quarta-feira, 13 de agosto de 2014

128 Dias Antes - Quem é você, Alasca?

A FLÓRIDA ERA MUITO QUENTE, sem dúvida, e úmida também. Tão
quente que as roupas grudavam no corpo como fita adesiva, e o suor escorria
como uma lágrima, descendo pela testa e entrando nos olhos. Mas só era
quente ao ar livre e, em geral, eu só saía para ir de um lugar com arcondicionado
para outro.
Mas nada disso tinha me preparado para o calor singular que
encontraríamos vinte e cinto quilômetros ao sul de Birmingham, no Alabama,
na Escola Preparatória de Culver Creek. O utilitário esportivo do meu pai
estava no gramado a poucos metros do meu quarto, o Quarto 43. Mas cada
vez que eu percorria a pequena distancia entre o carro e o edifício para
descarregar o que agora parecia ser coisa demais, o sol me queimava,
atravessando minhas roupas e entrando pela minha pele com uma violência
que me fez temer genuinamente as chamas do inferno.
Mamãe, papai e eu levamos apenas alguns minutos para descarregar o
carro, mas meu quarto não tinha ar-condicionado e, embora graças a Deus
não batesse sol nele, era apenas pouca coisa mais fresco que lá fora. O
quarto me surpreendeu: eu estava esperando um carpete felpudo, painéis de
madeira, mobília vitoriana. Mas, salvo um único luxo - o banheiro privativo -, o
que encontrei foi um cubículo. Com paredes de bloco de concreto pintadas
com grossas camas de tinta branca e um piso de linóleo xadrez verde e
branco, o lugar mais parecia um hospital do que o quarto dos meus sonhos.
Uma cama- beliche de madeira crua com colchões de vinil tinha sido
empurrada de encontro à janela do fundo do quarto. As mesas, as cômodas e
as estantes tinham sido presas à parede para impedir qualquer decoração
mais criativa. E nada de ar-condicionado.
Sentei-me no beliche de baixo enquanto minha mãe abria o baú, pegava
uma pilha de biografias das quais meu pai concordara em se separar e as
colocava na estante.
"Sei fazer isso mãe", eu disse. Meu pai levantou. Estava pronto para ir
embora.
"Deixe-me ao menos fazer a cama", minha mãe disse.
"Não precisa. Eu mesmo faço. Numa boa." Porque não podemos prolongar
para sempre esse tipo de coisa. Chega uma em que é preciso arrancar o
Band- Aid. Dói, mas pelo menos acaba de uma vez e ficamos aliviados.
"Santo Deus! Vamos sentir saudade", minha mãe disse de repente,
atravessando o labirinto de maletas para chegar até a cama. Eu me levantei e
a abracei. Meu pai também se aproximou, e demos uma espécie de abraço
coletivo. Estava quente demais, estávamos suados demais para o abraço
demorar muito tempo. Eu sabia que devia chorar, mas tinha vivido com meus
pais durante dezesseis anos e já estava mais do que na hora de uma
separação experimental.
"Não se preocupem." Eu sorri. "Vou aprender a falar com sotaque sulista.
Yeehaw!" Mamãe riu.
"Não faça nenhuma bobagem", meu pai disse.
"Pode deixar."
"Nada de drogas. Nada de bebidas. Nada de cigarros." Como ex-aluno de
Culver Creek, meu pai tinha passado por experiências sobre as quais eu
apenas ouvira falar: festas secretas, corridas sem roupa pelos campos de
feno (ele sempre se lamentava pelo fato de naquela época a escola não ser
mista), drogas, bebidas e cigarros. Ele tinha levado bastante tempo para
parar de fumar, mas seus dias de farra já iam longe.
"Nós tem amamos", os dois disseram ao mesmo tempo. Precisava ser
dito, mas as palavras fizeram tudo ficar desagradavelmente desconfortável,
como ver seus avós se beijando.
"Eu também amo vocês. Vou telefonar todo domingo." Os quartos não
tinham telefone, mas meu pai tinha solicitado um quarto perto de um dos cinco
telefones públicos de Culver Creek.
Eles me abraçaram de novo - primeiro minha mãe, depois meu pai - e tudo
acabou. Pela janela dos fundos, vi o carro serpentear pela estrada deixando o
campus. Acho que eu deveria ter sentido uma saudade sentimental e
pegajosa. Porém, o que eu mais queria naquele momento era me refrescar.
Peguei uma das cadeiras da escrivaninha e me sentei do lado de fora do
quarto, à sombra do beiral, esperando uma brisa que não apareceu. O ar lá
fora estava tão estagnado e opressivo quanto no interior do quarto. Examinei
minhas novas acomodações. Havia seis edifícios de um só andar, cada qual
com dezesseis quartos de dormir, dispostos num hexágono em torno de um
vasto gramado circular. Parecia um hotel de beira de estrada velho e
extremamente grande. Por toda parte, os rapazes e as moças se abraçavam,
sorriam e caminhavam juntos. Desejei vagamente que alguém viesse falar
comigo. Imaginei que a conversa seria assim:
"Oi! É seu primeiro ano aqui?"
"É, sim. Sou da Flórida."
"Legal. Então está acostumado com o calor."
"Não estaria acostumado com esse calor nem mesmo se eu morasse no
inferno", eu diria, brincando. Causaria uma boa primeira impressão. Ele é
engraçado. O Miles é uma figura.
É claro que isso não aconteceu. Nada acontecia como eu imaginava.
Entediado, tornei a entrar, tirei a camisa, deitei sobre o vinil quente do
beliche de baixo e fechei os olhos. Não tinha renascido com o batismo, a
choradeira e tudo o mais, porém nada seria mais agradável do que renascer
como alguém sem passado. Pensei nas pessoas sobre as quais eu tinha lido -
John F. Kennedy, James Joyce, Humphrey Bogart -, todos alunos do colégio
interno, e me lembrei de suas aventuras - Kennedy, por exemplo, adorava os
trotes. Pensei no Grande Talvez, nas coisas que poderiam acontecer, nas
pessoas que eu poderia encontrar e em quem seria meu colega de quarto (eu
tinha recebido uma carta semanas antes com seu nome, Chip Martin, mas só
dizia isso). Fosse lá quem fosse esse tal Chip Martin, eu esperava
desesperadamente que ele trouxesse um arsenal de ventiladores de alta
potencia, porque eu não tinha trazido nenhum e já podia sentir o suor
empoçando no colchão de vinil, o que me enojou de tal maneira que parei de
pensar e me levantei à procura de uma toalha para enxugar a cama. Pensei:
Bem, antes da aventura é preciso desfazer as malas.
Tinha conseguido prender o mapa-múndi na parede e guardar a maior
parte das minhas roupas na gaveta, quando percebi o ar quente e úmido que
fazia até as paredes transpirarem e decidi que aquele não era o melhor
momento para trabalhos braçais. Estava na hora de tomar um magnifico
banho de água fria.
Havia um espelho enorme de corpo inteiro atrás da porta do pequeno
banheiro, então não pude fugir do reflexo da minha nudez quando me curvei
para abrir a água. Minha magreza sempre me espantava: meus braços finos
pareciam ter a mesma grossura desde o pulso até os ombros; meu tronco não
tinha vestígio nem de gordura nem de musculo; senti-me constrangido e me
perguntei se não poderia fazer alguma coisa quanto àquele espelho. Abri a
cortina branca do chuveiro e me curvei para entrar no boxe.
Infelizmente, o chuveiro parecia ter sido feito para pessoas um metro e dez
de altura, pois a água fria batia na base das minhas costelas - com toda a
força de uma bica gotejante. Para milhar meu rosto banhado de suor, precisei
abrir as pernas e me agachar consideravelmente. Com toda certeza, John F.
Kennedy (que, segundo sua biografia, tinha um metro e oitenta - exatamente
minha altura) não tivera de se agachar em seu colégio interno. Não, aquilo era
diferente. E, enquanto o chuveiro gotejava e lentamente molhava meu corpo,
imaginei se encontraria ali o Grande Talvez ou se tinha cometido um grande
erro.
Depois da ducha, abri a porta do banheiro, com uma toalha enrolada na
cintura, e vi um rapaz baixinho e musculoso com um emaranhado de cabelos
castanhos. Estava arrastando pela porta do quarto um gigantesco saco de
lona verde, como os do exercito. Tinha um metro e cinquenta e nada, mas era
bem feito de corpo, com um Adônis em escala reduzida, e com ele chegou o
fedor de sarro de cigarro. Bonito, pensei, vou conhecer meu companheiro de
quarto, pelado. Ele atirou o saco para dentro do quarto, fechou a porta e
caminhou em minha direção.
"Meu nome é Chip Martin", anunciou numa voz grave, a voz de um DJ de
rádio. Antes que eu pudesse responder, ele acrescentou: "Eu o
cumprimentaria, mas acho melhor você continuar segurando essa toalha até
terminar de se vestir."
Eu ri, assenti com a cabeça (é legal, não é, o gesto com a cabeça?) e
disse "Miles Halter. Prazer."
"Miles, como em 'Miles to go before I sleep?", ele perguntou.
"Como?"
"É um verso de Robert Frost. 'Milhas a percorrer até dormir'. Nunca leu?"
"Fiz que não com a cabeça".
"Considere-se feliz." Ele sorriu.
Peguei uma cueca limpa, um calção de futebol azul da Adidas, uma
camiseta branca, murmurei que voltaria num segundo e me curvei novamente
para entrar no banheiro. Lá se ia a minha boa primeira impressão.
"Onde estão seus pais?" perguntei, ainda no banheiro.
"Meus pais? Meu pai está na Califórnia. Deve estar descansando numa
cadeira reclinável. Ou então esta dirigindo um caminhão. Seja como for, está
bebendo. Minha mãe provavelmente está saindo do campus."
"Certo...", eu disse, já vestido, sem saber como reagir diante de algo tão
pessoal. Acho que não deveria ter perguntado se não queria saber.
Chip pegou um lençol e o estendeu sobre o beliche de cima. "Sou homem
de ficar no beliche de cima. Espero que não se incomode."
"Não, não. Qualquer um serve."
"Estou vendo que você decorou o lugar", ele falou, apontando o mapa.
"Gostei."
Então começou a nomear os países. Falava num tom monótono, como se
o tivesse feito milhares de vezes antes.
Afeganistão.
Albânia.
Argélia.
Samoa Americana.
Andorra.
E assim por diante. Disse todos com a letra "A" antes de erguer os olhos e
ver minha expressão de incredulidade.
"Eu poderia continuar, mas acho que aborreceria você. Foi algo que
aprendi durante o verão. Santo Deus. Não imagina como New Hope, Alabama,
é chato durante o verão. É como ver a soja crescer. Você é de onde?"
"Da Flórida."
"Não conheço."
"Foi incrível. O negocio dos países", eu disse.
"Pois é, cada qual tem seu talento. Eu consigo memorizar coisas. E
você...?"
"Bem, eu sei as ultimas palavras de um monte de gente." Era meu prazer
secreto, colecionar últimas palavras. Havia quem comesse chocolate. Eu lia
esse tipo de coisa.
"Por exemplo?"
"Eu gosto das de Henrik Ibsen. Ele foi um dramaturgo." Eu sabia muita
coisa sobre Ibsen, mas não tinha lido nenhuma de suas peças. Não gostava
de ler peças. Gostava de ler biografias.
"É, eu sei quem ele foi", Chip disse.
"Certo, então, ele tinha andado doente por uns tempos e a enfermeira lhe
disse: 'O senhor parece melhor esta manhã.' Ibsen olhou para ela e falou:
'Muito pelo contrário', e morreu."
Chip riu. "Mórbido, mas eu gosto."
Ele me contou que aquele era seu terceiro ano em Culver Creek. Tinha
começado no nono ano, o primeiro ano oferecido pela escola e agora estava
no penúltimo como eu. Um bolsista, ele disse. Do começo ao fim. Tinha ouvido
dizer que aquela era a melhor instituição do Alabama, então escreveu na carta
de admissão que gostaria de frequentar uma escola onde pudesse ler livros
longos. O problema, ele contou no ensaio, é que seu pai batia nele com os
livros da casa, de modo que, para sua segurança, Chip só podia ter livros
pequenos e de capa mole. Seus pais se divorciaram quando ele estava no
segundo ano. Ele gostava "da Creek", como chamava a escola, mas "Você
precisa ter cuidado com os alunos e com os professores. E eu odeio ser
cuidadoso". Ele abriu um sorriso forçado. Eu também odiava ser cauteloso -
ou, pelo menos, queria odiar.
Ele me contou essas coisas enquanto vasculhava o saco de lona, jogando
as roupas nas gavetas com um desleixo irresponsável. Chip não acreditava em
ter uma gaveta só para meias e outras só para as camisetas. Acreditava que
todas as gavetas tinham sido criadas iguais e as enchia com o que coubesse.
Minha mãe teria morrido.
Quando terminou de "desfazer" as malas, Chip me deu um soco no ombro,
disse "Espero que seja mais forte do que parece" e saiu pela porta, deixandoa
aberta. Segundos mais tarde, deu uma espiadela para dentro do quarto e
me viu parado. "Vamos logo, Miles-Halter-Dormir. Temos muito o que fazer."
Fomos para a sala de tevê, que, segundo o Chip, era o único lugar no
campus com tevê a cabo. No verão, servia de deposito. Entupida até o teto
com sofás, geladeiras e tapetes enrolados, a sala de tevê ondulava com
jovens tentando encontrar e arrastar consigo seus pertences. Chip
cumprimentou algumas pessoas, mas não me apresentou.
Enquanto ele caminhava pelo labirinto de sofás, eu permaneci de pé junto à
porta, tentando não atrapalhar os pares de colegas que manobravam seus
móveis pela passagem estreita.
Chip levou dez minutos para encontrar suas coisas, e levamos mais uma
hora indo e vindo, passando pelo gramado entre a sala de tevê e o Quarto 43.
Quando acabou, eu só queria entrar de gatinhas na mini geladeira do Chip e
dormir por mil anos, mas Chip parecia imune tanto ao cansaço quando à
insolação. Eu me sentei em seu sofá.
"Encontrei isso aí largado numa calçada perto de casa faz uns dois anos",
disse, referindo-se ao sofá, enquanto colocava meu Playstation 2 em cima do
baú ao pé da cama. "Está meio rasgado, eu sei, mas convenhamos, é um sofá
bem confortável." O sofá não estava só "meio rasgado" - era 30% couro
sintético azul-clarinho e 70% espuma -, mas eu o achava bastante confortável.
"Pronto", ele disse. "Estamos quase lá." Foi até sua escrivaninha, abriu a
gaveta e pegou um rolo de fita adesiva. "Só precisamos do seu baú."
Eu me levantei e puxei o baú que estava debaixo da cama. Chip o colocou
entre o sofá e o Playstation 2, depois cortou tiras bem fininhas de fita adesiva
e as grudou no baú de como que formassem as palavras MESA DE CENTRO.
"Agora sim", ele disse. Sentou-se no sofá e botou os pés em cima da...
bem... mesa de centro. "Pronto."
Sentei-me ao seu lado. Ele se virou para mim de repente e disse: "Olha só,
eu não ser seu passaporte de entrada para a vida social de Culver Creek,
entendeu?"
"Tudo bem", eu disse, mas podia ouvir as palavras entalando em minha
garganta. Tinha acabado de carregar o sofá daquele cara debaixo de um sol
escaldante, e agora ele não gostava de mim?
"Temos basicamente dois grupos aqui na escola", ele explicou, com
crescente urgência. "Os pensionistas normais, como eu, e os Guerreiros de
Dia de Semana. Garotos riquinhos de Birmingham. Eles também moram aqui,
mas passam o fim de semana com os pais em suas mansões com arcondicionado.
São os garotos descolados. Não gosto deles, e eles não
gostam de mim. Então, se você veio achando que, porque era grande merda
na escola pública, ia continuar sendo grande merda aqui, é melhor não ser
visto comigo. Você estudou em escola pública, não estudou?"
"Hmm..." eu disse. Distraído, comecei a escarafunchar os rasgões no
couro do sofá, enterrando os dedos na espuma branca.
"Certo, deve ter estudado. Do contrario, esse maldito calção não estaria
tão largo." E riu.
Eu usava as calças abaixo da linha da cintura, pois achava legal. Por fim,
eu disse: "Vim da escola pública, sim. Mas não era grande merda, Chip, era
só um merda."
"Ótimo! E não me chame de Chip. É Coronel."
Eu segurei uma risada. "Coronel?"
"É. Coronel. E seu apelido vai ser... hmm... Gordo."
"Como?"
"Gordo", o Coronel disse. "Porque você é magricela. Isso se chama ironia,
Gordo. Já ouviu falar? Agora vamos arranjar uns cigarros para começar o ano
com o pé direito."
Ele saiu do quarto, novamente supondo que eu o seguiria, e dessa vez eu
o segui. Felizmente, o sol estava baixando no horizonte. Passamos por cinco
portas até chegarmos ao Quarto 48. Um quadro-branco tinha sido grudado na
porta com fita adesiva. Nele se liam as seguintes palavras em tinta azul:
Alasca tem quarto só para ela!
O Coronel me explicou que (1) aquele era o quarto da Alasca, que (2) a
garota que dividia o quarto com ela tinha sido expulsa no final do semestre
anterior e que (3) Alasca tinha cigarros, embora o Coronel não tivesse se
dado ao trabalho de perguntar se (4) eu fumava, o que (5) não era o caso.
Ele bateu uma vez, com força. Do outro lado da porta, uma voz gritou:
"Entra logo, baixinho, porque tenho uma história das boas para contar."
Entramos. Eu me virei para fechar a porta, mas o Coronel balançou a
cabeça e disse: "Depois das sete temos de deixar a porta aberta se
estivermos no quarto de uma garota", mas eu quase não o ouvi pois diante de
mim estava a garota mais linda da história da humanidade, com jeans
cortados à altura das coxas e uma camiseta regata cor de pêssego. Ela
atropelou o Coronel, falando bem depressa.
"Certo. Primeiro dia de férias, eu estou lá na boa e velha cidade de Vine
Station, na companhia de um garoto chamado Justin. Estamos sentados no
sofá da casa dele, vendo tevê - olha que eu namoro o Jake -, ou melhor,
ainda namoro, milagrosamente, mas o Justin é meu amigo desde criança.
Estávamos vendo tevê e conversando sobre o vestibular ou algo assim, e senti
que ele estava passando o braço por cima dos meus ombros. Pensei: Ah, não
tem importância, somos amigos há tanto tempo. Isso é absolutamente
aceitável. Continuamos conversando. Eu estava no meio de uma frase sobre
analogias, eu acho, e ele baixou a mão com uma águia e deu uma buzinada no
meu peito. FON-FON. Uma buzinada forte que durou uns dois ou três
segundos. FON- FON. Na hora, pensei: Certo, como faço para tirar essas
garras de cima do meu peito antes que deixem hematomas? Depois: Santo
Deus! Mal posso esperar para contar para o Takumi e o Coronel."
O Coronel riu. Eu estava sem ação, em parte devido à potência vocal
daquela garota pequenina (mas, meu Deus, tão cheia de curvas) e em parte
devido à enorme quantidade de livros perfilados nas paredes. A biblioteca
enchia as estantes e transbordava em montes de livros que chegavam à
cintura, empilhados desordenadamente. Se um deles tombasse, pensei, o
efeito dominó poderia engolir nós três numa massa asfixiante de literatura.
"Quem é esse cara que não esta rindo da minha história engraçada?", ela
perguntou.
"Ah, certo. Alasca, esse é o Gordo. Ele coleciona últimas palavras. Gordo,
essa é a Alasca. Buzinaram o peito dela nas férias." Ela veio até mim com a
mão estendida, fez um movimento no último instante e baixou meu calção.
"Esse é o maior calção do estado do Alabama!"
"Gosto de andar assim, folgado", eu disse, morrendo de vergonha, e o
puxei para cima. Na Flórida eu estava na moda.
"Desde que nos conhecemos, Gordo, já vi suas pernas de galinha muito
mais vezes do que gostaria", disse o Coronel, sério. "Alasca, não quer nos
vender uns cigarros?" Então não sei como, o Coronel me convenceu a pagar
cinco dólares por um maço de Malboro Lights que eu não tinha a menor
intenção de fumar. Ele convidou Alasca para se juntar a nós, mas ela disse:
"Preciso achar o Takumi para contar sobre a Buzinada." Voltou-se para mim e
perguntou: "Viu o Takumi por aí?" Eu não sabia se tinha visto o Takumi, nem
mesmo sabia quem ele era. Só balancei a cabeça.
"Certo. Então nos encontramos no lago daqui a pouco." O Coronel fez que
sim.
Nós nos sentamos num balanço na beira do lago, próximo à praia de areia
(que, segundo o Coronel, era falsa), e eu fiz a piada obrigatória. "Não agarre
meu peito." O Coronel deu risada obrigatória e perguntou: "Quer fumar?" Eu
nunca tinha fumado, mas, quando em Roma...
"É seguro?"
"Não muito", ele disse, depois acendeu um cigarro e o passou para mim.
Eu traguei. Tossi. Fiquei sem ar. Resfoleguei. Tossi de novo. Quase vomitei.
Segurei-me no balanço, sentindo a cabeça girar. Joguei o cigarro no chão e
pisei em cima, convencido de que meu Grande Talvez não incluía cigarros.
"Grande fumante!" Ele riu, depois apontou para uma mancha branca do
outro lado do lado e perguntou: "Está vendo aquilo?"
"Estou", eu disse. "O que é? Um pássaro?"
"É um cisne", ele disse.
"Uau! A escola tem um cisne."
"Aquele cisne é o filho do capeta. Fique longe dele."
"Por quê?"
"Ele não gosta das pessoas. Sofreu abuso ou coisa parecida. Vai retalhar
você todinho. O Águia o colocou ali para nos impedir de fumar ao redor do
lado."
"Águia?"
"O Sr, Starnes. Codinome: o Águia. O reitor. A maioria dos professores
mora no campus. Todos ficam de olho em nós. Mas só o Águia mora no
circulo dos dormitórios e vê tudo. Ele sente cheiro de cigarro a uma distancia
de uns oito quilômetros."
"A casa dele não é aquela ali?", perguntei apontando com o dedo. Podia
ver sua casa com bastante clareza, apesar da escuridão, de onde se conclui
que ele também podia nos ver.
"É, mas ele só começa a blitzkrieg quando as aulas começam", Chip disse,
sério.
"Santo Deus, se eu me meter em confusão, meus pais me matam."
"Acho que está exagerando. Mas, olha só, você vai se meter em encrenca.
Só que, noventa e nove por cento das vezes, seus pais não vão ficar sabendo.
A escola não quer que seus pais pensem que você virou um marginal - não
mais do que você.' Ele soprou vigorosamente um longo fio de fumaça na
direção do lado. Eu tinha que admitir: ele parecia bem legal fazendo aquilo.
Mais alto, de alguma forma. "Então, quando se meter em encrenca, não vá
dedurar ninguém. Eu odeio esses riquinhos nojentos com todas as minhas
forças, tanto quanto odeio o dentista ou o meu pai. Nem por isso seria capaz
de dedurá-los. A coisa mais importante aqui é jamais, jamais, jamais, jamais
dedurar alguém."
"Certo", eu disse, embora estivesse pensando: Então, se eu levar um soco
na cara, esperam que eu insista que dei com o nariz na porta? Parecia-me
estupidez. Como lidar com os valentões e os babacas sem metê-los em
encrenca? Mas não perguntei nada ao Chip.
"Isso aí, Gordo. Mas agora está na hora de eu procurar minha namorada.
Então me dê alguns desses cigarros que você não vai fumar mesmo, e até
logo."
Decidi ficar mais um tempo no balanço, em parte porque a temperatura
tinha baixado para cerca de agradáveis, porem úmidos, trinta graus, e em
parte porque achava que Alasca poderia aparecer. Mas, logo depois que o
Coronel foi embora, os insetos atacaram. A quantidade de maruins (cuja
picada, com efeito, é bem ruim) e de mosquitos que flutuavam ao meu redor
era tanta que o pequeno ruído das duas asinhas batendo produzia um som
dissonante. Foi então que decidi fumar.
Na hora, pensei: A fumaça vai afugentar os mosquitos. E, até certo ponto,
afugentou mesmo. Mas eu estaria mentindo se dissesse que comecei a fumar
para afugentar os mosquitos. Comecei a fumar porque (1) estava sozinho
naquele balanço, (2) tinha cigarros comigo e (3) imaginei que, se todo mundo
conseguia fumar sem tossir, eu também seria capaz de fazer a mesma coisa.
Em suma, não tinha uma razão muito boa. Tudo bem, então, vamos que (4) foi
por causa dos mosquitos.
Consegui tragar três vezes antes de ficar enjoado, tonto e entorpecido,
mas de maneira apenas ligeiramente agradável. Levantei-me para ir embora.
Mas, quando fiquei de pé, uma voz atrás de mim disse:
"E verdade que você coleciona últimas palavras?"
Ela correu para o meu lado, agarrou meu ombro e me fez sentar
novamente.
"E, sim", eu disse. E, um pouco hesitante, acrescentei: "Quer fazer um
teste?"
"JFK", ela disse.
"Mas isso é óbvio", eu respondi.
"E?"
"Não. Essas foram suas ultimas palavras. Alguém disse: 'Sr. Presidente,
Dallas ama o senhor', e ele: 'Mas isso é óbvio', e tomou um tiro."
Ela riu. "Credo, que horror! Eu não devia estar rindo. Mas vou rir, mesmo
assim", e tornou a rir. Então está bem, Sr. Garoto-das-Últimas-Palavras,
tenho uma para você." Ela pegou a mochila abarrotada de coisas e tirou um
livro.
"Gabriel Garcia Márquez. O general no seu labirinto. É um dos meu
prediletos. É sobre Simón Bolívar." Eu não conhecia Simón Bolívar, mas ela
não me deu tempo de perguntar. "É um romance histórico, então não sei se é
verdade, mas no livro, sabe quais foram as últimas palavras dele? Não, não
sabe. Pois, então vou lhe dizer, Senor Últimas-Palabras."
Ela acendeu um cigarro e deu uma tragada tão longa e profunda que
pensei que a coisa toda ia se queimar de uma só vez. Ela soltou a fumaça e
leu pra mim.
"'Ele' - ou seja, Simón Bolívar - 'estremeceu diante da revelação de que a
corrida arrojada entre seus maltes e seus sonhos estava chegando ao fim. O
resto eram trevas. 'Droga', ele suspirou. 'Como sairei deste labirinto?'"
Eu sabia reconhecer grandes últimas palavras quando as ouvia então tomei
nota mentalmente de que precisava encontrar uma biografia desse Simón
Bolívar. Belas últimas palavras, mas eu não tinha entendido. "O que é o
labirinto?", perguntei.
Agora cumpre dizer que a garota era linda. Ao meu lado, no escuro, ela
cheirava a suor, sol e baunilha, e, naquela noite de fina lua crescente, eu não
enxergava muito mais do que sua silhueta, exceto quando ela fumava, então a
ponta chamejante do cigarro banhava seu rosto com uma pálida luz
avermelhada. Mesmo no escuro, eu podia ver seus olhos - ferozes
esmeraldas. Ela tinha olhos do tipo que nos levam a apoiar todas as suas
decisões. Não era apenas linda, era gostosa, com seios comprimidos pela
camiseta regata, as pernas dobradas movendo-se para frente e para trás
embaixo do balanço, os chinelos pendurados nos dedos dos pês com unhas
pintadas de azul-claro. Foi exatamente nessa hora, quando lhe perguntei sobre
o labirinto e ela me respondeu, que me dei conta da importância das curvas,
dos milhares de pontos onde o corpo das mulheres se angulam suavemente
de uma parte a outra, do peito do pé ao calcanhar, do calcanhar à panturrilha,
dali aos quadris, à cintura, aos seios, ao pescoço, ao nariz arrebitado como
rampa de esqui, à testa, ao ombro, à reentrância das contas, ao bumbum etc.
Eu já tinha reparado nas curvas, é claro, mas só então me dei conta de sua
importância.
Com a boca tão próxima de mim que eu sentia seu hálito mais quente do
que o ar, ela disse: "Esse é o mistério, não é? O labirinto é a vida ou a morte?
Do que ele está tentando escapar - do mundo ou do fim do mundo?" Esperei
que ela terminasse de falar, mas, depois de um tempo, ficou claro que ela
queria uma resposta.
"Hmm, não sei", eu disse. "Você realmente leu todos aqueles livros em seu
quarto?"
"Ela riu. "Não, claro que não! Talvez tenha lido um terço daquilo. Mas vou
ler todos. Eu os chamo de a Biblioteca da Minha Vida. Desde pequena,
percorro as vendas de garagem em busca de livros que pareçam
interessantes. Então sempre estou lendo algum livro. Mas há tanta coisa para
fazer: tantos cigarros para fumar, tanto sexo para fazer, tantos balanços para
balançar. Terei mais tempo para os livros quando ficar velha e chata."
Ela me disse que eu lhe lembrava o Coronel em seu primeiro ano em
Culver Creek. Eles tinham entrado na mesma turma de calouros, ela contou;
ambos bolsistas "com um interesse comum pela bebida e pela farra". As
palavras bebida e farra me deixaram receoso de que eu tivesse me envolvido
com o que minha mãe chamava de "as pessoas erradas", mas eles pareciam
inteligentes demais para serem as pessoas erradas. Enquanto acendia outro
cigarro usando o toco do anterior, ela me disse que o Coronel era inteligente,
mas não tinha vivido muito antes de chegar à Creek.
"Mas resolvi esse problema rapidinho." Ela sorriu. "Em novembro, eu já
tinha arranjado uma namorada para ele, sua primeira namorada, uma garota
bem legal que não tinha nada a ver com os Guerreiros de Dia de Semana.
Chamava-se Janice. Um mês depois, ele terminou o namoro porque ela era
rica demais para sua origem pobre. Que seja. Naquele ano, fizemos nosso
primeiro trote - cobrimos o chão da Sala 4 com uma camada bem fina de
bolas de gude. Mas, desde então, evoluímos, é claro." E riu. Chip tinha se
transformado no Coronel - o arquiteto dos trotes no melhor estilo militar, e
Alasca era Alasca, a impressionante força criativa por trás deles.
"Você é inteligente como o Coronel", ela disse. "Só que mais calado. E
mais bonitinho, mas não me ouviu dizer isso, porque gosto do meu namorado."
"É, você também não é feia", respondi sentindo-me desarmado por causa
do elogio. "Mas não me ouviu dizer isso, porque gosto da minha namorada.
Ah, não. Espere. Não tenho namorada."
Ela riu. "Certo. Não se preocupe, Gordo. Se tem uma coisa que posso
arranjar para você é namorada. Vamos fazer um acordo: você descobre o que
é o labirinto e como fazer para sair dele, e eu lhe arranjo uma transa."
"Fechado!" Demos as mãos selando o acordo.
Depois acompanhei Alasca até o circulo dos dormitórios. As cigarras
cantavam sua canção de uma só nota exatamente como fazia lá em casa, na
Flórida. Ela se virou para mim enquanto atravessávamos a escuridão e disse:
"Quando você está caminhando assim, de noite, às vezes não bate um medo
de uma vontade de voltar correndo para casa por mais bobo e embaraçoso
que isso seja?"
Aquilo parecia intimo e pessoal demais para confessar a uma pessoa
estranha, mas eu disse: "Bate, sim."
Por um instante, ela ficou calada. Depois pegou minha mão, sussurrou,
"Corre, corre, corre, corre, corre", e disparou, puxando-me atrás dela.

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