— … ENTENDER. ELA VAI QUERER visitar a família.
— Se for, será por apenas um dia. Não gosto dela, mas o povo gosta, sem falar nos italianos. Sua morte seria um grande inconveniente.
Abri os olhos. Estava na cama, mas não debaixo dos cobertores. Pelo canto dos olhos, via que Mary estava comigo no quarto.
O barulho das vozes estava abafado. Percebi que era porque eles estavam do lado de fora do quarto, em frente à porta.
— Não será o bastante. Ela amava muito o pai. Vai querer mais tempo — Maxon argumentou.
Ouvi um punho socar a parede. O som fez Mary e eu pularmos de susto.
— Está bem — bufou o rei. — Quatro dias. E só.
— E se ela decidir não voltar? Apesar de não ser culpa dos rebeldes, ela pode querer ficar.
— Se for burra o bastante para isso, azar o dela. Aliás, ela tinha que me dar uma resposta sobre os pronunciamentos. Se não quiser fazê-los, pode ficar em casa.
— Ela disse que faria. Me contou no início da noite — Maxon mentiu. Mas ele sabia, não sabia?
— Já não era sem tempo. Assim que retornar, ela vai para o estúdio. Quero isso pronto antes do Ano-Novo — o rei falou, irritado, apesar de ter conseguido o que queria.
Após uma pausa, Maxon ousou dizer:
— Quero ir com ela.
— Nem pensar! — berrou o rei Clarkson.
— Só restam quatro, pai. Essa garota pode se tornar minha esposa. Como posso deixá-la ir sozinha?
— Deixando! Se ela morrer, é uma coisa. Se você morrer, a história é completamente diferente. Você fica!
Outro soco na parede. Dessa vez, pareceu ser de Maxon.
— Não sou sua propriedade. Nem elas. Gostaria que o senhor alguma vez olhasse para mim como uma pessoa.
A porta se abriu violentamente, e Maxon entrou.
— Sinto muito — disse, aproximando-se para sentar na cama. — Não queria acordá-la.
— É verdade?
— Sim, querida. Ele partiu.
Com o rosto condoído, Maxon tomou minha mão e continuou:
— Teve um problema no coração.
Sentei e me joguei nos braços de Maxon. Ele me abraçou com força e me deixou chorar em seu ombro.
— Papai… papai… — chorei.
— Calma, querida. Vai ficar tudo bem — Maxon me tranquilizava. — Amanhã você vai pegar um voo até lá.
— Não me despedi. Não…
— America, ouça: seu pai amava você. Estava orgulhoso por você estar se saindo tão bem. Jamais cobraria isso.
Concordei com a cabeça. Ele tinha razão. Praticamente em todas as vezes que nos falamos desde que eu fora para o palácio, meu pai me dizia como estava orgulhoso.
— Agora preste atenção no que você precisa fazer, certo? — Maxon começou a me orientar enquanto secava minhas lágrimas. — Precisa dormir o melhor que puder. Você partirá amanhã e ficará com a sua família por quatro dias. Tentei conseguir mais tempo, mas meu pai é muito teimoso.
— Tudo bem.
— Suas criadas estão costurando um vestido adequado para o funeral. Depois, vão preparar as malas com o que for necessário. Uma delas vai com você, e também alguns guardas. A propósito — ele disse, levantando para cumprimentar alguém que tinha aparecido na porta — soldado Leger, obrigado por vir.
— Sem problemas, Alteza. Peço desculpas por não estar de uniforme, senhor.
Maxon apertou a mão de Aspen.
— Esta é a menor das minhas preocupações no momento. Certamente você sabe o motivo de sua presença aqui.
— Sim — Aspen confirmou, voltando-se para mim. — Sinto muito pela perda, senhorita.
— Obrigada — balbuciei.
— A crescente atividade rebelde nos deixa preocupados com a segurança da senhorita America — explicou Maxon. — Já destacamos um grupo de soldados locais para a casa dela e para os demais locais por onde ela passará nos próximos dias. Ainda há soldados treinados aqui no palácio por lá, claro. Mas como ela vai de fato ficar na casa, acho necessário enviar mais.
— Com certeza, Alteza.
— Você conhece a região?
— Muito, senhor.
— Ótimo. Você comandará o grupo que deve acompanhá-la. Escolha quem quiser, entre seis e oito guardas.
Aspen levantou as sobrancelhas.
— Eu sei — Maxon concordou. — Estamos apertados no momento, mas pelo menos três dos soldados que enviamos à casa dela já desertaram. E quero que ela esteja tão segura lá quanto estaria aqui. Senão mais.
— Cuidarei disso, senhor.
— Excelente. Uma criada irá junto. Cuide dela também.
Depois, virando-se para mim, Maxon perguntou:
— Já sabe quem você quer levar?
Balancei os ombros, incapaz de pensar direito.
Aspen falou por mim.
— Se me permitem, sei que Anne é a chefe de suas criadas, mas lembro que Lucy se deu bem com sua mãe e sua irmã.
Talvez fosse bom para elas ver um rosto amigo.
— Lucy — concordei.
— Ótimo — disse Maxon. — Soldado Leger, não há muito tempo. Vocês partem ao amanhecer.
— Vou cuidar de tudo imediatamente, senhor. Vejo a senhorita pela manhã — disse Aspen.
Dava para notar que era difícil para ele ficar longe de mim. E, naquele momento, eu não desejava nada além de seu conforto. Aspen conheceu bem meu pai, e eu queria alguém que o entendesse como eu para chorar comigo.
Assim que Aspen saiu, Maxon sentou ao meu lado.
— Uma última coisa antes de você partir — ele disse, segurando carinhosamente as minhas mãos. — Às vezes você tende a ser impulsiva em momentos delicados.
Ele me encarou antes de continuar. Achei um pouco de graça em seu olhar acusador.
— Tente ser razoável enquanto estiver fora. Preciso que você tome cuidado.
Afaguei a mão dele com a minha.
— Tomarei. Prometo.
— Obrigado.
Uma sensação de paz pairava sobre nós, como em outras vezes. Embora eu soubesse que meu mundo nunca mais voltaria a ser o mesmo, durante um instante, nos braços de Maxon, a dor da perda não parecia tão forte.
Ele se inclinou em minha direção até nossas testas se tocarem. Ele inspirou, como se fosse dizer algo, mas desistiu. Alguns momentos depois, fez isso de novo.
Por fim, Maxon se endireitou, balançou a cabeça e me deu um beijo na bochecha.
— Cuide-se.
E então saiu, me deixando sozinha com a minha tristeza.
Fazia frio em Carolina; a umidade do mar deixava a friagem levemente molhada. Em meu coração, desejei que nevasse, mas não aconteceu. Depois, me senti culpada por ter desejado o que quer que fosse naquela situação.
Natal. Tinha passado três semanas imaginando como seria. Pensei que talvez estaria em casa, eliminada. Ficaríamos todos ao redor da árvore, tristes por eu não ser princesa, mas eufóricos de alegria por estarmos juntos. Também considerei a possibilidade de abrir presentes debaixo da enorme árvore do palácio, me entupindo de comida e rindo com as outras garotas e Maxon, todos de folga da competição.
Nunca teria imaginado que eu estaria me preparando para enterrar meu pai.
Comecei a ver a multidão quando o carro entrou na rua da minha casa. Embora as pessoas devessem estar em casa com suas famílias, preferiram se juntar sob o frio. Então percebi que elas queriam me ver, e me senti muito mal. As pessoas apontavam quando passávamos, e uma rede de televisão local gravava tudo.
O carro parou diante da minha casa, e fui ovacionada pelo público. Eu não conseguia entender. Eles não sabiam por que eu havia voltado? Caminhei pela calçada rachada ao lado de Lucy e seis guardas. Não assumiríamos nenhum risco.
— Senhorita America! — gritavam as pessoas na rua.
— Um autógrafo, por favor! — berrou alguém, e outros pediram o mesmo.
Passei reto, olhando para a frente. Uma vez que fosse, achei que podia me dar ao luxo de ignorá-los. Ergui os olhos para as luzes de Natal que pendiam do telhado. Meu pai as colocara lá. Quem as tiraria?
Aspen, à frente do grupo, bateu na porta e esperou. Um guarda abriu, e os dois conversaram brevemente antes de todos poderem entrar. Foi difícil passarmos todos pelo corredor, mas logo que chegamos à sala de estar senti algo… estranho.
Aquela não era mais minha casa.
Disse a mim mesma que estava louca. Claro que era a minha casa. As circunstâncias do meu retorno é que eram incomuns. Todos estavam presentes, até Kota. Mas meu pai tinha nos deixado, então era natural que as coisas parecessem fora de lugar. E Kenna trazia nos braços um bebê que eu nunca tinha visto pessoalmente. Precisava me acostumar com aquilo.
E, enquanto minha mãe vestia um avental e Gerad, seu pijama, eu estava preparada para um jantar no palácio: cabelo arrumado, brincos de safira e diversas camadas de tecido sofisticado me cobriam dos pés à cabeça. Por um instante, senti que não era bem-vinda.
Contudo, May levantou com um pulo e correu para me abraçar e chorar em meu ombro. Abracei-a forte. O contraste podia ser difícil de superar a princípio, mas tive certeza de que ali era o único lugar em que eu deveria estar naquele momento. Eu precisava ficar com a minha família.
— America — Kenna disse, com a filha nos braços — você está tão linda.
— Obrigada — murmurei, encabulada.
Ela me abraçou com um braço só, e pude ver minha sobrinha dormindo entre os cobertores. O rostinho de Astra revelava um sono sereno, e de vez em quando ela mexia um pouco os dedos. Era impressionante.
Aspen limpou a garganta.
— Senhora Singer, meus pêsames por sua perda.
Minha mãe abriu um sorriso cansado.
— Obrigada.
— Sinto muito por não estarmos aqui em circunstâncias melhores, mas com a senhorita America em casa teremos de ser bastante cautelosos com a segurança — disse ele, com um quê de autoridade na voz. — Pedimos a todos que permaneçam aqui. Sei que vai ser apertado, mas é por apenas alguns dias. E os guardas dispõem de um apartamento nas imediações, de modo que podemos nos revezar com facilidade. Tentaremos ao máximo não atrapalhar.
“James, Kenna, Kota: quando quiserem podemos ir às casas de vocês para pegar o que for necessário. Se precisarem de tempo para fazer uma lista, não há problemas. Estamos a seu dispor.
Sorri, feliz por ver Aspen daquele jeito. Ele tinha amadurecido tanto.
— Não posso ficar longe do meu estúdio — reclamou Kota. — Tenho prazos. Há peças para terminar.
Aspen apontou para a garagem de casa e, ainda em tom de voz profissional, respondeu:
— Todo o material de que você precisar poderá ser trazido para o estúdio daqui. Faremos quantas viagens forem necessárias.
Kota cruzou os braços e resmungou:
— Este lugar é um lixo.
— Pois bem — Aspen replicou com firmeza. — A escolha é sua. Pode trabalhar no lixo ou arriscar a vida em seu apartamento.
Uma tensão constrangedora e bastante desnecessária naquele momento pesou no ar. Resolvi quebrá-la:
— May, você pode dormir comigo. Kenna e James ficam no seu quarto.
Eles concordaram.
— Lucy — cochichei — quero você perto da gente. Talvez você tenha que dormir no chão, mas queria que ficasse ao meu lado.
Lucy aprumou o corpo.
— Eu não ficaria em nenhum outro lugar, senhorita.
— Onde eu vou dormir? — Kota quis saber.
— Comigo — propôs Gerad, sem qualquer empolgação.
— De jeito nenhum! — desprezou Kota. — Não vou dormir com uma criança no beliche.
— Kota! — protestei, dando um passo à frente de Lucy e de minhas irmãs. — Por mim, você pode dormir no sofá, na garagem ou na casa da árvore; mas se não se controlar, vou mandá-lo de volta para o seu apartamento imediatamente! Agradeça um pouco a segurança que estão lhe oferecendo. Por acaso preciso lembrar que amanhã enterraremos nosso pai? Então pare de reclamar ou volte para a sua casa.
Dei meia-volta e saí pisando forte. Não precisei olhar para trás para saber que Lucy me acompanhava com a mala na mão. Entrei no quarto e esperei que ela fizesse o mesmo. Assim que sua saia cruzou o batente, bati a porta e soltei um suspiro pesado.
— Foi demais? — perguntei.
— Foi perfeito! — ela respondeu, empolgada. — A senhorita já pode ser princesa. Está pronta.
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