sábado, 2 de agosto de 2014

22° Capitulo (3p) (Ultimo) - Cidades de Papel

Agloe 


O limite de velocidade cai de noventa para setenta quilômetros por hora, e então para sessenta. Atravessamos os trilhos de uma linha de trem e chegamos a Roscoe. Dirigimos devagar pelo centro adormecido da cidade: um café, uma loja de roupas, uma loja de um e noventa e nove e duas vitrines cobertas por folhas de compensado. Eu me inclino para a frente e digo:
— Consigo imaginá-la ali.
— É — concorda Ben. — Cara, eu realmente não queria ter que invadir nenhum prédio. Acho que não ia sobreviver em uma prisão de Nova York.
A ideia de explorar esses prédios, no entanto, não chega a me assustar, já que a cidade inteira parece deserta. Não tem nada aberto.
Passado o centro, apenas uma única rua cruza a rodovia, e é nela que fica o único bairro residencial de Roscoe, além de uma escola primária. Casas pré-fabricadas modestas se espremem entre as árvores que, nesta região, têm troncos grossos e longos.
Pegamos outra rodovia e o limite de velocidade sobe gradualmente de novo, mas Radar dirige devagar, de qualquer forma. Menos de dois quilômetros depois, vemos uma estrada de terra à esquerda, sem nenhuma placa para nos indicar o nome da rua.
— Pode ser essa — digo.
— É a entrada de alguma propriedade — responde Ben, mas Radar entra na rua assim mesmo.
E parece mesmo ser a entrada de uma casa, feita de terra batida. À esquerda, a grama alta chega até a altura dos pneus; não vejo nada, embora me preocupe com o fato de que seria muito fácil para qualquer um se esconder no mato.
Prosseguimos por um tempo, e a estrada termina em uma fazenda em estilo vitoriano. Fazemos a volta e continuamos rumo ao norte, na rodovia de mão dupla.
A rodovia se transforma na Cat Hollow Road, e dirigimos até encontrarmos outra estradinha exatamente igual à primeira, desta vez à direita, conduzindo a algo parecido com um celeiro de madeira cinzenta em ruínas.
Imensos fardos cilíndricos de feno margeiam ambos os lados do terreno, mas a grama já começou a crescer. Radar não passa dos dez quilômetros por hora. Estamos procurando por algo fora do comum. Alguma falha na paisagem perfeitamente idílica.
— Você acha que isso pode ter sido a Agloe General Store? — pergunto.
— Aquele celeiro?
— É.
— Sei lá — diz Radar. — Esse tipo de loja normalmente parece um celeiro?
Solto um longo suspiro através dos lábios contraídos.
— Não sei.
— Aquilo ali é… porra, é o carro dela! — grita Lacey ao meu lado. — É é é é o carro dela o carro dela!
Radar freia a minivan e eu olho para a direção que o dedo de Lacey aponta, os fundos do terreno, atrás do prédio. Uma pontinha prateada. Eu me inclino, aproximado meu rosto do dela, e consigo ver a curva formada pela lataria do teto do carro. Deus sabe como ele chegou ali, já que não existe nenhum caminho naquela direção.
Radar encosta, eu salto e corro em direção ao carro.
Vazio. Destrancado. Abro o porta-malas. Vazio também, exceto por uma mala, também vazia e aberta.
Olho ao redor, começando pelo que agora acredito que seja o que restou da Agloe General Store.
Ben e Radar passam por mim enquanto corro pelo terreno capinado. Entramos no celeiro não por uma porta, mas por um dos diversos buracos onde a parede de madeira simplesmente desabou. Lá dentro, o sol ilumina trechos do piso de madeira apodrecida através dos muitos buracos que há no telhado.
Enquanto procuro por ela, percebo algumas coisas: o chão encharcado. O cheiro de amêndoas, como o dela. Uma banheira velha com pés de metal em um dos cantos.
Tantos buracos por toda parte que o lugar está do lado de dentro e do lado de fora ao mesmo tempo. Sinto um puxão forte na camiseta. Viro a cabeça e vejo Ben, os olhos se revezando entre mim e um dos cantos do ambiente. Preciso olhar através de um facho intenso de luz branca que vem do telhado, mas ainda assim consigo enxergar.
Dois painéis de acrílico translúcido cinzento, sujos e compridos, mais ou menos na altura do peito de uma pessoa, estão apoiados um no outro em um ângulo agudo e encostados na parede de madeira. É um cubículo triangular, se é que tal coisa é possível. E o lance a respeito de acrílico translúcido é o seguinte: ele permite que a luz atravesse. Então dá para ver a cena chocante, ainda que em tons de cinza: Margo Roth Spiegelman sentada em uma cadeira de escritório preta, debruçada em uma carteira de colégio, escrevendo.
Seu cabelo está muito mais curto — ela cortou a franja bem acima das sobrancelhas, e ele está todo embaraçado, como que para enfatizar a assimetria do corte —, mas é ela. Está viva. Transferiu seu escritório de um centro comercial abandonado na Flórida para um celeiro abandonado em Nova York, e eu a encontrei.
Nós quatro caminhamos em direção a Margo, mas ela parece não nos ver. Continua escrevendo. Por fim, alguém — Radar, acho — chama:
— Margo. Margo?
Ela fica na ponta dos pés, as mãos pousadas nas paredes improvisadas do cubículo. Se está surpresa em nos ver, seus olhos não demonstram. Eis Margo Roth Spiegelman, a um metro e meio de mim, os lábios rachados, sem maquiagem, as unhas sujas, os olhos silenciosos.
Nunca tinha vistos os olhos dela mortos daquele jeito, mas, pensando bem, talvez eu nunca tenha visto os olhos dela de fato. Ela me encara. Tenho certeza de que está me observando, e não a Lacey, Ben ou Radar.
Nunca me senti tão observado desde que os olhos mortos de Robert Joyner me fitaram em Jefferson Park. Ela permanece ali, calada, por muito tempo, e eu estou com muito medo dos olhos dela para me aproximar.
“Aqui estamos eu e este mistério”, escreveu Whitman.
Até que ela diz:
— Me deem uns cinco minutos.
E então se senta novamente e volta a escrever. Eu a observo. Exceto pela sujeira, ela parece a mesma de sempre. Não sei por que, mas sempre achei que ela estaria diferente. Mais velha. Que eu mal a reconheceria quando finalmente a reencontrasse. Mas ali está ela, e eu a observo através do acrílico, e ela se parece exatamente com Margo Roth Spiegelman, aquela menina que conheço desde os dois anos de idade — aquela ideia de menina por quem eu me apaixonei.
E só agora, quando ela fecha o caderno, guarda-o na mochila a seu lado, fica de pé e caminha em nossa direção é que percebo que tal ideia não apenas estava equivocada como também é perigosa. Que coisa mais traiçoeira é acreditar que uma pessoa é mais do que uma pessoa.
— Oi — diz ela para Lacey, sorrindo.
Primeiro abraça Lacey, então aperta a mão de Ben e de Radar. E aí ergue uma sobrancelha e diz:
— Oi, Q. — E então me abraça brevemente, sem convicção.
Quero prolongar o abraço. Quero fazer disso um acontecimento. Quero sentir os soluços sofridos dela em meu peito, sentir as lágrimas escorrendo das bochechas sujas em minha camiseta. Mas ela apenas me abraça brevemente e se senta no chão. Eu me sento diante dela, com Ben, Radar e Lacey nos imitando, formando uma linha, de modo que ficamos todos diante de Margo.
— Bom ver você — falo depois de um tempo, sentindo como se estivesse quebrando um silêncio sagrado.
Ela ajeita a franja para o lado. Parece estar decidindo exatamente o que vai dizer antes de abrir a boca.
— Eu, bem. Hum… Raramente fico sem palavras, né? Não tenho falado muito ultimamente. Hum. Acho que talvez a gente deva começar com: o que diabos vocês estão fazendo aqui?
— Margo — diz Lacey. — Caramba, cara, a gente estava tão preocupado.
— Não tem por que se preocupar — responde Margo, animada. — Eu estou bem. — Ela ergue o polegar. — Estou ótima.
— Você podia ter ligado ou nos avisado — diz Ben, parecendo frustrado. — Teria nos economizado umas boas horas de estrada.
— Pela minha experiência, Mija-sangue, quando você vai embora de um lugar, a melhor coisa a fazer é ir embora. Aliás, por que você está de vestido?
Ben fica vermelho.
— Não chama ele assim — repreende Lacey.
Margo se volta para Lacey:
— Ai, meu Deus, você está ficando com ele? — Lacey não responde. — Você não está mesmo ficando com ele.
— Para falar a verdade, estou sim — retruca Lacey. — E, para falar a verdade, ele é o máximo. E, na verdade, você é uma vaca. E, quer saber?, eu vou embora. Muito bom rever você, Margo. Obrigada por me deixar morrendo de medo, por me fazer me sentir uma merda durante o último mês de aulas inteiro e por ser tão babaca depois de a gente correr atrás de você só para ter certeza de que você está bem. Foi um prazer conhecer você.
— O prazer é meu. Quer dizer, se não fosse por você, eu jamais saberia o quão gorda eu sou, não é?
Lacey se levanta e dispara para fora do celeiro, pisando duro no chão apodrecido. Ben a segue. Olho para o lado, e Radar também se levantou.
— Eu não sabia quem você era até conhecê-la pelas pistas que deixou — diz ele. — Gosto mais das pistas do que de você.
— Do que diabos ele está falando? — pergunta Margo a mim.
Radar não responde. Simplesmente vai embora. Eu deveria fazer o mesmo, é claro. Eles são meus amigos — na certa, mais do que Margo. Mas tenho muitas perguntas. E enquanto ela se levanta para retornar ao cubículo, começo pela dúvida mais óbvia:
— Por que você está sendo tão má?
Ela se vira, segura minha camisa e grita bem na minha cara:
— Como você ousa aparecer aqui sem nem avisar?
— Como é que eu poderia ter avisado se você desapareceu completamente da face da Terra?!
Eu a observo piscar lentamente e sei que ela não tem resposta para isso, então continuo. Estou com tanta raiva. Por… por… eu não sei. Por não ser a Margo que eu esperava que fosse. Por não ser a Margo que finalmente pensei ter imaginado certo.
— Eu tinha certeza de que havia um bom motivo para você nunca ter entrado em contato com ninguém depois daquela noite. E… esse é o seu bom motivo? Você queria viver feito uma mendiga?
Ela solta minha camiseta e se afasta.
— Quem está sendo mau agora? Eu fui embora do único jeito que se pode ir. Você arranca sua vida inteira de uma vez só, feito um Band-Aid. E então pode ser você mesmo, e Lace pode ser Lace, e todo mundo pode ser todo mundo, e eu posso ser eu.
— Só que eu não pude ser eu mesmo, Margo, porque achei que você estivesse morta. Por um tempão. Então tive que fazer um monte de porcaria que jamais faria.
Agora ela está berrando, se agarrando à minha camiseta, cara a cara comigo:
— Porra nenhuma. Você não veio até aqui só para ver se eu estava bem. Você veio até aqui porque queria salvar a pobrezinha da Margo de sua personalidadezinha complicada, para que eu ficasse tão grata ao meu cavaleiro no cavalo branco que arrancaria a roupa e imploraria para você possuir meu corpo.
— Porra nenhuma! — grito, com alguma razão. — Você estava só zoando com a nossa cara, não é? Só queria ter certeza de que mesmo depois que embarcasse nessa sua aventurazinha, ainda seria o centro das atenções.
E ela grita de volta, mais alto do que jamais imaginei que fosse possível:
— Você nem está com raiva de mim, Q! Você está com raiva da ideia que você guarda de mim na sua cabeça desde que a gente era criança!
Ela tenta se afastar, mas eu a agarro pelos ombros e a seguro diante de mim, então falo:
— Você alguma vez chegou a pensar no que sua partida ia significar? Alguma vez pensou em Ruthie? Em mim ou em Lacey ou em qualquer um que se preocupasse com você? Não. Claro que não. Porque se algo não acontece a você, é como se nem sequer tivesse acontecido. Não é mesmo, Margo? Hein?
Dessa vez ela não responde. Desvencilha os ombros, se vira e caminha até o cubículo. Então chuta as duas paredes de acrílico, fazendo-as desabarem sobre a mesa e a cadeira e deslizarem até o chão.
— CALA A BOCA, SEU BABACA!
— Tá legal — digo.
Algo no fato de Margo perder completamente o controle permite que eu recobre o meu. Tento falar como minha mãe:
— Vou calar a boca. Nós dois estamos chateados. Um monte de, hum, questões não resolvidas.
Ela se senta na cadeira, os pés no que um dia foram as paredes de seu cubículo. Está olhando para um dos cantos do celeiro. Há pelo menos uns três metros de distância entre nós.
— Como você conseguiu me achar, aliás?
— Achei que fosse o que você queria — respondo.
Minha voz soa tão insignificante que o fato de ela ter me ouvido me surpreende, porém ela gira na cadeira e me encara.
— Ah, mas não era mesmo.
— “Canção de mim mesmo” — digo. — Guthrie me levou a Whitman. Whitman me levou à porta. A porta me levou ao centro comercial abandonado. Demos um jeito de ler a pichação coberta de tinta. Não entendi o que significava “cidades de papel”; podia ser um bairro planejado que nunca foi construído, então achei que você tivesse ido para um lugar desses e que nunca mais fosse voltar. Achei que estivesse morta por aí, que tivesse se matado e quisesse que eu a encontrasse sabe-se lá por quê. Então fui a vários bairros fantasmas, procurando por você. Mas aí encaixei o mapa da loja de suvenires aos buracos de tachinha na parede. Comecei a ler o poema com mais atenção e cheguei à conclusão de que provavelmente você não estava fugindo, de que estava só escondida em algum lugar, planejando. Escrevendo nesse caderno. Descobri Agloe no mapa, vi seu comentário na página de discussões do Omnictionary, matei a colação de grau e dirigi até aqui.
Ela joga o cabelo para a frente, mas ele já não está mais longo o suficiente para lhe cobrir o rosto.
— Odiei esse corte — diz ela. — Queria ficar diferente, mas só fiquei… ridícula.
— Eu gosto — respondo. — Emoldura bem seu rosto.
— Foi mal pela rabugice. Você só tem que entender… Vocês chegaram aqui, do nada, e quase me mataram de susto…
— Você poderia ter dito simplesmente: “Gente, vocês quase me mataram de susto.”
— É, claro, porque essa é a Margo Roth Spiegelman que todo mundo conhece e ama — zomba ela, e então fica quieta por um instante. Daí acrescenta: — Eu sabia que não deveria ter dito aquilo no Omnictionary. Só achei que iria ser engraçado quando eles descobrissem depois. Achei que a polícia fosse rastrear aquilo de alguma forma, mas não tão rápido assim. Existem milhões de páginas no Omnictionary. Nunca achei…
— O quê?
— Respondendo à sua pergunta, eu pensei à beça em você. E em Ruthie. E nos meus pais. Claro que pensei, tá legal? Talvez eu seja a pessoa mais terrivelmente egoísta da história. Mas, meu Deus do céu, você acha que eu faria isso tudo se não fosse realmente necessário? — Ela balança a cabeça. E então, finalmente, se inclina em minha direção, os cotovelos apoiados nos joelhos, e estamos conversando. Longe um do outro, mas conversando. — Não havia outro jeito de sair sem acabar sendo sugada de volta para aquele lugar.
— Fico feliz por saber que você não está morta — digo a ela.
— É. Eu também — responde. E então sorri, e é a primeira vez que vejo o sorriso do qual senti tanta falta durante tanto tempo. — É por isso que eu precisava ir embora. Por mais que viver seja uma porcaria, é sempre melhor do que a alternativa.
Meu telefone toca. É Ben. Atendo.
— Lacey quer falar com Margo — diz ele.
Caminho até ela, entrego o telefone e fico por ali, enquanto ela ouve, sentada na cadeira com os ombros curvados. Dá para escutar os sons que saem do aparelho, e então ouço Margo interromper Lacey para falar:
— Olhe, sinto muito. Eu só estava com muito medo.
E então, silêncio. Lacey enfim volta a falar, Margo ri e diz alguma coisa.
Sinto que elas precisam de privacidade, então começo a examinar o lugar. Na parede paralela à do escritório, no canto oposto do celeiro, Margo montou uma espécie de cama: quatro pallets de madeira sob um colchão inflável cor de laranja.
Ao lado da cama, em outro pallet, vejo uma pequena pilha de roupas bem dobradas, uma escova e uma pasta de dentes, junto a um copo de plástico do Subway. Tudo isso em cima de dois livros: A redoma de vidro, de Sylvia Plath, e Matadouro 5, de Kurt Vonnegut. Não dá para acreditar que ela esteja vivendo deste jeito, nesta mistura irreconciliável de organização suburbana e decadência repugnante. Mas, por outro lado, não dá para acreditar quanto tempo passei achando que ela estivesse vivendo de qualquer outro jeito.
— Eles vão passar a noite num motel no parque. Lace mandou avisar que vão embora amanhã de manhã, com ou sem você — diz Margo às minhas costas.
E é só quando ela diz você e não a gente que, pela primeira vez, penso no que vai acontecer em seguida.
— Eu me viro bem sozinha — diz, agora de pé ao meu lado. — Tem uma casinha ali fora, mas não está muito bem conservada, então uso o banheiro da parada de caminhoneiros a leste de Roscoe. Eles têm chuveiros lá, e o banheiro feminino é bem limpo porque não existem muitas caminhoneiras. Além do mais, lá tem internet. É como se aqui fosse a minha casa, e a parada de caminhoneiros, minha casa de praia.
Eu rio. Ela passa por mim e se ajoelha, olhando dentro dos pallets sob a cama. Pega uma lanterna e um retângulo fino de plástico.
— Estas são as únicas coisas que comprei neste mês, tirando gasolina e comida. Gastei só umas trezentas pratas. — Pego o retângulo de plástico e finalmente me dou conta de que é um toca-discos a pilha. — Eu trouxe alguns discos comigo — diz ela. — Mas vou comprar mais na cidade.
— Nova York?
— É. Estou indo para Nova York hoje. Daí meu comentário no Omnictionary. Vou começar a viajar de verdade. Originalmente, este era o dia no qual eu iria sair de Orlando… Eu ia à colação de grau, ia dar todos aqueles trotes com você durante a noite e então iria embora na manhã seguinte. Mas eu não estava aguentando mais. Nem por uma hora. E quando fiquei sabendo da traição de Jase, pensei: “Eu já tenho tudo planejado; só vou mudar o dia.” Mas me desculpe por ter deixado você assustado. Tudo que eu queria era não deixar você assustado, mas essa parte final foi muito corrida. Não foi um dos meus melhores planos. Em se tratando de planos de fuga recheados de pistas, para mim, aquele era bastante impressionante.
Mas o que me deixou surpreso foi o fato de ela ter me envolvido no plano original também.
— Quem sabe você não poderia me botar a par? — falei, abrindo um sorriso. — Sabe, eu tenho me perguntado… O que foi planejado e o que não foi? O que significava o quê? Por que as pistas eram para mim, por que você foi embora, esse tipo de coisa.
— Hum, tudo bem. Certo. Para explicar isso a gente tem que começar por outra história. — Ela se levanta, e sigo seus passos enquanto ela vai evitando os remendos no piso podre.
De volta ao escritório, ela pega a mochila e saca um caderninho preto. Senta-se no chão, as pernas cruzadas, e dá uma batidinha na madeira ao lado dela. Eu sento. Ela bate na capa do caderno com a ponta dos dedos.
— Bom, tudo começou há muito tempo. Quando eu estava no quarto ano, comecei a escrever uma história neste caderno. Era uma espécie de suspense policial.
Penso que, se eu tomar o livro dela, posso usá-lo como chantagem. Posso fazê-la voltar para Orlando, e ela vai arrumar um trabalho durante o verão e morar em um apartamento até o início da faculdade, e pelo menos vamos ter o verão para nós. Mas fico só escutando.
— Eu não gosto de me vangloriar, mas trata-se de uma obra de literatura de uma sagacidade extraordinária. Brincadeira. São só as divagações retardadas e fantasiosas de uma Margo de dez anos de idade. Começa com uma menina chamada Margo Spiegelman, que é igualzinha a mim com dez anos de idade, só que os pais dela são legais e ricos e compram tudo o que ela quer. Margo tem uma quedinha por um garoto chamado Quentin, que é igualzinho a você, porém é corajoso, heroico e disposto a morrer para salvá-la. E tem também Myrna Mountweazel, que é igualzinha à Myrna Mountweazel, exceto pelo fato de ter poderes mágicos. Por exemplo, na história, todo mundo que faz carinho em Myrna Mountweazel não consegue mentir pelos dez minutos seguintes. Ela também fala. Claro que fala. Que criança de dez anos já escreveu um livro sobre um cachorro que não é capaz de falar?
Eu rio, mas ainda estou pensando na Margo de dez anos com uma quedinha pelo Quentin de dez anos.
— Bom, na história — prossegue ela —, Quentin, Margo e Myrna Mountweazel investigam a morte de Robert Joyner, que ocorre da mesma forma que a morte dele na vida real exceto pelo fato de que, em vez de ter dado um tiro na própria cara, alguém deu um tiro na cara dele. E o livro é sobre nós descobrindo quem é o culpado.
— E quem é o culpado?
Ela ri.
— Você quer que eu estrague o final?
— Bem — respondo —, acho melhor ler o livro.
Ela abre uma página aleatória e me mostra. É indecifrável, não porque a letra de Margo seja ruim, mas porque, além de ter escrito horizontalmente na folha, ela também ocupou o espaço verticalmente.
— Eu escrevo em xadrez — diz ela. — Muito difícil para alguém além de mim decodificar. Certo, vou contar o final, mas primeiro você tem que me prometer que não vai ficar bravo.
— Prometo.
— No final das contas, o crime foi cometido pelo irmão alcoólatra da irmã da ex-mulher de Robert Joyner. Ele ficou louco depois de ser possuído pelo espírito maligno de um gato do Egito Antigo. Literatura classe A, como você pode ver. Mas, enfim, na história, eu, você e Myrna Mountweazel confrontamos o assassino, e ele tenta atirar em mim, mas você pula na minha frente e morre heroicamente em meus braços.
— Genial. — Dou uma risada. — Era uma história tão promissora, com a mocinha bonita apaixonada por mim, mistério e intriga, e no final eu bato as botas.
— É, pois é. — Ela sorri. — Mas eu tinha que matar você, porque o único outro final possível era a gente se pegar, e eu ainda não estava emocionalmente pronta para escrever sobre isso aos dez anos de idade.
— Muito justo — digo. — Mas na edição final quero um pouco mais de ação.
— Depois que você levar um tiro do assassino, quem sabe. Um beijo no leito de morte.
— Muito generoso da sua parte.
Eu poderia me levantar e dar um beijo nela agora. Poderia. Mas ainda há tanta coisa em risco.
— Enfim, concluí a história já no quinto ano. Alguns anos depois, decidi fugir para o Mississippi. Então comecei a escrever os planos para esse evento épico no mesmo caderninho, em cima da história antiga, e finalmente fui: peguei o carro de minha mãe, enchi o tanque e deixei aquelas pistas na sopa de letrinhas. Eu nem gostei da viagem, sério, foi tão solitária, mas adorei o fato de ter feito aquilo, entende? Então continuei a rabiscar mais planos por cima da história: brincadeiras, ideias para juntar determinados casais na escola, grandes trotes com papel higiênico, outras viagens secretas de carro e sei lá mais o quê. No começo do terceiro ano, o caderno já estava na metade, e foi quando decidi fazer mais uma coisa, um plano grandioso, e ir embora.
Ela estava prestes a começar a falar de novo, mas eu tive que interrompê-la:
— Acho que minha dúvida principal é se foi o lugar ou se foram as pessoas. Por exemplo, e se as pessoas ao seu redor tivessem sido outras?
— Mas não dá para separar uma coisa da outra, não é? As pessoas são o lugar, e o lugar é as pessoas. De qualquer forma, eu não achei que houvesse mais ninguém para ser amiga. Eu pensava que todo mundo fosse medroso, feito você, ou indiferente, feito Lacey. E…
— Não sou tão medroso quanto você pensa — digo.
O que é verdade. Só me dou conta disso depois de dizer. Mas ainda assim…
— Calma, já vou chegar nesse ponto — diz ela, quase resmungando. — Quando eu ainda estava no primeiro ano, Gus me levou ao Osprey… — Inclino a cabeça, confuso. — O centro comercial abandonado. E aí comecei a ir lá por conta própria, para ficar de bobeira, rabiscar meus planos. No ano passado, todos os planos começaram a girar em torno desta última fuga. E não sei se é porque eu estava lendo minha história antiga enquanto escrevia os planos de fuga, mas incluí você desde o início. A ideia era fazermos todas aquelas coisas juntos, tipo invadir o SeaWorld, que estava no plano original, e eu ia colocar você no mau caminho. Tipo, libertá-lo por apenas uma noite. E então eu iria desaparecer e você sempre se lembraria de mim por causa daquilo.
“Bom, o plano ficou com umas setenta páginas, estava prestes a acontecer, e parecia que tudo iria se encaixar. Mas aí fiquei sabendo da traição de Jase e decidi ir embora de uma vez. Imediatamente. Não preciso colar grau. Qual o sentido de colar grau? Mas primeiro eu tinha que amarrar umas pontas soltas. Então fiquei o dia inteiro na escola com meu caderno, tentando feito louca adaptar as ideias para Becca, Jase, Lacey e todos que tinham provado não serem tão meus amigos quanto eu achava que fossem, tentando inventar um jeito de fazer com que soubessem como eu estava com raiva antes de dar um pé na bunda deles de vez.
“Mas eu ainda queria fazer aquilo com você; gostava da ideia de talvez ser capaz de criar em você ao menos um eco do herói cafajeste da minha história de criança.
“E então você me surpreendeu. Para mim, você tinha sido apenas um garoto de papel por todos aqueles anos: um personagem de duas dimensões no papel e uma pessoa de duas dimensões na vida real, mas ainda assim sem profundidade. Só que, naquela noite, você se provou uma pessoa de verdade. E acabou sendo tudo tão estranho, divertido e mágico que, assim que voltei para meu quarto, senti saudade de você. Eu queria voltar e ficar mais um pouco com você, conversar, mas já havia decidido ir embora, então eu não podia recuar. E, no último segundo, tive a ideia de fazer você ir até o Osprey. Para que ele ajudasse você a deixar de ser um gatinho medroso.
“E foi isso. Tive a ideia muito de repente. Colei o pôster do Woody nas costas da persiana, marquei dois versos da ‘Canção de mim mesmo’ com uma cor diferente da que eu já havia usado para marcar o livro quando o li pela primeira vez. E depois que você saiu para o colégio, entrei pela sua janela e coloquei o bilhete recortado do jornal em sua porta. E então fui para o Osprey naquela manhã, em parte porque ainda não estava pronta para ir embora e também porque queria arrumar o lugar antes de você chegar. A ideia era não assustar você. Foi por isso que cobri a pichação com tinta; eu não sabia que ia dar para ler. Arranquei as páginas do calendário que estava usando e tirei o mapa também, que estava pendurado lá desde que descobri que Agloe estava marcado nele. E então, como eu estava cansada e não tinha para onde ir, dormi por lá mesmo. Acabei passando duas noites, na verdade, tentando reunir coragem, acho. E também, sei lá, acho que imaginei que você poderia descobrir o lugar logo. E então fui embora. Levei dois dias para chegar aqui. E estou aqui desde então.”
Ela pareceu ter terminado, mas eu tinha mais uma pergunta:
— E por que aqui, dentre tantos lugares para ir?
— Uma cidade de papel para uma menina de papel — responde ela. — Eu li a respeito de Agloe num livro sobre “fatos incríveis” aos dez ou onze anos. E nunca mais parei de pensar no assunto. A verdade é que sempre que ia para o topo do SunTrust, incluindo aquela vez em que fui com você, no fundo eu não olhava para baixo e pensava que tudo era feito de papel. Eu olhava para baixo e pensava que eu era feita de papel. Eu é que era uma pessoa frágil e dobrável, e não os outros. E o lance é o seguinte: as pessoas adoram a ideia de uma menina de papel. Sempre adoraram. E o pior é que eu também adorava. Eu tinha cultivado aquilo, entende?
“Porque é o máximo ser uma ideia que agrada a todos. Mas eu nunca poderia ser aquela ideia para mim, não totalmente. E Agloe é um lugar onde uma criação de papel se tornou real. Um ponto no mapa que se tornou de verdade, mais do que as pessoas que o criaram jamais poderiam imaginar. Pensei que talvez a garota de papel também pudesse se tornar uma garota de verdade aqui. E parecia um jeito de dizer àquela garota que se preocupava com popularidade e roupas e tudo o mais: ‘Você vai para as cidades de papel. E nunca mais vai voltar.’”
— A pichação — falei. — Meu Deus, Margo, eu passei por um monte de bairros fantasmas procurando pelo seu corpo. Eu realmente achei… eu achei que você estivesse morta.
Ela se levanta e vasculha a mochila por um instante, depois se estica, pega A redoma de vidro e lê um trecho para mim:
— “Mas quando cheguei às vias de fato, a pele do meu pulso parecia tão branca e indefesa que não consegui nada. Era como se o que eu quisesse matar não estivesse naquela pele ou naquele pulso magro e azulado que latejava sob meu polegar, mas sim em algum outro lugar, mais profundo, mais secreto e muito mais difícil de ser alcançado.”
Ela se senta junto a mim, bem perto, na minha frente, o jeans de nossas calças se tocando sem que nossos joelhos se toquem de fato. Então diz:
— Eu sei do que ela está falando. Sobre o lugar mais profundo e mais secreto. É como rachaduras dentro de você. Como se houvesse falhas que fazem com que as partes não se encontrem direito.
— Gosto disso — digo. — Ou talvez sejam como rachaduras no casco de um navio.
— Isso mesmo.
— Chega uma hora que você naufraga.
— Exatamente — concorda ela.
Agora estamos trocando ideias muito rápido.
— Não acredito que você não queria que eu a encontrasse.
— Desculpe. Se serve de consolo, estou muito impressionada. E é legal ter você aqui. Você é um bom companheiro de viagem.
— Isso é um convite? — pergunto.
— Talvez.
Ela sorri. Meu coração já vem pulando dentro do peito há tanto tempo que essa nova variedade de intoxicação parece quase suportável. Mas apenas quase.
— Margo, se você voltar só para passar o verão… Meus pais falaram que você pode ficar com a gente, ou você pode arranjar um emprego e um apartamento só durante o verão, e aí as aulas vão começar e você nunca mais vai ter que morar com seus pais de novo.
— O problema não é só esse. Eu seria sugada de volta para aquela vida — responde ela —, e nunca mais conseguiria sair. Não são só as fofocas, as festas e toda aquela merda, mas a fascinação da vida vivida do jeito certo: faculdade, trabalho, marido, filhos e toda essa bobagem. A questão é que eu acredito em faculdade, em empregos e talvez até em filhos, um dia. Acredito no futuro. Talvez seja uma falha de caráter, mas, em mim, é congênita.
— Mas a faculdade aumenta suas oportunidades, não limita — digo afinal.
— Muito obrigada, Orientador Vocacional Jacobsen — diz ela, sorrindo, e então muda de assunto: — Fiquei pensando em você no Osprey. Se você se acostumaria àquele lugar. Se pararia de se preocupar com os ratos.
— Parei — respondo. — Comecei até a gostar de lá. Passei a noite do baile de formatura lá, inclusive.
— Maneiro. — Ela sorri. — Achei que você acabaria gostando. Nunca fiquei entediada ali, mas só porque eu tinha que voltar para casa em algum momento. Quando cheguei aqui, aí sim fiquei entediada. Não tem nada para fazer; já li bastante desde que cheguei. E fiquei cada vez mais nervosa também, por não conhecer ninguém. Fiquei esperando que a solidão e o nervosismo me fizessem querer voltar para casa, mas isso nunca chegou a acontecer. É a única coisa que não posso fazer, Q.
Assinto. Entendo o que ela quer dizer. Imagino que seja complicado voltar, quando já se sentiu os continentes na palma da mão. Porém tento mais uma vez:
— Mas e quando acabar o verão? E a faculdade? E o restante de sua vida?
— O que tem?
Ela deu de ombros.
— Você não está preocupada com o… para sempre?
— O para sempre é composto de agoras — diz Margo.
Não tenho nada para refutar isso; fico só assimilando a frase quando ela continua:
— Emily Dickinson. É sério, tenho lido muito. Penso que o futuro merece um pouco de nossa fé. Mas é difícil argumentar contra Emily Dickinson.
Margo se levanta, joga a mochila no ombro e estende a mão para mim.
— Vamos dar uma volta.
Enquanto caminhamos lá fora, ela pede meu telefone. Disca um número e eu começo a me afastar para deixá-la falar, mas ela agarra meu antebraço e me mantém por perto. Então caminho ao lado dela pelo campo enquanto ela conversa com os pais.
— Oi, aqui é Margo… Estou em Agloe, Nova York, com Quentin… hum… Bem, não, mãe, estou só tentando pensar em um jeito de responder à sua pergunta com sinceridade… Mãe, calma… Eu não sei… Resolvi me mudar para um lugar fictício. Foi isso que aconteceu… É, bem, eu não acho que esteja indo para aí mesmo… Posso falar com Ruthie?… Ei, mocinha… É, mas eu já amava você antes… É, foi mal. Fiz besteira. Eu pensei… Eu não sei o que pensei, Ruthie, mas sei que fiz besteira e vou telefonar daqui para a frente. Pode ser que eu não telefone para mamãe, mas vou ligar para você… Toda quarta-feira, pode ser?… Você está ocupada às quartas-feiras. Hum, tudo bem. Que dia é melhor para você?… Então terça-feira, está marcado… É, toda terça-feira… Isso, incluindo a próxima. — Margo fecha os olhos e cerra os dentes. — Certo, Ruthers, pode passar para a mamãe de novo?… Eu amo você, mãe. Vou ficar bem. Prometo… Tá legal, você também. Tchau.
Ela para de caminhar e desliga o telefone, mas continua segurando-o por um momento. Vejo a pontinha dos dedos dela ficando rosadas devido à força com que aperta o aparelho, e então ela deixa o celular cair no chão. Seu grito é curto, mas ensurdecedor, e diante dele me dou conta, pela primeira vez, do silêncio abjeto de Agloe.
— É como se ela achasse que tenho a obrigação de agradá-la, e  que isso deveria ser meu maior desejo. E quando não faço o que ela quer… ela me afasta. Ela trocou as fechaduras da casa. Foi a primeira coisa que ela me falou. Mas que merda.
— Sinto muito — digo, afastando uns capins da altura do meu joelho para recuperar o telefone. — Mas foi bom falar com Ruthie, não?
— Foi, ela é uma fofa. E eu meio que me odeio por… você sabe… não ter falado com ela antes.
— Imagino — comento, e ela me empurra de brincadeira.
— Você deveria fazer eu me sentir melhor, não pior! — censura ela. — É sua função!
— Eu não sabia que era minha obrigação agradar você, Sra. Spiegelman.
— Ah, me comparando com a minha mãe. — Ela ri. — Essa doeu. Mas até que é justo. E então… o que você tem feito? Se Ben está saindo com Lacey, na certa você está participando de altas orgias com dezenas de animadoras de torcida.
Caminhamos lentamente pelo terreno irregular. Não parece grande, mas, à medida que prosseguimos, percebo que as árvores a distância não estão se aproximando. Conto a ela sobre ter faltado à colação de grau e sobre o milagre do Dreidel rodando na pista. E conto sobre o baile de formatura, Lacey e Becca brigando, minha noite no Osprey.
— Foi naquela noite que tive certeza de que você tinha estado ali — digo a ela. — O cobertor tinha seu cheiro.
E quando digo isso a mão dela esbarra na minha, e eu a seguro, porque agora já não há mais tanto em risco. Margo me encara.
— Eu tive que ir embora. Não tinha nada que assustar você e aquilo foi muito idiota, eu deveria ter ido embora sem causar estragos, mas eu precisava ir. Você me entende agora?
— Entendo — digo —, mas acho que você já pode voltar. De verdade.
— Não, você não acha — retruca ela, e está certa.
Ela é capaz de ver isso na minha cara. Entendo agora que não posso ser quem ela é, e que ela não pode ser quem eu sou. Talvez Whitman tivesse um dom que não tenho. Já eu preciso perguntar ao ferido onde dói, pois não sou capaz de me tornar o ferido. O único ferido que posso ser sou eu mesmo.


Pisoteio um montinho de grama e me sento no chão. Margo se deita a meu lado, usando a mochila como travesseiro. Eu me deito também. Ela tira alguns livros da mochila e os passa para mim, assim posso improvisar um travesseiro também. Poemas selecionados de Emily Dickinson e Folhas de relva.
— Eu tinha dois exemplares — diz, sorrindo.
— É um poema e tanto — digo. — Você não poderia ter escolhido melhor.
— Sério, tomei a decisão por impulso naquela manhã. Eu me lembrei do trecho sobre as portas e achei perfeito. Mas aí, quando cheguei aqui, comecei a reler. A última vez que li foi no segundo ano, na aula de inglês, e, pois é, gostei muito. Tentei ler um bocado de poesia. Estava tentando identificar… Tipo, o que foi que me surpreendeu a seu respeito naquela noite? E por muito tempo imaginei que foi quando você citou T.S. Eliot.
— Mas não foi nada disso — falo. — Você se surpreendeu com o tamanho do meu bíceps e com minha elegância ao saltar janelas.
Ela sorri.
— Fique quieto e me deixe elogiar você, seu bobo. Não foi nem a poesia nem seu bíceps. O que me surpreendeu foi o fato de que você, apesar de seus ataques de ansiedade e tudo o mais, foi igual ao Quentin da minha história. Quer dizer, venho escrevendo por cima dela há anos, e toda vez que sobrescrevo em uma página nova, também releio o que está escrito, e, não me leve a mal, eu costumava morrer de rir pensando: “Deus, não acredito que eu imaginava Quentin Jacobsen como um defensor da justiça gato e superfiel.” Mas no final das contas, sabe, você meio que era assim.
Eu podia me virar de lado, e talvez ela se virasse de lado também. E nós nos beijaríamos. Mas qual o sentido de beijá-la agora? Não vai dar em nada. Ficamos ambos encarando o céu sem nuvens.
— Nada acontece como a gente acha que vai acontecer — diz ela.
O céu é como uma pintura contemporânea monocromática, me atraindo com sua ilusão de profundidade, me puxando para cima.
— Verdade — digo. Mas depois que penso a respeito por um segundo, acrescento: — Mas, se você não imaginar, as coisas sequer chegam a acontecer.
A imaginação não é perfeita. Não dá para mergulhar por inteiro dentro de outra pessoa. Eu jamais poderia ter imaginado a raiva de Margo ao ser encontrada, ou a história que ela estava reescrevendo. Mas imaginar ser outra pessoa, ou que o mundo pode ser diferente, é a única saída. É a máquina que mata fascistas.
Ela se vira para mim e deita a cabeça em meu ombro, e ficamos deitados ali, exatamente como eu havia imaginado há muito tempo na grama do SeaWorld. Foram necessários milhares de quilômetros e muitos dias, mas aqui estamos: a cabeça dela em meu ombro, a respiração em meu pescoço, um cansaço enorme em nós dois. Somos agora o que eu gostaria que fôssemos então.


Quando acordo, o crepúsculo ressalta tudo, desde o amarelado do céu até os talhos de grama acima da minha cabeça, movimentando-se em câmera lenta como uma miss em um concurso de beleza.
Deito de lado e vejo Margo Roth Spiegelman postada de quatro a alguns metros de mim, a calça jeans justa nas pernas.
Levo um momento para perceber que ela está cavando. Engatinho em direção a ela e começo a cavar ao seu lado, a terra debaixo da grama seca feito pó em meus dedos.
Ela sorri para mim. Meu coração dispara na velocidade do som.
— Por que estamos cavando? — pergunto.
— Pergunta errada — diz ela. — A pergunta correta é: para quem estamos cavando?
— Tá legal, então. Para quem estamos cavando?
— Estamos cavando túmulos para a Pequena Margo, o Pequeno Quentin, a cadelinha Myrna Mountweazel e o pobre falecido Robert Joyner — diz ela.
— Acho que eu apoio esses enterros — digo.
A terra está seca e quebradiça, cheia de buracos de inseto, como um formigueiro abandonado. Cavamos com as próprias mãos, cada punhado de terra acompanhado por uma pequena nuvem de poeira. Cavamos um buraco largo e profundo. O túmulo deve ser decente. Logo o buraco está na altura dos meus cotovelos. As mangas de minha camisa ficam sujas quando limpo o suor do rosto. O rosto de Margo está vermelho. Sinto o cheiro dela, e é o mesmo cheiro da noite em que mergulhamos no fosso do SeaWorld.
— Nunca cheguei a pensar nele como uma pessoa de verdade — diz ela.
E enquanto ela fala, aproveito para parar por um instante, sentando-me no chão.
— Quem, Robert Joyner?
— É. — Ela continua cavando. — Quer dizer, ele meio que foi algo que aconteceu comigo, entende? Mas, antes de ser esse personagem secundário no drama da minha vida, ele foi o protagonista no drama da vida dele, sabe? Também nunca pensei nele como uma pessoa. Um cara que brincou na terra, como eu. Que um dia se apaixonou, como eu. Um cara cujos fios se arrebentaram, que não sentia a raiz de sua folha de relva conectada ao campo, um cara cheio de rachaduras. Como eu.
— É — concordei depois de um tempinho enquanto voltava a cavar. — Para mim, ele sempre foi só um corpo.
— Eu gostaria que a gente pudesse ter feito alguma coisa — diz ela. — Eu gostaria que a gente tivesse provado nosso heroismo.
— É. Teria sido legal poder dizer a ele que, não importava o que fosse, aquilo não era o fim do mundo.
— É, embora, no final das contas, alguma coisa acabe matando você.
— Pois é, eu sei. — Dou de ombros. — Não estou dizendo que é possível sobreviver a tudo. Pode-se sobreviver a tudo, exceto à última coisa.
Enfio a mão no chão de novo, a terra tão mais escura do que a do lugar onde moro. Jogo um punhado no monte atrás de nós e me sento. Eu me sinto como se estivesse prestes a ter uma ideia, e tento desenvolvê-la pensando alto. Nunca falei tanto com Margo durante nosso longo e célebre relacionamento, mas, lá vai, minha última cartada:
— Quando pensava na morte dele, o que, diga-se de passagem, não aconteceu tantas vezes assim, eu sempre pensava da forma como você tinha descrito, como se os fios dentro dele tivessem se arrebentado. Mas existem milhares de maneiras de se pensar a situação: talvez os fios se arrebentem, talvez o navio naufrague ou talvez nós sejamos relva, nossas raízes tão interdependentes que ninguém estará morto enquanto houver alguém vivo. O que quero dizer é que as metáforas não são poucas. Mas você precisa ser cuidadoso ao escolher sua metáfora, porque ela faz diferença. Se escolher os fios, significa que está imaginando um mundo no qual você pode se arrebentar de forma irreparável. Se escolher a relva, então quer dizer que todos nós somos interligados e que usamos esse sistema radicular não apenas para compreendermos uns aos outros, mas também para nos tornarmos o outro. As metáforas têm consequências. Está entendendo o que quero dizer?
Ela faz que sim com a cabeça.
— Gosto dos fios. Sempre gostei. Porque é exatamente assim que eu me sinto. No entanto, acho que eles fazem a dor parecer mais fatal do que realmente é. Não somos tão frágeis quanto os fios nos fariam acreditar. E gosto da relva também. Foi ela que me trouxe até você, que me ajudou a imaginá-lo como uma pessoa de verdade. Mas não somos brotos diferentes da mesma planta. Eu não consigo ser você. Você não consegue ser eu. Por mais que você imagine o outro, nunca o imaginará com perfeição, não é?
“Talvez seja mais como o que você falou antes, rachaduras em todos nós. Como se cada um tivesse começado como um navio inteiramente à prova d’água. Mas as coisas vão acontecendo… as pessoas se vão, ou deixam de nos amar, ou não nos entendem, ou nós não as entendemos… e nós perdemos, erramos, magoamos uns aos outros. E o navio começa a rachar em determinados lugares. E então, quando o navio racha, o final é inevitável. Quando começa a chover dentro do Osprey, ele nunca vai voltar a ser o que era. Mas ainda há um tempo entre o momento em que as rachaduras começam a se abrir e o momento em que nós nos rompemos por completo. E é nesse intervalo que conseguimos enxergar uns aos outros, porque vemos além de nós mesmos, através de nossas rachaduras, e vemos dentro dos outros através das rachaduras deles. Quando foi que nos olhamos cara a cara? Não até que você tivesse visto através das minhas rachaduras, e eu, das suas. Antes disso, estávamos apenas observando a ideia que fazíamos um do outro, tipo olhando para sua persiana sem nunca enxergar o quarto lá dentro. Mas, uma vez que o navio se racha, a luz consegue entrar. E a luz consegue sair.”
Ela leva os dedos até os lábios, como se estivesse se concentrando, ou escondendo a boca de mim, ou como se quisesse sentir as próprias palavras.
— Você é especial — diz ela afinal. E me encara; meus olhos e os dela, e nada entre eles. Não tenho nada a ganhar dando um beijo nela. Mas já não quero ganhar nada.
— Tem uma coisa que preciso fazer — digo, e ela faz que sim de leve com a cabeça, como se soubesse do que estou falando, e eu a beijo.
O beijo termina um bom tempo depois, e ela diz:
— Você pode vir para Nova York. Vai ser divertido. Vai ser como beijar.
E eu digo:
— Beijar é algo sério.
E ela diz:
— Você está dizendo que não.
E eu digo:
— Margo, toda a minha vida está lá, e eu não sou você e… — Mas não consigo continuar, porque ela me beija de novo, e quando ela me beija sei, sem sombra de dúvida, que estamos seguindo em direções opostas.
Ela se levanta, caminha até o ponto onde estávamos dormindo, até alcançar a mochila. Pega o caderno preto, retorna ao túmulo e põe o caderninho no chão.
— Vou sentir sua falta — sussurra ela.
Eu não sei se ela está falando comigo ou com o caderno. Nem sei com quem eu mesmo estou falando quando digo:
— Eu também. — E acrescento: — Adeus, Robert Joyner. — E jogo um punhado de terra sobre o caderno preto.
— Adeus, jovem e heroico Quentin Jacobsen — diz ela, jogando outro punhado.
Mais um punhado cai enquanto digo:
— Adeus, destemida orlandense Margo Roth Spiegelman.
E mais um quando ela diz:
— Adeus, cadelinha mágica Myrna Mountweazel.
Cobrimos o caderno com terra, tapando o buraco. A grama vai crescer em breve. E para nós será a cabeleira comprida e bonita dos túmulos.


Damos as mãos sujas de terra enquanto caminhamos de volta para a Agloe General Store. Ajudo Margo a carregar seus pertences até o carro: uma muda de roupa, produtos de higiene pessoal e a cadeira. A preciosidade do momento, que deveria facilitar o diálogo, só dificulta.


Estamos de pé no estacionamento de um hotel de um andar de beira de estrada, quando as despedidas se tornam inevitáveis.
— Vou arrumar um celular, e aí ligo para você — diz ela. — Mando e-mail também. E vou deixar alguns comentários misteriosos na página de discussão do artigo das cidades de papel no Omnictionary.
Sorrio.
— Vou mandar um e-mail para você quando chegar em casa, e espero uma resposta.
— Prometo que vou responder. A gente se vê. A gente ainda vai se encontrar de novo.
— No final do verão, talvez eu possa encontrar você em algum lugar, antes do início das aulas da faculdade — digo.
— É — responde ela. — Boa ideia.
Sorrio e aceno. Ela se vira de costas para mim e fico me perguntando se está sendo sincera, então vejo seus ombros tremerem.
Está chorando.
— Até mais, então. Vou escrever para você enquanto isso — digo.
— É — responde ela sem se virar, a voz embargada. — Eu também.
Dizer essas coisas é o que nos impede de desmoronar. E, talvez, ao imaginar esses futuros, a gente possa torná-los reais, ou não; de qualquer forma temos que imaginá-los.
A luz sai e nos inunda.
Fico de pé no estacionamento, me dando conta de que nunca estive tão longe de casa, e aqui está a menina que amo, mas que não posso seguir. Espero que seja esta a provação do herói, porque não ir atrás dela é a coisa mais difícil que já tive que fazer.
Fico pensando que Margo vai entrar no carro, mas não entra, e por fim ela se vira para mim, e vejo seus olhos cheios d’água. O espaço físico entre nós desaparece. Entrelaçamos nossos fios arrebentados uma última vez. Sinto as mãos dela em minhas costas. E está escuro quando a beijo, mas fico de olhos abertos, e Margo faz o mesmo. Ela está perto o bastante para que eu possa enxergá-la, porque mesmo agora existem sinais visíveis da luz invisível, mesmo à noite naquele estacionamento na periferia de Agloe.
Depois de nos beijarmos, nossas testas se tocam e fitamos um ao outro. Sim, consigo enxergá-la quase perfeitamente através desta escuridão rachada.

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