— ENTÃO, RESUMINDO A HISTÓRIA, mais guardas?
— Sim, pai. Muito mais. — Eu ria ao telefone apesar de a situação estar longe de ser engraçada. Meu pai tinha um jeito de tornar leves mesmo os assuntos mais difíceis.
— Continuaremos aqui. Por enquanto, pelo menos — confirmei. — E apesar de eles estarem começando pelos Dois, não deixe ninguém se descuidar. Avise aos Turner e aos Canvass para se protegerem.
— Ora, gatinha. Todo mundo sabe se cuidar. E depois do que você disse no Jornal Oficial, acho que as pessoas serão mais corajosas do que você pensa.
— Tomara.
Baixei os olhos para os pés e senti uma sensação engraçada. Naquele momento, eu usava um sapato de salto decorado com joias. Cinco meses antes, usava sapatilhas surradas.
— Você me deixou orgulhoso, America. Às vezes fico surpreso com as coisas que você diz, mas não sei por quê. Você sempre foi mais forte do que se dava conta.
Sua voz tinha um tom tão verdadeiro que fiquei emocionada. Nenhuma opinião me importava mais do que a dele.
— Obrigada, pai.
— Estou falando sério. Nem toda princesa diria algo assim.
Revirei os olhos quando ouvi aquele comentário.
— Pai, eu não sou uma princesa.
— É só uma questão de tempo — ele rebateu, em tom brincalhão. — Por falar nisso, como vai Maxon?
— Bem — respondi, brincando com as dobras do vestido. Fez-se um silêncio. — Eu gosto mesmo dele, pai.
— É?
— É.
— Por quê, exatamente?
Pensei por uns instantes.
— Não sei direito. Acho que, em parte, porque ele me faz sentir eu mesma.
— Você já sentiu que não era você mesma? — ele brincou.
— Não, não é isso… Eu sempre fui muito consciente do meu número. Mesmo depois de vir para o palácio, continuei obcecada com isso por um tempo. Eu era Cinco ou Três? Queria ser Um? Mas agora não penso mais nisso. E acho que é por causa dele. Mas Maxon também faz muita besteira, não tenha dúvida — meu pai achou graça. — É só que, quando estamos juntos, sinto que sou America. Não uma casta ou parte de um plano. Também não o vejo como alguém distante. Ele é apenas ele, e eu sou apenas eu.
Meu pai ficou calado por um momento.
— Isso parece muito bom, gatinha.
Era meio estranho conversar com meu pai sobre garotos, mas ele era a única pessoa em casa que via Maxon mais como pessoa do que como celebridade. Ninguém me entenderia como ele.
— É. Mas não é perfeito — acrescentei, enquanto Silvia aparecia na porta. — Sinto que sempre há alguma coisa dando errado.
Silvia lançou um olhar afiado para mim e moveu os lábios, dizendo “café da manhã”. Concordei com a cabeça.
— Bem, isso não é tão ruim. Os erros indicam que é verdadeiro.
— Vou me lembrar disso. Pai, preciso desligar agora. Estou atrasada.
— Tudo bem. Cuide-se, gatinha. E escreva logo para sua irmã.
— Vou escrever. Te amo, pai.
— Te amo.
Depois do café da manhã, Maxon e eu continuamos na sala de jantar enquanto as garotas se retiravam. A rainha passou e piscou para mim; minhas bochechas coraram na hora. O rei veio logo atrás, e seu olhar bastou para fazer desaparecer qualquer vestígio de cor em meu rosto.
Quando finalmente ficamos a sós, Maxon se aproximou e me deu a mão, passando seus dedos entre os meus.
— Ia perguntar o que você quer fazer hoje, mas nossas opções estão bastante limitadas. Nada de tiro ao alvo, nada de caça, nada de montaria, nada lá fora.
— Nem se levássemos um monte de soldados? — perguntei, com um suspiro de frustração.
Maxon abriu um sorriso triste.
— Sinto muito, America. Mas o que acha de um filme? Podemos assistir algo com um cenário espetacular.
— Não é a mesma coisa — respondi, puxando-lhe pelo braço. — Mas venha. Vamos aproveitar ao máximo.
— Esse é o espírito — ele disse.
Alguma coisa naquela situação me fez sentir bem melhor, como se estivéssemos naquilo juntos. Fazia tempo que as coisas não eram assim.
Seguíamos pelo corredor em direção à escadaria para a sala de projeção quando ouvi o tilintar na janela. Virei a cabeça na direção do som e exclamei, maravilhada:
— Está chovendo!
Soltei o braço de Maxon e pressionei a mão contra o vidro. Em todos aqueles meses no palácio, nunca tinha chovido, e eu até me perguntava se de fato isso aconteceria algum dia. Ao ver que chovia, me dei conta do quanto sentia falta daquilo. Sentia falta do ir e vir das estações, da maneira como as coisas mudavam.
— É tão lindo — sussurrei.
Maxon permaneceu atrás de mim, com o braço em volta da minha cintura.
— Só você mesmo para achar beleza numa coisa que acaba com o dia das pessoas.
— Queria poder sentir essa chuva.
Ele soltou um suspiro.
— Sei que você quer, mas não…
Olhei para Maxon para saber por que ele tinha interrompido a frase no meio. O príncipe olhou para os lados, e eu fiz o mesmo. Com exceção de alguns guardas, estávamos sozinhos.
— Venha — ele disse, pegando minha mão. — Tomara que não nos vejam.
Abri um sorriso, pronta para qualquer aventura que ele tivesse em mente. Adorava quando Maxon ficava assim. Corremos pelas escadas até o quarto andar. Por um minuto, fiquei nervosa com a possibilidade de ele me mostrar algo parecido com a biblioteca secreta. Aquela experiência não tinha acabado muito bem para mim.
Caminhamos até a metade do corredor. Só encontramos um soldado fazendo a ronda e mais ninguém. Maxon me empurrou para dentro de uma sala enorme e me levou até uma lareira ampla e desativada. Então enfiou o braço pela boca da lareira e encontrou uma trava secreta. Ao acioná-la, parte da parede se abriu, revelando mais uma escadaria secreta.
— Segure a minha mão — ele disse, estendendo o braço para mim.
Foi o que fiz. Seguimos por um corredor mal iluminado até encontrarmos uma porta. Maxon destravou a tranca simples e abriu a porta. Atrás dela, a chuva caía com força.
— Aqui é o telhado? — perguntei em meio ao barulho da água.
Ele assentiu. Havia muros ao redor da passagem, deixando um espaço aberto mais ou menos do tamanho do meu quarto. Não me importava de ver apenas paredes e o céu. Pelo menos estava do lado de fora. Completamente deslumbrada, dei um passo à frente para tocar a água. As gotas, gordas e mornas, se acumulavam no meu braço e corriam pelo meu vestido. Ouvi a gargalhada de Maxon antes de ele me empurrar para debaixo da chuva.
Em segundos, eu já estava ensopada e arfante. Virei para trás e agarrei o braço dele, que apenas ria, fingindo tentar escapar. As mechas de seu cabelo cobriram-lhe os olhos, e nós dois ficamos completamente encharcados. Ainda sorrindo, ele me levou até a beirada do muro.
— Olhe — me disse ao pé do ouvido.
Olhei e, pela primeira vez, me dei conta da vista daquele lugar. Em êxtase, contemplei a cidade estendida diante de mim. A teia de ruas, a geometria dos prédios, a matiz de cores: mesmo atenuada pelo cinza da chuva, a paisagem era estonteante.
Naquele momento, me senti ligada a tudo aquilo, como se a cidade me pertencesse de algum modo.
— Não quero que os rebeldes tomem este lugar, America — Maxon disse sob a chuva, como se tivesse lido meus pensamentos. — Não sei quantas mortes já ocorreram, mas aposto que meu pai esconde as informações de mim. Ele tem medo que eu interrompa a Seleção.
— Há algum jeito de descobrir a verdade?
Maxon refletiu por um tempo.
— Acho que se conseguisse entrar em contato com August, ele saberia dizer. Poderia enviar uma carta, mas tenho receio de escrever demais. E não sei se conseguiria trazê-lo ao palácio.
Pensei na possibilidade.
— E se nós fôssemos até ele?
Maxon riu.
— E como você acha que conseguiríamos isso?
Dei de ombros, achando graça.
— Vou pensar a respeito — respondi.
Maxon me encarou em silêncio por um momento.
— É bom poder falar em voz alta. Preciso sempre tomar cuidado com o que digo. Tenho a sensação de que ninguém pode me escutar aqui em cima. Só você.
— Então vá em frente e diga qualquer coisa.
Ele abriu um sorriso malicioso.
— Só se você disser.
— Muito bem — respondi, feliz por entrar no jogo.
— Bom, o que você quer saber?
Tirei o cabelo molhado da testa e comecei com uma pergunta importante, mas impessoal.
— Você realmente não sabia dos diários?
— Não. Mas já estou a par. Meu pai me obrigou a ler todos. Se August tivesse vindo duas semanas atrás, acharia que ele estava mentindo sobre tudo. Agora não. É chocante, America. Aquilo que você leu é só o começo. Quero contar tudo a você, mas ainda não posso.
— Tudo bem.
Então Maxon olhou fixamente para mim, com ar determinado.
— Como as garotas descobriram que você tirou minha camisa?
Baixei a cabeça, um pouco hesitante.
— Estávamos vendo os guardas fazendo exercícios. Eu disse que você ficava tão bem quanto qualquer um deles sem camisa. Escapou.
Maxon gargalhou tanto que até se inclinou para trás.
— Não dá para ficar bravo com isso.
Sorri.
— Você já trouxe outra pessoa aqui? — perguntei na minha vez.
— Olivia. Uma vez e foi só — revelou, parecendo triste.
De fato, parando para pensar, eu me lembrava daquilo. Ela contara a todas as garotas que ele a havia beijado ali.
— Eu beijei Kriss — Maxon confessou, sem me encarar. — Há pouco tempo. Pela primeira vez. Acho que é justo você saber.
Ele baixou os olhos, e assenti com a cabeça. Se eu não tivesse presenciado e descobrisse naquele momento, teria ficado arrasada. Mas, ainda assim, doeu ouvir da boca dele.
— Odeio ter que me encontrar com você desse jeito — falei, inquieta, com o vestido já pesado com a água.
— Eu sei. Mas as coisas são assim.
— Nem por isso são justas.
Ele riu.
— Quando alguma coisa em nossas vidas foi justa?
Ele tinha razão.
— Eu não devia contar… e, se você deixar escapar que sabe, ele vai se irritar ainda mais, com certeza, mas… seu pai tem me falado algumas coisas. E também cortou o pagamento da minha família. As outras já não recebiam mais, então acho que pegava mal de qualquer jeito.
— Sinto muito — Maxon se desculpou. Ele voltou o olhar para a cidade. A maneira como sua camisa grudava em seu corpo me distraiu por um instante. — Acho que não dá para reverter isso, America — completou.
— Não precisa. Só queria que você soubesse o que está acontecendo. Posso lidar com isso.
— Você é durona demais para ele. Ele não entende você.
Maxon buscou minha mão, e eu a ofereci de bom grado. Tentei pensar em mais alguma coisa que quisesse saber, mas quase tudo tinha a ver com as outras garotas. Não queria incomodá-lo com isso. Àquela altura, eu já conseguia adivinhar quase com certeza a verdade e, se estivesse errada, não queria estragar aquele momento.
Maxon baixou o olhar para o meu pulso.
— Você… — Ele me olhou nos olhos, aparentemente mudando a pergunta. — Você quer dançar?
Fiz que sim com a cabeça.
— Mas sou péssima.
— Nós vamos devagar.
Maxon me puxou para perto dele e pôs a mão em volta da minha cintura. Levei uma mão ao seu peito e segurei meu vestido encharcado com a outra. Balançamos, quase sem nos mexer. Descansei o rosto em seu peito, e ele apoiou o queixo sobre a minha cabeça. E, assim, giramos ao som da chuva.
Quando ele me apertou um pouco mais forte, senti que todos os erros haviam sido apagados e restara apenas a essência da nossa relação. Éramos amigos que tinham percebido que não queriam fica longe um do outro. Éramos diferentes em diversos sentidos, mas, ao mesmo tempo, muito parecidos. Não dava para dizer que nossa relação era obra do destino, mas ela parecia mais forte do que qualquer coisa que eu já tinha vivido antes.
Ergui a cabeça na direção do rosto dele. Pus a mão em sua bochecha e o trouxe para perto para beijá-lo. Seus lábios, molhados, encontraram os meus, queimando. Senti suas mãos se agarrarem às minhas costas, como se ele fosse desmoronar se nos afastássemos. Apesar do barulho da chuva, o mundo todo parecia em silêncio. Eu sentia que não havia Maxon suficiente, não havia pele, espaço, tempo suficiente.
Depois de tantos meses tentando conciliar o que eu queria com o que esperava, percebi – naquele momento que Maxon criara só para nós – que nunca faria sentido. Tudo que eu podia fazer era seguir em frente e ter a esperança de que, sempre que desviássemos do caminho, ainda conseguiríamos voltar um para o outro. Tínhamos que voltar. Porque… porque…
Apesar de todo o tempo que demorou para aquele momento chegar, quando ele finalmente aconteceu, foi rápido.
Eu amava Maxon. Pela primeira vez, meu sentimento era sólido. Não tentava me distanciar, apegada a Aspen e a todas as dúvidas que vinham junto. Não estava me envolvendo com Maxon e, ao mesmo tempo, mantendo um pé na porta para o caso de ser rejeitada. Simplesmente deixei as coisas acontecerem.
Eu o amava.
Era incapaz de apontar precisamente o motivo de tanta certeza, mas soube na hora, com a mesma certeza com que sabia meu nome ou a cor do céu ou qualquer coisa escrita em um livro.
Será que ele também sentia isso?
Maxon interrompeu o beijo e me olhou nos olhos.
— Você fica linda quando está desarrumada.
Soltei uma risada nervosa.
— Obrigada. Por isso, pela chuva e por não desistir.
Ele correu os dedos pela minha bochecha, meu nariz e meu queixo.
— Você vale a pena. Acho que não tem noção disso. Para mim, você vale a pena.
Meu coração parecia prestes a explodir. Só queria que tudo acabasse naquele dia. Meu mundo girava em torno de um novo eixo, e eu sentia que o único meio de não ficar zonza era acreditar que aquilo realmente poderia acontecer. Eu tinha certeza agora de que ia acontecer. Tinha que acontecer. Logo.
Maxon me deu um beijo na ponta do nariz.
— Vamos nos secar e assistir a um filme.
— Parece bom.
Cuidadosamente, resolvi manter meu amor por Maxon guardado só para mim, pelo menos por um tempo, porque ainda tinha um pouco de medo daquele sentimento. Cedo ou tarde, precisaria demonstrar o que eu sentia – mas depois. Por enquanto, seria meu segredo.
Tentei torcer o vestido perto da porta, mas não adiantou. Eu deixaria um pequeno rastro de água até o quarto.
— Voto por uma comédia — anunciei enquanto deixávamos o telhado e descíamos a escada, Maxon à frente.
— Voto por ação.
— Bem, você acabou de dizer que valho a pena, então acho que vou ganhar essa.
Maxon riu.
— Bem pensado.
Ele continuava rindo quando abriu a porta que dava na sala da lareira, mas ficou paralisado em seguida.
Espiei por cima de seu ombro e vi o rei Clarkson ali parado, irritado como sempre.
— Suponho que a ideia tenha sido sua — o rei disse a Maxon.
— Sim.
— Você tem noção do perigo a que se expôs? — ele indagou.
— Pai, não há rebeldes à espreita no telhado — Maxon rebateu, tentando soar razoável, mas parecendo um pouco ridículo com a roupa encharcada.
— Um tiro bem mirado é o bastante, Maxon.
O rei deixou suas palavras no ar para depois emendar:
— Você sabe que ficamos com poucos guardas depois que mandamos soldados para as casas das garotas da Elite. E dezenas dos enviados desapareceram. Estamos vulneráveis. — Então, dirigiu seu olhar a mim. — E por que essa menina está sempre metida em tudo o que acontece ultimamente?
Permanecemos em silêncio. Sabíamos que não havia o que dizer.
— Apronte-se — ordenou o rei. — Você tem trabalho a fazer.
— Mas eu…
Com apenas um olhar, o pai deu a entender que todos os planos do filho para o dia estavam cancelados.
— Certo — o príncipe assentiu, cedendo.
O rei Clarkson pegou Maxon pelo braço e o levou embora. Fiquei para trás, sozinha. Maxon virou a cabeça e me pediu desculpas em silêncio. Retribuí com um breve sorriso.
Eu não tinha medo do rei. Nem dos rebeldes. Sabia o quanto Maxon significava para mim, e estava certa de que tudo acabaria bem, de algum jeito.
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