quarta-feira, 6 de agosto de 2014

25° Capitulo - A Escolha


A PRISÃO DOMICILIAR CONTINUOU NO DIA SEGUINTE. De tempos em tempos, ouvia o chão estalar e olhava na direção da garagem, na expectativa de ver meu pai sair de lá com tinta no cabelo, como sempre acontecia. Mas a certeza de que aquilo nunca mais ia acontecer não parecia tão ruim quando eu ouvia a voz de May ou sentia o cheiro do talco de Astra. A casa parecia cheia, e isso bastava no momento. Era um tipo diferente de consolo.
Decidi que Lucy não precisava usar uniforme enquanto estivesse lá. Com algum protesto da parte dela, consegui fazê-la vestir algumas das minhas roupas antigas, que eram pequenas para ela, mas grandes demais para May. Como a distração de minha mãe era cozinhar e servir a todos, e eu tinha adotado um visual mais casual para ficar em casa, a tarefa de Lucy passou a ser brincar com May e Gerad, o que ela fez com alegria.
Estávamos todos reunidos na sala de estar, cada qual ocupado à sua maneira. Eu lia um livro enquanto Kota assistia à TV. Isso me fez lembrar de Celeste, e esbocei um sorriso. Apostava que ela estava fazendo o mesmo que meu irmão naquele momento.
Lucy, May e Gerad jogavam baralho no chão, rindo cada vez que um deles ganhava uma rodada. No sofá, Kenna abraçava as costas de James, e a pequena Astra terminava sua mamadeira nos braços do pai. O cansaço era evidente em seu rosto, mas também dava para perceber o orgulho enorme que tinha da esposa e da filha linda.
Era quase como se nada tivesse mudado. Então vi pelo canto dos olhos Aspen montando guarda e me lembrei: na verdade, nada mais seria como antes.
Ouvi minha mãe suspirar no corredor. Vi enquanto ela se aproximava de nós com a mão cheia de envelopes.
— Como você está, mãe? — perguntei.
— Bem. Não consigo acreditar que ele se foi — ela soluçou, segurando-se para não chorar de novo.
Estranho. Muitas vezes eu duvidava do amor da minha mãe pelo meu pai. Nunca tinha flagrado um momento de carinho entre eles como nos outros casais. Até Aspen, quando mantínhamos nosso relacionamento em segredo, parecia me amar mais do que minha mãe amava meu pai.
No entanto, percebi que seu sofrimento ia além da preocupação por ter que criar May e Gerad sozinha ou pela falta de dinheiro. Seu marido tinha partido, e nada jamais consertaria isso.
— Kota, você pode desligar a TV um minuto? E Lucy, querida, você poderia levar May e Gerad para o quarto de America? Tenho um assunto para discutir com os outros — ela disse sem elevar a voz.
— Claro, senhora — Lucy respondeu, e em seguida chamou May e Gerad. — Vamos lá.
May não pareceu feliz por ser excluída do que quer que fosse acontecer, mas optou por não brigar. Não sei se pelo estado de minha mãe ou por gostar de Lucy. Qualquer que tenha sido o motivo, fiquei feliz.
Assim que eles se retiraram, minha mãe se dirigiu a nós:
— Vocês sabem que o problema de coração do seu pai era de família. Acho até que ele adivinhava que tinha pouco tempo, porque há uns três anos escreveu estas cartas para vocês, para todos vocês.
Nesse momento, minha mãe baixou os olhos para os envelopes que trazia nas mãos.
— Ele me fez prometer que entregaria a vocês caso alguma coisa acontecesse. Tenho cartas para Gerad e May, mas acho que são muito novos para isso. Nunca li nenhuma delas. Era para vocês, então… pensei que este seria um bom momento para lerem. Esta é para Kenna — ela disse antes de entregar a carta para minha irmã. — Kota — ele se endireitou no sofá ao receber a sua. — E America.
Peguei a carta, mas não tinha certeza se queria abri-la imediatamente. Eram as últimas palavras do meu pai, o adeus que pensara ter perdido. Passei a mão sobre meu nome no envelope e imaginei meu pai escrevendo. Ele tinha feito o pingo do meio rabiscado. Abri um sorriso, tentando imaginar o motivo para ele fazer aquilo, mas não me preocupei muito. Talvez ele soubesse que eu estaria precisando de um sorriso quando fosse ler.
Só que então observei melhor o envelope. Aquela marquinha tinha sido feita depois. A tinta do meu nome já tinha desbotado, mas a do rabisco ainda estava escura e fresca.
Virei o envelope. O lacre havia sido rompido e colado novamente com fita.
Olhei para Kenna e Kota: os dois estavam mergulhados na leitura. Pareciam fascinados, o que provava que as cartas eram desconhecidas também para eles até aquele momento. Isso só podia significar duas coisas: ou minha mãe mentira e já tinha lido minha carta, ou meu pai reabrira o envelope.
Aquilo bastou para que eu resolvesse ler o que ele tinha escrito para mim. Puxei cuidadosamente o lacre remendado e abri o envelope.
Dentro havia uma carta em papel já amarelado e um bilhete em papel ainda branco. Quis começar pelo bilhete, mas receei que não o entenderia se não lesse a carta antes. Desdobrei a carta e comecei a ler sob a luz do sol que entrava pela janela.

America,
Minha doce menina. É difícil começar a escrever esta carta porque sinto que há muito a dizer para você. Embora eu ame todos os meus filhos igualmente, você tem um lugar especial em meu coração. Kenna e May se apoiam mais em sua mãe; Kota é tão independente que Gerad fica fascinado por ele; mas você sempre recorreu a mim. Quando arranhava o joelho ou sofria na mão dos mais velhos, sempre buscava os meus braços. Era a coisa mais importante do mundo saber que pelo menos um dos meus filhos tinha em mim seu porto seguro.
Contudo, mesmo que você não me amasse do jeito que ama, sem qualquer preocupação ou comedimento, ainda seria incrivelmente orgulhoso de você. Você está se tornando uma artista talentosa por mérito próprio, e o som de seu violino ou da sua voz ecoando pela casa são os mais adoráveis e tranquilizantes do mundo. Gostaria de poder lhe dar um palco melhor, America. Você merece muito mais do que ficar se apresentando em festinhas. Fico sempre na esperança de que você seja uma das sortudas, um dos pontos fora da curva. Acho que Kota também tem essa chance. Ele tem talento para o que faz. Mas tenho a impressão de que Kota lutaria por isso, e não sei se você tem esse instinto. Você nunca foi uma menina agressiva, como alguns membros das castas inferiores podem ser. E esse é um dos motivos que me fazem amar você.
Você é boa, America. E ficaria surpresa de saber como isso é raro neste mundo. Não digo que seja perfeita; como já testemunhei seus acessos de raiva, sei que isso está longe de ser verdade! Mas você é bondosa, e sofre quando as coisas não são justas. Você tenta agir assim com seus irmãos às vezes, e não aceita o segundo lugar simplesmente por ser mais jovem. E luta para que May e Gerad fiquem bem quando poderia simplesmente não fazer nada. Você é boa.
Suspeito que enxergue o mundo de um jeito que ninguém mais vê, nem mesmo eu.
Eu gostaria de dizer a você o que eu enxergo.
Ao escrever para seus irmãos e irmãs, senti a necessidade de incutir um pouco de sabedoria. Percebo neles, mesmo no pequeno Gerad, traços de personalidade que podem fazer cada ano ficar mais difícil se eles não se esforçarem para combater as dificuldades da vida. Não sinto essa mesma necessidade ao escrever para você.
Sinto que você não deixará o mundo empurrá-la para uma vida que não deseja. Talvez esteja errado, então me deixe ao menos dizer uma coisa: lute, America. Você talvez não queira lutar pelas mesmas coisas que a maioria deseja, como dinheiro e sucesso. Ainda assim, lute. Não importa o que você deseja, America, vá atrás com todas as suas forças.
Se for capaz disso, se for capaz de evitar uma segunda opção por medo, então não lhe peço mais nada como pai.
Viva sua vida. Seja o mais feliz que puder, deixe de lado as coisas que não importam e lute. Amo você, gatinha. Tanto que não consigo encontrar as palavras para expressar. Talvez pudesse pintar, mas a tela não caberia no envelope. Ainda assim, nunca lhe faria justiça. Meu amor por você está além da tinta, das melodias e das palavras. E espero que você o sinta sempre. Mesmo quando eu não estiver por perto para dizer.
Com amor,
Papai

Não sei bem em que ponto tinha começado a chorar, mas foi difícil terminar a leitura da carta. Queria muito poder dizer a ele que o amava da mesma maneira. E, por um minuto, fui capaz de sentir a ternura que só a aceitação absoluta seria capaz de proporcionar.
Levantei os olhos e vi Kenna chorando também enquanto terminava sua carta. Kota parecia confuso e folheava as páginas como se quisesse reler alguns pontos.
Voltei ao envelope e peguei o bilhete, na esperança de que não fosse tão comovente como a carta. Não tinha certeza se estava pronta para ler mais daquilo.

America,
Sinto muito. Durante nossa visita, fui ao seu quarto e encontrei o diário de Illéa. Você não me contou que estava lá, apenas imaginei que estaria. Se isso causar algum problema, a culpa é minha. E estou certo de que haverá repercussões, por eu ser quem sou e ter contado a quem contei. Odeio traí-la desse jeito, mas acredite que o fiz na esperança de que seu futuro e o de todos sejam melhores.
Olhe para a Estrela do Norte,
Sua guia permanente.
Que a honra, a verdade e tudo o que é certo
Estejam com você eternamente.
Amo você,
Shalom

Fiquei imóvel por vários minutos na tentativa de decifrar aquele enigma. Repercussões? Para quem ele tinha contado? E o que era aquele poeminha?
Ao poucos, me lembrei das palavras de August: ele não tinha confirmado a existência dos diários pela minha apresentação no Jornal Oficial… Ele sabia mais do que se passava no palácio do que eu havia exposto… Quem sou… a quem contei… olhe para a Estrela do Norte
Observei a assinatura do meu pai e me lembrei de como ele assinava as cartas que me enviava no palácio. Sempre achei estranho seu jeito de escrever a letra L. Eram estrelas de oito pontas – Estrelas do Norte. E o rabisco sobre o do meu nome… Será que também significava alguma coisa? Será que significava alguma coisa porque tínhamos conversado com August e Georgia?
August e Georgia! A bússola deles tinha oito pontas. Os desenhos na jaqueta dela definitivamente não eram flores. Eram estrelas; diferentes, mas ainda assim estrelas. O garoto que foi sentenciado por Kriss na Condenação. A tatuagem em seu pescoço não era uma cruz.
Era assim que eles identificavam uns aos outros.
Meu pai era um rebelde nortista.
Tive a impressão de já ter visto a estrela em outros lugares. Talvez no mercado ou mesmo no palácio. Será que durante anos ela esteve bem na minha cara?
Atônita, levantei os olhos. Aspen permanecia de guarda; seus olhos faziam perguntas que eu não podia responder em voz alta.
Meu pai era um rebelde. Um antigo livro de história em seu quarto, amigos sobre os quais eu nada sabia em seu funeral… uma filha chamada America. Se tivesse prestado atenção, teria descoberto anos antes.
— É isso? — Kota perguntou, meio ofendido. — Que diabos vou fazer com isso?
Desviei o olhar de Aspen e olhei para ele.
— O que houve? — minha mãe perguntou ao voltar para a sala trazendo chá.
— A carta do papai. Ele me deixou esta casa. O que vou fazer com esse lixo?
Ele se levantou, apertando os papéis da carta com força.
— Kota, nosso pai escreveu essas cartas antes de você sair de casa — Kenna explicou, ainda abalada. — Queria garantir seu futuro.
— Bom, ele fracassou, não é? Quando foi que não passamos fome? Com certeza essa casa não teria mudado nada. Eu mesmo tive que garantir meu futuro.
Kota atirou as folhas, que se espalharam pelo chão da sala.
Ele passava a mão no cabelo, bufando.
— Tem alguma bebida nesta casa? Aspen, traga-me alguma coisa para beber — Kota exigiu, sem olhar para ele.
Olhei para Aspen. Milhares de emoções misturavam-se em seu rosto: irritação, pena, orgulho, aceitação. Ele foi em direção à cozinha.
— Pare! — ordenei a Aspen, que se deteve.
Kota me olhou, frustrado.
— É o que ele faz, America!
— Não, não é — rebati. — Talvez você tenha esquecido, mas Aspen é um Dois agora. O certo seria você trazer uma bebida para ele. Não apenas por seu status, mas por tudo o que ele tem feito por nós.
Um sorriso maldoso surgiu no rosto de Kota.
— Humm. Maxon sabe disso? Sabe que isso continua? — ele perguntou, gesticulando com o dedo preguiçosamente em nossa direção.
Meu coração parou de bater.
— O que vocês acham que ele faria? Teve aquele açoite, e muitas pessoas disseram que aquela menina merecia mais pelo que tinha feito — Kota, com as mãos na cintura, nos encarava com ar de superioridade.
Eu não conseguia falar; Aspen tampouco. Não sabia se o silêncio nos ajudava ou condenava. Por fim, minha mãe não se aguentou.
— Isso é verdade?
Eu precisava pensar. Precisava encontrar o jeito certo de explicar. Ou um jeito de negar, porque não era verdade… não mais.
— Aspen, vá ver como Lucy está — eu disse.
Ele seguiu rumo ao quarto até Kota protestar.
— Não! Ele fica!
Perdi a paciência.
— Eu digo que ele vai! Agora sente!
O tom da minha voz impressionou a todos de uma forma que eu nunca tinha visto antes. Minha mãe desabou sobre a cadeira imediatamente, chocada. Aspen sumiu pelo corredor, e Kota, devagar e a contragosto, também sentou.
Tentei me concentrar.
— Sim, antes da Seleção, eu namorava Aspen. Planejávamos contar a todos assim que juntássemos dinheiro suficiente para casar. Antes de eu partir, terminamos o namoro. E então conheci Maxon. Maxon é muito importante para mim, e embora Aspen muitas vezes esteja ao meu lado, nada acontece lá.
Não mais, acrescentei mentalmente.
Então me virei para Kota.
— Se você pensou, mesmo que por um segundo, que pode distorcer meu passado e tentar me chantagear, pensou errado. Você uma vez me perguntou se falei de você para Maxon. Falei, sim. Ele sabe exatamente o babaca ingrato e sem caráter que você é.
Kota apertou os lábios; estava prestes a explodir. Continuei rápido.
— E saiba que ele me adora — eu disse, enchendo a boca para falar. — Se você acha que ele acreditaria mais na sua palavra do que na minha, ficaria surpreso ao ver como minha sugestão de descer a vara na sua mão seria bem aceita, se eu quisesse. Quer arriscar?
Ele cerrou os punhos, em claro conflito interno. Se eu estivesse certa e suas mãos fossem feridas, seria o fim de sua carreira.
— Ótimo — falei. — Se eu ouvir mais uma palavra desrespeitosa sobre nosso pai, faço valer o que disse. Você teve muita sorte de ter um pai que o amava tanto. Ele deixou a casa para você. Podia ter desistido da ideia depois que você saiu, mas não. Ele ainda tinha esperança em você, o que é inconcebível para mim.
Saí da sala furiosa. Entrei em meu quarto e bati a porta. Tinha esquecido que Gerad, May, Lucy e Aspen estariam à minha espera.
— Você namorava Aspen? — May perguntou.
Perdi o fôlego.
— Você falou um pouco alto — Aspen comentou.
Olhei para Lucy. Seus olhos estavam cheios de lágrimas. Não queria obrigá-la a manter outro segredo. Era óbvio que aquilo a fazia sofrer. Ela era tão honesta e leal; como poderia pedir que escolhesse entre mim e a família a que jurou servir?
— Contarei a Maxon quando voltarmos — eu disse para Aspen. — Pensei que assim protegeria você, que protegeria a mim mesma. Mas tudo o que fiz foi mentir o tempo todo. E se Kota sabe, talvez outras pessoas saibam também. Quero que ele saiba pela minha boca.

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