quarta-feira, 6 de agosto de 2014

24° Capitulo - A Escolha

O DIA SEGUINTE PASSOU EM UM BORRÃO de trajes negros e abraços. Muitas pessoas que eu nunca tinha visto compareceram ao funeral do meu pai. Fiquei em dúvida se eram todos amigos dele que eu não conhecia ou se tinham aparecido por minha causa.
O pároco da região presidiu a celebração, mas, por motivos de segurança, pediram que nossa família não se levantasse para fazer discursos. Depois veio o funeral, bem mais sofisticado do que eu esperava. Embora ninguém tivesse me contado, eu tinha certeza de que Silvia ou outro funcionário do palácio tinha dado uma ajuda para que a homenagem fosse bonita e as coisas ficassem mais fáceis para nós. Também por motivos de segurança, o funeral foi curto, mas para mim não tinha problema. Queria que aquele momento fosse o menos doloroso possível.
Aspen permaneceu perto de mim o tempo todo. Me sentia grata por sua presença; não confiaria minha vida a ninguém além dele.
— Não chorei desde que saí do palácio — comentei. — Pensei que ficaria arrasada.
— A dor vem em momentos esquisitos — ele disse. — Fiquei desolado por alguns dias depois da morte do meu pai, até me dar conta de que precisava juntar os cacos para o bem de todos. Mas de vez em quando acontecia algo que eu queria contar a ele, e então a dor voltava e eu desmoronava.
— Então… eu sou normal?
Ele sorriu.
— Você é normal.
— Não conheço a maioria dessas pessoas.
— São todas da região. Verificamos as identidades. Talvez a quantidade seja um pouco mais alta por sua causa, mas acho que seu pai pintou um quadro para os Hampshire, e já o tinha visto mais de uma vez conversando com o Sr. Clippings e com Albert Hammers no centro da cidade. É difícil saber tudo sobre as pessoas próximas, mesmo aquelas que você mais ama.
Senti que havia algo mais naquela frase, algo que ele queria que eu respondesse. Mas eu era incapaz naquele momento.
— Temos que nos acostumar — ele disse.
— Com o quê? Com a sensação de que tudo é horrível?
— Não — ele respondeu, negando com a cabeça. — O normal já não é normal. Tudo que fazia sentido está mudando.
Dei uma risada forçada.
— Está mesmo, não é?
— Precisamos parar de temer a mudança.
Ele me encarou com olhos de súplica. Não pude deixar de imaginar a qual mudança ele se referia.
— Vou enfrentar a mudança. Mas não hoje — eu disse, antes de sair para abraçar mais estranhos.
Ainda tentava me conformar com a ideia de que não tinha mais meu pai para conversar sobre meus sentimentos confusos.


Após o funeral, tentamos nos animar um pouco. Havia alguns presentes de Natal sem abrir, já que ninguém estava muito no clima de festa. Gerad recebeu autorização especial para jogar bola em casa, e minha mãe passou a maior parte do tempo ao lado de Kenna, com Astra nos braços. Kota estava intragável, então o deixamos ficar no estúdio sem nos dar ao trabalho de ver se estava bem. May era quem mais me preocupava. Ela não parava de dizer que tinha vontade de trabalhar, mas não queria entrar no estúdio e não encontrar papai lá.
Foi então que tive uma luz. Arrastei ela e Lucy para o quarto para uns momentos de descontração. Lucy não reclamou enquanto May escovava seu cabelo, e chegou até a rir das cócegas que o pincel de maquiagem fazia em sua bochecha.
— Você faz isso em mim todo dia! — reclamei de brincadeira.
May tinha um verdadeiro talento para ajeitar cabelos; seus olhos de artista estavam prontos para trabalhar em qualquer meio. Ainda que ficasse grande demais, ela colocou um dos uniformes de Lucy, que por sua vez experimentava um vestido atrás do outro a nosso pedido. No final, decidimos por um azul, longo e delicado, o qual ajustamos na parte de trás com alguns alfinetes.
— Sapatos! — May gritou antes de correr para procurar um par que combinasse.
— Meus pés são grandes demais — Lucy resmungou.
— Besteira — May insistiu, e Lucy ficou sentada obediente na cama enquanto minha irmã fazia a prova de sapatos mais bizarra do planeta.
De fato, os pés de Lucy eram bem grandes, mas ela ria quase até chorar a cada tentativa por causa das estripulias de May. Eu cheguei a sentir dores no abdome de tanto gargalhar. Fizemos tanto barulho que foi apenas questão de tempo até alguém vir conferir o que estava acontecendo.
Após três batidas rápidas, a voz de Aspen soou de trás da porta.
— Tudo bem por aí, senhorita?
Corri e escancarei a porta.
— Soldado Leger, veja nossa obra de arte — convidei, estendendo o braço na direção de Lucy; a pobrezinha ainda estava descalça e escondia os pés sob a saia do vestido.
Aspen viu primeiro May naquele uniforme folgado antes de olhar para Lucy, que parecia uma princesa.
— Que transformação impressionante — comentou, com um sorriso de orelha a orelha.
— Muito bem! Agora acho que devemos prender seu cabelo — May propôs.
Lucy revirou os olhos para Aspen e para mim e deixou May levá-la de volta ao espelho.
— Foi ideia sua? — ele perguntou em voz baixa.
— Sim. May estava tão perdida. Precisava distraí-la um pouco.
— Ela parece melhor. E Lucy também parece feliz.
— Faz tão bem para mim como para elas. Tenho a impressão de que, se conseguirmos fazer coisas bobas ou simples, vou ficar bem.
— Você vai. Vai levar um tempo, mas vai ficar tudo certo.
Assenti, mas logo voltei a pensar em meu pai. Não queria chorar naquela hora. Respirei fundo e segui em frente.
— Acho muito errado eu ser a garota de casta mais baixa a continuar na Seleção — falei baixinho para Aspen. — Veja Lucy. É tão linda, doce e inteligente quanto pelo menos metade das trinta e cinco garotas que começaram, mas isso é o melhor que terá. Umas poucas horas com um vestido emprestado. Não é certo.
Aspen balançou a cabeça.
— Pude conhecer suas criadas muito bem ao longo dos últimos meses. Lucy é mesmo uma moça especial.
De repente, me lembrei de uma promessa que tinha feito.
— Por falar nas minhas criadas, preciso ter uma conversa com você — disse, com a voz ainda mais baixa.
Aspen ficou sério.
— Sei que é constrangedor, mas preciso falar mesmo assim.
— Tudo bem — ele disse, engolindo em seco.
Olhei para ele, um pouco encabulada.
— O que você acha de Anne?
Seu rosto assumiu uma expressão estranha, como se estivesse aliviado e impressionado ao mesmo tempo.
— Anne? — ele murmurou, incrédulo. — Por que ela?
— Acho que ela gosta de você. E é uma garota muito doce — eu disse, com a intenção de não revelar completamente os sentimentos de Anne e, ao mesmo tempo, valorizá-la.
Ele sacudiu a cabeça.
— Sei que você quer que eu comece a pensar em outras pessoas, mas ela está longe de ser o tipo de garota que quero para mim. Ela é muito… rígida.
Dei de ombros.
— Eu também pensava isso de Maxon até conhecê-lo melhor. Além disso, acho que ela sofreu muito na vida.
— E daí? Lucy também sofreu, e olhe para ela — argumentou, apontando a cabeça na direção dela, que ria diante do espelho.
— Ela já contou a você como veio parar no palácio? — especulei.
Ele confirmou com a cabeça.
— Sempre odiei as castas, Meri. Você sabe. Mas não sabia que podiam ser manipuladas dessa maneira, a ponto de existir escravidão.
Deixei escapar um suspiro ao olhar para Lucy e May naquele momento de alegria em meio à dor.
— Prepare-se para ouvir algo que jamais pensou que fosse escutar — Aspen me alertou, e olhei para ele com curiosidade. — Estou muito feliz por Maxon ter conhecido você.
Tossi na tentativa de esconder uma risada.
— Eu sei, eu sei — ele continuou, revirando os olhos mas sorrindo. — É que ele nunca olharia para as castas inferiores se não fosse por você. Acho que o simples fato de você estar lá já mudou as coisas.
Trocamos olhares por um momento. Me lembrei da nossa conversa na casa da árvore, quando ele insistiu para eu me inscrever na Seleção na esperança de que eu tivesse um futuro melhor. Ainda não sabia se tinha conquistado algo melhor para mim – era difícil dizer – mas só de pensar na possibilidade de conseguir um futuro melhor para todos de Illéa… Isso significava mais do que eu podia expressar.
— Estou orgulhoso de você, America — Aspen disse, desviando os olhos para focar nas garotas em frente ao espelho. — Muito orgulhoso.
Então ele voltou ao corredor para retomar sua patrulha.
— E seu pai também estaria.

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