangue escorrendo pelo nariz em meia-lua, os olhos verdes abertos, olhando para longe, a boca franzida sugerindo um sorriso. Ela parecera tão quente junto ao meu corpo, os lábios macios e quentes nos meus.
O Coronel e eu estamos voltando para o quarto em silêncio. Estou olhando para o chão. Não consigo parar de pensar que ela está morta. Não consigo parar de pensar que ela simplesmente não pode estar morta. As pessoas não morrem assim de repente. Estou sem fôlego. Estou com medo, como se alguém tivesse dito que ia me bater depois da aula, e agora, fosse o sexto período e eu soubesse o que me aguardava. Está tão frio – literalmente gelado -, e eu me imagino correndo até o regato e mergulhando de cabeça, o regato tão raso que minhas mãos tocam nas pedras do fundo e meu corpo desliza pela água fria, o choque térmico entorpecendo meu corpo, e eu fico ali, boiando, seguindo a corrente até os rios Cahaba e Alabama e desaguando na baía de Mobile e no golfo do México.
Quero me derreter e me fundir à grama marrom que range sob meus pés e os do Coronel enquanto voltamos para o quarto em silêncio. Seus pés são grandes, grandes demais para a sua altura, e o tênis antigo mais parece um sapato de palhaço. Eu me lembro das sandálias dela, pendendo dos dedos do pé com as unhas pintadas de azul, enquanto nos balançamos no balanço perto do lago. Será que o caixão ficará aberto? Será que o agente funerário conseguirá recriar seu sorriso? Ainda posso ouvir suas palavras: “Isso é divertido, mas estou com sono. Continuaremos depois?”
As últimas palavras de Henry Ward Beecher, o pregador do século XIX, foram: “Agora vem o mistério.” O poeta Dylan Thomas, que gostava de beber tanto quanto Alasca, disse: “Tomei dezoito doses de uísque. Creio que é um novo recorde”, antes de morrer. As favoritas da Alasca eram do dramaturgo Eugene O’Neill: “Nasci num quarto de hotel e – maldição! – vou morrer num quarto de hotel.” Até mesmo as vítimas de acidentes de carro, às vezes, tinham tempo para dizer suas últimas palavras. A princesa Diana disse: “Meu Deus, o que aconteceu?” James Dean, o astro do cinema, disse: “Eles precisam nos ver”, antes de bater seu Porsche em outro carro. Conheço tantas últimas palavras. Mas jamais saberei quais foram as dela.
Estou vários passos à sua frente quando percebo que o Coronel desabou. Viro-me, e ele está deitado com o rosto no chão.
 Precisamos nos levantar, Chip. Precisamos nos levantar. Precisamos chegar até o quarto.
O Coronel vira a cabeça para mim, olha em meus olhos e diz:
 Não. Estou. Conseguindo. Respirar.
Mas ele está respirando. Sei disso porque o vejo ofegar, como se pretendesse encher os pulmões de um defunto. Eu o ajudo a se levantar, e ele se agarra em mim e chora, voltando a repetir:
 Sinto muito.
Era a primeira vez que nos abraçávamos, eu e o Coronel, e não há muito o que dizer, porque ele tem mais é que sentir muito. Coloco a mão em sua nuca e digo a única verdade:
 Também sinto muito.

20° Capitulo - Will &Will

O que está diante de mim é a coisa mais louca que já vi. De longe.
Sinceramente, não pensei que Gideon e eu fôssemos chegar a tempo. Pra começar, o trânsito de Chicago é cruel, mas nesse caso estava seguindo mais lento que os pensamentos de um drogado. Gideon e eu tivemos de fazer um concurso de xingamentos pra nos acalmar.
Agora que chegamos, estou pensando que não tem como nosso plano funcionar. É ao mesmo tempo insano e genial, que é exatamente o que Tiny merece. E exigia que eu fizesse várias coisas que em geral não faço, incluindo:

• Falar com estranhos
• Pedir favores a estranhos
• Estar disposto a bancar o completo idiota
• Deixar que outra pessoa (Gideon) me ajudasse

Também depende de um número de coisas além do meu controle, entre as quais:

• A gentileza de estranhos
• A habilidade de estranhos em serem espontâneos
• A habilidade de estranhos em dirigirem com rapidez
• O musical de Tiny ter mais de um ato

Tenho certeza de que vai ser um desastre total. Mas creio que a questão é que vou fazer de qualquer jeito.
Sei que foi por um triz, porque quando gideon e eu entramos no auditório, um balanço está sendo colocado no palco. E não é qualquer balanço. Eu o reconheço. Exatamente aquele mesmo balanço. E é aí que a loucura entra em ação, total.

Gideon: Puta merda.

A essa altura, Gideon sabe tudo que aconteceu. Não só comigo e com Tiny, mas comigo e com Maura, e comigo e minha mãe, e basicamente comigo e o mundo inteiro. E nem uma só vez ele me disse que eu era idiota, ou mau, ou horrível, ou que estivesse além de qualquer ajuda. Em outras palavras, ele não disse nenhuma das coisas que eu venho dizendo a mim mesmo. Em vez disso, no carro, ele disse

Gideon: Tudo faz sentido.
Eu: Faz?
Gideon: Completamente. Eu teria feito as mesmas coisas que você fez.
Eu: Mentiroso.
Gideon: Não é mentira.

Então, totalmente do nada, ele estende o dedo mindinho.

Gideon: Juro, sem mentiras.

E engancho meu mindinho no dele. Seguimos adiante por algum tempo assim, com meu dedinho enroscado no dele.

Eu: O próximo passo agora é a gente virar irmãos com um pacto de sangue.
Gideon: E vamos dormir um na casa do outro.
Eu: No quintal.
Gideon: E não vamos convidar as garotas.
Eu: Que garotas?
Gideon: As garotas hipotéticas que não vamos convidar.
Eu: Vai ter biscoito com marshmallow?
Gideon: O que você acha?

Eu sei que haveria biscoito com marshmallow.

Gideon: Você sabe que é maluco, certo?
Eu: Isso é novidade?
Gideon: Por fazer o que você está prestes a fazer.
Eu: Foi ideia sua.
Gideon: Mas foi você quem fez, não eu. Quero dizer, você é quem vai fazer.
Eu: Vamos ver.

E era estranho, porque enquanto seguíamos pra lá, não era em Gideon nem em Tiny que eu estava pensando, mas em Maura. Ali naquele carro com Gideon, tão completamente à vontade comigo mesmo, eu não podia deixar de pensar que era isso que ela queria de mim. Era isso que ela sempre quis de mim. E nunca seria assim. Mas acho que pela primeira vez entendi por que ela se esforçou tanto. E por que Tiny tentava tanto também.
Agora Gideon e eu estamos parados no fundo do teatro. Olho à minha volta pra ver quem mais está aqui, mas não consigo ver no escuro.
O balanço continua no fundo do palco enquanto um coro de garotos vestidos de garotos e garotas também vestidas de garotos se enfileira diante dele. Dá pra saber que a cena pretende ser um desfile dos ex-namorados de Tiny porque, enquanto se enfileiram, cantam:

Coro: Somos a parada dos ex-namorados!

Não tenho dúvida de que o garoto no fim da fila supostamente sou eu. (Ele está todo vestido de preto e parece muito mal-humorado.)
Todos começam a cantar seus versos de rompimento:

Ex-namorado 1: Você é grudento demais.
Ex-namorado 2: Quando canta não para mais.
Ex-namorado 3: Você é tão maciço.
Ex-namorado 4: Eu sou muito passivo.
Ex-namorado 5: Sejamos amigos doravante.
Ex-namorado 6: Não namoro atacantes.
Ex-namorado 7: Encontrei outro alguém.
Ex-namorado 8: Não vou me justificar pra ninguém.
Ex-namorado 9: Eu não sinto mais a chama.
Ex-namorado 10: Pra mim, foi só um programa.
Ex-namorado 11: Quer dizer que não tá a fim?
Ex-namorado 12: Não consigo tirar a dúvida de mim.
Ex-namorado 13: Tenho outras coisas a fazer.
Ex-namorado 14: Tenho outros caras pra satisfazer.
Ex-namorado 15: Nosso amor só existiu em sua mente.
Ex-namorado 16: Tenho medo de que minha cama não te aguente.
Ex-namorado 17: Vou ficar em casa lendo livros em sequência.
Ex-namorado 18: Acho que está apaixonado é pela minha carência.

É isso — centenas de mensagens de texto e conversas, milhares e mais milhares de palavras ditas e escritas, todas resumidas em um único verso. É nisso que se transformam os relacionamentos? Uma versão reduzida da mágoa, nada mais. Foi mais que isso. Eu sei que foi mais que isso.
E talvez tiny saiba também. Porque todos os namorados deixam o palco, exceto o nº 1, e percebo que vamos ver todos eles, e talvez cada um tenha uma nova lição para Tiny e a plateia.
Como vai demorar um pouco até chegarmos ao ex-namorado nº 18, concluo que esse é um bom momento pra ligar pro outro Will Grayson. Receio que ele tenha desligado o telefone, mas quando vou pro saguão pra ligar (deixando Gideon guardando um lugar pra mim), ele atende e diz que vai me encontrar em um minuto.
Eu o reconheço de imediato, embora haja alguma coisa diferente nele também.

Eu: Oi
O.W.G.: Oi
Eu: Um tremendo espetáculo que está rolando aí dentro.
O.W.G.: É mesmo. Que bom que você veio.
Eu: É. Porque, sabe, tive uma ideia. Bem, na verdade, foi ideia do meu amigo. Mas ouça o que vamos fazer...

Explico a ele.

O.W.G.: Isso é loucura.
Eu: Eu sei.
O.W.G.: Você acha que estão mesmo aqui?
Eu: Disseram que viriam. Mas, mesmo que não tenham vindo, pelo menos tem eu e você.

O outro Will Grayson parece apavorado.

O.W.G.: Você vai ter de ser o primeiro. Eu te acompanho, mas não creio que consiga ser o primeiro.
Eu: Combinado.
O.W.G.: Isso é totalmente doido.
Eu: Mas Tiny vale a pena.
O.W.G.: É, Tiny vale a pena.

Sei que devíamos voltar pra peça, mas tem uma coisa que quero perguntar agora que ele está na minha frente.

Eu: Posso te fazer uma pergunta pessoal, de Will Grayson pra Will Grayson?
O.W.G.: Hã... claro.
Eu: Você acha que as coisas estão diferentes? Isto é, desde que nos conhecemos?
O.W.G. pensa por um instante, em seguida faz que sim com a cabeça.
O.W.G.: Sim. acho que não sou mais o Will Grayson que eu era.
Eu: Nem eu.

Abro a porta do auditório e espio lá dentro novamente. Já estão no ex- namorado nº 5.

O.W.G.: É melhor eu voltar pros bastidores. Jane deve estar se perguntando aonde eu fui.
Eu: Jane, é?
O.W.G.: É, jane.

É tão fofo: umas duzentas emoções diferentes cruzam o rosto dele quando diz o nome dela — de ansiedade extrema a felicidade absoluta.

Eu: Bem, vamos pros nossos lugares.
O.W.G.: Boa sorte, Will Grayson.
Eu: Boa sorte pra todos nós.

Volto lá pra dentro com cuidado e encontro Gideon, que me põe a par do que está acontecendo.

Gideon (sussurrando): O ex-namorado nº 6 só falou de suportes atléticos. Chegando a ponto do fetiche, eu diria.

Quase todos os ex-namorados são assim — nunca tridimensionais de fato, mas logo fica evidente que isso é proposital, que tiny está mostrando que jamais conseguiu conhecê-los em toda sua dimensão, que estava tão absorto pela própria paixão que não parou pra pensar pelo que estava apaixonado. É de uma verdade de dar agonia, pelo menos para os ex como eu. (Vejo alguns outros garotos se remexendo na cadeira, então provavelmente não sou o único ex na plateia.) Passamos pelos primeiros 17 ex, e então o palco escurece e o balanço é deslocado para o centro. De repente, Tiny está sob o foco das luzes, no balanço, e é como se minha vida tivesse sido rebobinada e estivesse sendo passada novamente pra mim, só que musicada. A cena é exatamente como recordo... até que não é mais, e Tiny está inventando esse novo diálogo entre nós.

Eu-no-palco: Eu sinto muito mesmo.
Tiny: Não sinta. Eu fiquei de quatro por você. E sei o que acontece no fim quando a gente cai — vamos parar no chão.
Eu-no-palco: Eu só fico muito chateado comigo. Sou a pior coisa no mundo pra você. Sou sua granada de mão sem pino.
Tiny: Eu gosto da minha granada de mão sem pino.

É engraçado — me pergunto se eu tivesse dito isso, e se ele tivesse dito aquilo, se então as coisas teriam sido diferentes. Porque eu saberia que ele compreendia, pelo menos um pouco. Mas acho que ele precisava escrever essa história como um musical pra poder ver. Ou dizer.

Eu-no-palco: Bem, eu não gosto de ser sua granada de mão sem pino. Nem a de ninguém.

Mas o estranho é que, pela primeira vez, sinto que o pino está no lugar.

Tiny está olhando pra plateia nesse momento. Não tem como ele saber que estou aqui. Mas talvez esteja me procurando mesmo assim.

Tiny: Eu só quero que você fique feliz. Comigo, com outra pessoa ou com ninguém. Só quero que você fique feliz. Quero que fique de bem com a vida. Com a vida como ela é. E eu também. É tão difícil aceitar que a vida é ser arrebatado. É ser arrebatado e aterrissar. Ser arrebatado e aterrissar. Concordo que não é o ideal. Concordo.

Ele está falando comigo. Está falando consigo mesmo. Talvez não haja diferença.
Eu entendo. Eu compreendo.
E então ele me perde.

Tiny: Mas existe uma palavra, essa palavra que Phil Wrayson me ensinou uma vez: weltschmerz. É a depressão que você sente quando o mundo como é não se alinha com o mundo como você acha que devia ser. Eu vivo em um grande e maldito oceano de weltschmerz, sabe? E o mesmo acontece com você. E com todo mundo. Porque todo mundo acredita que deveria ser possível só continuar sendo arrebatado e arrebatado pra sempre, sentir o fluxo de ar no rosto enquanto se é carregado, esse ar puxando seu rosto e formando um sorriso radiante. E isso deveria ser possível. A gente deveria poder ser arrebatado pra sempre.

E eu penso: não.
Sério. Não.
Porque eu passei a vida sendo carregado. Não o tipo de arrebatamento de que Tiny está falando. Ele está falando sobre amor. Eu estou falando de vida. No meu tipo de voo, não tem aterrissagem. Só tem o choque contra o chão. Duro. Morto, ou querendo estar morto. Assim o tempo todo em que você está sendo carregado, a sensação que experimenta é a pior do mundo. Porque você sente que não tem nenhum controle. Você sabe como termina.
Eu não quero ser carregado. Tudo que quero é me manter em chão sólido.
E o mais estranho é que tenho a sensação de que estou fazendo isso agora. Porque estou tentando fazer alguma coisa de bom. Da mesma maneira que Tiny está tentando fazer alguma coisa de bom.

Tiny: Você ainda é uma granada sem pino quando sente que o mundo não é perfeito.

Não, sou uma granada sem pino quando o mundo é cruel. Mas todas as vezes em que alguém prova que estou errado, o pino entra um pouquinho mais.

Tiny: E eu ainda... toda vez que isso acontece comigo, toda vez que caio no chão, ainda me dói como se nunca tivesse acontecido antes.

Ele agora está balançando mais alto, tomando impulso forte com as pernas, o balanço gemendo. Dá a impressão de que a engenhoca toda virá abaixo, mas ele continua a impulsionar as pernas e fazer força com os braços contra a corrente e fala.

Tiny: Porque não podemos parar o weltschmerz. Não podemos parar de imaginar o mundo como deveria ser. O que é incrível! É a minha coisa favorita sobre nós!

Quando ele chega ao topo do movimento agora, está acima do alcance das luzes, gritando da escuridão para a plateia. Em seguida ele volta ao campo de visão, suas costas e sua bunda vindo velozes em nossa direção.

Tiny: E se você quer ter isso, vai ter a queda. Na expressão não se diz subindo de amores. É por isso que amo a gente!

No alto do arco, acima das luzes, ele se solta do balanço. Ele é tão incrivelmente ágil e rápido ao fazê-lo que mal posso ver, mas ele se ergue pelos braços e leva as pernas ao alto e então larga o balanço e agarra uma viga. O balanço cai antes dele, e todos — a plateia, o coro — arquejam.

Tiny: Porque sabemos o que vai acontecer quando cairmos!

A resposta a isso é, naturalmente, que vamos cair de bunda. Que é exatamente o que Tiny faz. Ele solta as vigas, despenca bem diante do balanço e desmorona no chão. Eu me encolho, e Gideon segura a minha mão.
Não sei dizer se o garoto que me representa está atuando ou não quando pergunta a Tiny se ele está bem. Qualquer que seja o caso, Tiny gesticula, dispensando minha imitação, então sinaliza para o regente e, um instante depois, começa uma canção suave, as notas de piano bem espaçadas. Tiny recobra o fôlego durante a introdução e recomeça a cantar.

Tiny:
É só uma questão de cair
Você aterrissa e se levanta pra poder cair de novo
É só uma questão de cair
Não vou ter medo de bater naquele muro outra vez

O caos se instala lá no palco. O coro agarra-se desesperadamente ao refrão. Eles continuam cantando sobre como é a queda, e então Tiny dá um passo à frente e diz sua fala acima das vozes.

Tiny: Talvez esta noite vocês tenham medo de cair, e talvez haja alguém aqui ou em algum outro lugar em quem vocês estejam pensando, com quem estejam preocupados, se afligindo, tentando decidir se querem cair, ou como e quando vão alcançar o solo. E preciso dizer a vocês, amigos, que parem de pensar na aterrissagem, porque o importante é a queda.

É incrível. É como se ele estivesse se erguendo acima do palco, tão forte é sua convicção nessas palavras. E eu me dou conta do que tenho de fazer. Tenho de ajudá-lo a perceber que é a convicção, não as palavras, que significam tudo. Tenho de fazê-lo perceber que a questão não é cair. É flutuar.
Tiny pede que aumentem as luzes. Ele olha à volta, mas não me vê. Engulo em seco.

Gideon: Pronto?

A resposta a essa pergunta sempre vai ser não. Mas tenho de fazer assim mesmo.

Tiny: Talvez haja alguma coisa que vocês tenham medo de dizer, ou alguém que vocês temam amar, ou algum lugar aonde têm medo de ir. Vai doer. Vai doer porque é importante.

Não, eu penso. NÃO.
Não precisa doer.
Eu me ponho de pé. E então quase volto a me sentar. Tenho de usar toda minha força pra ficar de pé.
Olho pra Gideon.

Tiny: Mas acabei de cair e ir ao chão, e ainda estou aqui de pé para lhes dizer que é preciso aprender a amar a queda, porque o que importa é a queda.

Estendo meu dedo mindinho. Gideon o segura com o seu.

Tiny: Se deixe arrebatar pelo menos uma vez. Deixe-se arrebatar!

O elenco inteiro está no palco nesse momento. Vejo que o outro Will Grayson se infiltrou também, e está usando um jeans amassado e uma camisa xadrez. Ao lado dele, uma garota que deve ser Jane, vestida com uma camiseta que diz Estou com Phil Wrayson.
Tiny faz um gesto, e de repente todos no palco estão cantando.

Coro: Me abrace mais forte, me abrace mais forte

E eu ainda estou de pé. Estou fazendo contato visual com o outro Will Grayson, que parece nervoso mas assim mesmo sorri. E estou vendo algumas pessoas fazendo que sim com a cabeça em minha direção. Deus, espero que eles sejam quem espero que sejam.
De repente, com um grandioso gesto, Tiny para a música. Ele avança até a frente do palco e o restante do cenário fica escuro. É só ele sob um refletor, olhando para a plateia. Ele fica ali parado por um instante, absorvendo tudo. E então encerra o espetáculo dizendo:

Tiny: Meu nome é Tiny Cooper. E esta é a minha história.

Faz-se silêncio então. As pessoas esperam que a cortina desça pra que o espetáculo encerre definitivamente, para que os aplausos comecem. Tenho menos de um segundo. Aperto com força o mindinho de Gideon, então o solto. Levanto a mão.
Tiny me vê.
Outras pessoas na plateia me veem.
Eu grito

Eu: TINY COOPER!

E é isso. Espero de verdade que funcione.

Eu: Meu nome é Will Grayson. E eu te aprecio, Tiny Cooper!

Agora estão todos olhando pra mim, e muitos parecem confusos. Não têm a menor ideia se isso ainda faz parte do espetáculo.
O que eu posso dizer? Estou dando a ele um novo fim.
Agora um homem de uns vinte e poucos anos vestindo um colete hipster se levanta. Ele me olha por um segundo, sorri, então se volta para Tiny e diz

Homem: Meu nome também é Will Grayson. Eu moro em Wilmette. E também te aprecio, Tiny Cooper.

É a deixa pro homem de 79 anos na última fileira.

Senhor: Meu nome é William T. Grayson, mas pode me chamar de Will. E com toda certeza eu te aprecio, Tiny Cooper.

Obrigado, Google. Obrigado, listas telefônicas on-line. Obrigado, detentores do nome.

Mulher de quarenta e poucos: Oi! Eu sou Wilma Grayson, de Hyde Park. E eu te aprecio, Tiny Cooper.
Garoto de dez anos: Oi. Eu sou Will Grayson. O quarto. Meu pai não pôde vir, mas nós dois te apreciamos, Tiny Cooper.

Devia haver um outro. Um aluno do segundo ano na Northwestern.
Faz-se uma pausa dramática. Todos estão olhando ao redor.
E então ELE se levanta. Se a frenchy’s pudesse engarrafá-lo e vendê-lo como produto pornô, provavelmente seriam donos de metade de Chicago em um ano. Ele é o que aconteceria depois de nove meses se Abercrombie trepasse com Fitch. Parece um astro do cinema, um nadador olímpico e o próximo top model masculino da américa, tudo de uma só vez. Está usando uma camisa prateada e calça cor-de-rosa. Tudo nele brilha.
Não é absolutamente o meu tipo, mas...

Deus Gay: Meu nome é Will Grayson. E eu te amo, Tiny Cooper.

Finalmente, Tiny, que esteve atipicamente mudo o tempo todo, diz algumas palavras.

Tiny: 847-555-3982
Deus Gay: 847-555-7363
Tiny: ALGUÉM, POR FAVOR, PODE ANOTAR ISSO PRA MIM?

Metade da plateia faz que sim com a cabeça.
E então faz-se silêncio outra vez. Na verdade, é um pouco constrangedor. Não sei se me sento ou não.
Então ouve-se um ruído vindo da parte escura do palco. O outro Will Grayson dá um passo, destacando-se do coro. Ele vai até onde tiny está e o olha nos olhos.

O.W.G.: Você sabe o meu nome. E eu te amo, Tiny Cooper. Embora não da mesma maneira que o cara de calça rosa possa te amar.

E então a garota que deve ser Jane se pronuncia.

Garota: Meu nome não é Will Grayson, e eu te aprecio de montão, Tiny Cooper.

É a coisa mais estranha que já vi. Um a um, todos no palco dizem a Tiny Cooper que o apreciam. (Até o cara chamado phil wrayson — quem diria?); e a plateia entra em cena. Fileira a fileira. Alguns o dizem. Outros cantam. Tiny está chorando. Eu estou chorando. Todo mundo está chorando.

Perco a noção do tempo. Então, quando acaba, os aplausos começam. Os aplausos mais altos que já ouvi.
Tiny dá um passo à frente no palco. As pessoas jogam flores.
Ele nos uniu a todos. Todos sentimos isso.

Gideon: Você se saiu muito bem.

Torno a ligar nossos mindinhos.

Eu: É, nós nos saímos bem.

Faço um sinal de cabeça pro outro Will Grayson, lá em cima no palco. Ele devolve o gesto. Há uma conexão entre nós, entre mim e ele.
A verdade, porém?
Todo mundo tem uma. Essa é nossa maldição e nossa bênção. Essa é nossa tentativa e nosso erro e nossa coisa certa.
Os aplausos continuam. Olho para Tiny Cooper.

Ele pode ser pesado, mas neste momento está flutuando.