EU ESTAVA CERTA. Aspen conhecia de cor cada canto do palácio e sabia exatamente como Maxon e eu poderíamos sair de lá.
— Você tem certeza disso? — Maxon perguntou enquanto nos trocávamos em meu quarto na noite seguinte.
— Precisamos saber o que está acontecendo. Não tenho dúvida de que estaremos seguros.
A porta do banheiro estava entreaberta e conversávamos por uma frestinha enquanto ele atirava o terno no chão e vestia jeans e camiseta próprios de um Seis. As roupas de Aspen eram um pouco grandes para Maxon, mas serviam. Felizmente, para mim ele tinha conseguido arranjar umas roupas menores com outro soldado. Mesmo assim, tive que dobrar várias vezes a barra da calça para encontrar meus pés.
— Você parece confiar muito nesse guarda — Maxon comentou.
Não consegui identificar nada no seu tom de voz. Talvez estivesse ansioso.
— Minhas criadas dizem que é um dos melhores à sua disposição. E foi ele quem me levou até o abrigo quando os sulistas vieram daquela vez. Ele sempre pareceu pronto para tudo, mesmo em momentos tranquilos. Tenho uma boa impressão dele. Confie em mim.
Em meio ao barulho das roupas, Maxon continuou com as perguntas:
— Como você sabia que ele seria capaz de nos tirar do palácio?
— Não sabia. Apenas perguntei.
— E ele simplesmente disse que sim?
— Bem, eu disse que era um favor para você.
Então ele emitiu um som que parecia um suspiro.
— Ainda acho que você não deveria vir.
— Eu vou, Maxon. Já está pronto?
— Sim, só preciso calçar os sapatos.
Abri a porta e, depois de uma olhada rápida, Maxon caiu na gargalhada.
— Desculpe. Estou acostumado a vê-la de vestido.
— Você também fica diferente quando não está de terno.
De fato ele ficava, mas não de um jeito cômico. Embora as roupas de Aspen fossem grandes demais, Maxon ficava bem de jeans surrado. A camiseta mostrava os braços fortes que eu só tinha visto no abrigo.
— Esta calça é muito pesada. Por que você é tão fã de jeans? — perguntou, lembrando do pedido que eu tinha feito ainda em meu primeiro dia no palácio.
— Apenas gosto — respondi, dando de ombros.
Ele achou graça e balançou um pouco a cabeça. Depois foi até o meu armário, sem sequer perguntar se podia abri-lo.
— Precisamos de algo para segurar sua calça, ou a noite será bem escandalosa. Bom, mais do que já é.
Maxon pegou uma faixa vermelho-escura, se aproximou e a passou pelas alças no cós da calça. Não conseguiria dizer por quê, mas aquele gesto significou muito para mim. Meu coração disparou de tal maneira que cheguei a me perguntar se Maxon não o ouvia gritando o quanto eu o amava. Se ouviu, achou melhor ignorar por causa das circunstâncias em que estávamos.
— Ouça — ele disse enquanto amarrava a faixa — o que vamos fazer é muito perigoso. Se acontecer alguma coisa, quero que corra. Nem tente voltar ao palácio. Encontre uma família que te hospede durante a noite.
Maxon deu um passo para trás e encarou meu rosto aflito. Inclinei a cabeça.
— Ficar na casa de alguém agora pode ser quase tão perigoso quanto enfrentar os rebeldes. As pessoas podem estar com raiva por não termos abandonado a competição.
— Se o artigo que Celeste mostrou estiver correto, as pessoas talvez estejam orgulhosas de você.
Quis discordar de Maxon, mas uma batida na porta nos interrompeu. O príncipe abriu, e logo Aspen e outro soldado entraram no quarto pouco iluminado.
— Alteza — saudou Aspen com uma pequena reverência. — A senhorita America nos informou que o senhor precisa ir além das muralhas do palácio.
Maxon respirou fundo.
— Sim. E ouvi dizer que você é o homem que pode me ajudar, soldado… — ele buscou o distintivo de Aspen — Leger.
Aspen confirmou com a cabeça.
— Não será muito difícil, na verdade. Manter a discrição talvez seja mais difícil do que conseguir sair.
— Como assim?
— Bom, presumo que exista algum motivo para o senhor fazer isto à noite, sem o conhecimento do rei. Se fôssemos interrogados diretamente — Aspen falou, lançando um olhar para o outro soldado também — acho que não poderíamos mentir para ele.
— E eu não pediria isso a vocês. Espero poder revelar isso a meu pai em breve. Esta noite, porém, a discrição é fundamental.
— Não será problema — Aspen respondeu, um pouco hesitante. — Acho que a senhorita não deveria ir.
Como se tivesse vencido a discussão, Maxon me olhou com uma cara que dizia não falei?
Endireitei minha postura ao máximo e anunciei:
— Não vou ficar aqui sentada esperando. Já fui perseguida por rebeldes uma vez e fiquei bem.
— Mas não eram sulistas — Maxon rebateu.
— Eu vou. E estamos perdendo tempo.
— Vamos ser claros: ninguém concorda com você.
— Vamos ser claros: eu não ligo.
Bufando, Maxon ajeitou a touca na cabeça.
— Então, o que devemos fazer?
— O plano é bem simples — Aspen disse, em um tom decidido. — Duas vezes por semana, o palácio despacha um caminhão para comprar mantimentos. Às vezes, a cozinha fica sem provisões no meio da semana, então o caminhão sai de novo para buscar o que estiver em falta. Geralmente, quem vai são empregados da cozinha e alguns guardas.
— E ninguém vai suspeitar? — perguntei.
Aspen negou com a cabeça.
— Essas saídas são quase sempre à noite. Se o cozinheiro diz que precisamos de mais ovos para o café da manhã, bom, é melhor ir antes do amanhecer.
Maxon pegou a calça do terno no chão e vasculhou os bolsos.
— Consegui enviar um bilhete a August. Ele disse para nos encontrarmos neste endereço.
Maxon entregou o papel para Aspen, que leu com o outro soldado.
— Sabe onde fica?
O soldado, um jovem de pele escura cujo distintivo eu finalmente tinha conseguido ler – AVERY – fez que sim com a cabeça.
— Não é a melhor parte da cidade, mas perto o bastante dos armazéns para não levantar suspeitas.
— Certo — Aspen disse. Depois olhou para mim e ordenou: — Esconda o cabelo embaixo da touca.
Torci o cabelo e fiz um coque no alto da cabeça, na esperança de que ficasse completamente coberto. Depois de esconder os últimos fios, perguntei a Maxon:
— Que tal?
Ele desatou a rir.
— Está ótimo.
Dei um soquinho no braço dele antes de virar para ouvir as próximas instruções de Aspen.
Notei a dor em seus olhos ao notar minha intimidade com Maxon. Talvez fosse mais que isso. Nós tínhamos passado dois anos escondidos em uma casa da árvore, mas naquele momento eu estava prestes a circular pelas ruas após o toque de recolher com o homem que os rebeldes sulistas queriam ver morto.
Era um tapa na cara de tudo o que já tínhamos vivido.
E, mesmo que eu não o amasse mais, Aspen ainda era importante para mim. Não queria fazê-lo sofrer.
Antes que Maxon percebesse o que se passava, Aspen se recompôs e disse:
— Sigam-nos.
Esgueirando-se pelo corredor, Aspen e o soldado Avery nos conduziram pela escadaria que levava ao abrigo gigante reservado à família real. Em vez de seguir na direção das grandes portas de aço, atravessamos a extensão do palácio até subirmos por outra escada em espiral. Parecia que chegaríamos ao primeiro andar, mas saímos na cozinha.
Assim que entrei, senti o calor e o aroma doce de pão assando. Por uma fração de segundo, me senti em casa. Esperava algo mais frio, mais profissional, como as padarias chiques que havia na parte bonita da minha cidade. No entanto, encontrei grandes mesas de madeira cobertas de verduras e legumes prontos para ser preparados. Bilhetes por toda parte lembravam os funcionários do turno seguinte o que havia para fazer. No fim das contas, a cozinha era aconchegante, apesar do tamanho.
— Mantenham a cabeça baixa — o soldado Avery sussurrou para nós dois.
Estudávamos o ambiente quando Aspen gritou:
— Delilah?
— Um segundo, querido! — alguém respondeu.
Sua voz era forte e carregava um pouco do sotaque arrastado do sul que algumas vezes eu escutara em Carolina. Passos pesados se aproximaram de nós, mas evitei levantar os olhos para ver o rosto da mulher.
— Leger, docinho, como tem passado?
— Bem. Acabei de ouvir que havia uma encomenda para buscar e imaginei que você teria uma lista para mim.
— Encomenda? Não que eu saiba.
— Esquisito. Eu tinha certeza…
— É melhor ir lá conferir — ela disse, sem qualquer indício de suspeita ou preocupação na voz. — Não quero deixar de buscar nada para o palácio.
— O.k., não vou demorar — Aspen disse.
Ouvi o som ligeiro de sua mão ao pegar o molho de chaves.
— Vejo você mais tarde, Delilah. Se estiver dormindo, penduro as chaves no gancho.
— Certo, querido. Venha me visitar logo, faz tempo que você não vem.
— Pode deixar.
Aspen se pôs a caminho, e o seguimos sem dar um pio. Sorri internamente. A mulher, Delilah, tinha uma voz grave, madura. Mas mesmo ela não resistia ao charme de Aspen.
Dobramos o corredor e subimos uma rampa até um par de portas amplas. Aspen destrancou o cadeado e as abriu. À nossa espera, sob o doce ar de Angeles, estava um grande caminhão preto.
— Não tem onde segurar, mas acho que vocês dois deveriam ir na parte de trás — recomendou Avery.
Olhei para a carroceria enorme. Pelo menos não correríamos o risco de ser reconhecidos. Fui até a traseira do veículo, onde Aspen já abria as portas.
— Senhorita — ele disse, estendendo a mão para me ajudar. — Alteza — ele acrescentou na vez de Maxon, que dispensou a ajuda.
Dentro do caminhão, havia alguns caixotes e uma espécie de estante na lateral. De resto, era uma grande caixa de metal vazia. Maxon foi na frente para inspecionar a área.
— Aqui, America — ele disse, apontando para o canto. — Vamos nos apoiar contra a estante.
— Tentaremos dirigir sem muitos solavancos — Aspen disse.
Maxon assentiu. Aspen lançou um olhar solene em nossa direção antes de fechar as portas.
Em meio à escuridão, me apoiei em Maxon.
— Está com medo? — perguntou.
— Não.
— Nem eu.
Mas eu tinha certeza de que estávamos mentindo.
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