terça-feira, 22 de julho de 2014

1° Capitulo - Cidade de Papel

O dia mais longo da minha vida começou atrasado. Perdi a hora, demorei muito no banho e acabei tendo que tomar meu café da manhã no banco do carona da minivan da minha mãe às 7h17 daquela manhã de quarta-feira.
Normalmente eu ia para o colégio de carona com meu melhor amigo, Ben Starling, mas naquele dia Ben tinha saído de casa na hora de sempre, o que não era conveniente para mim. Para nós, “na hora de sempre” significava chegar à escola trinta minutos antes do início da aula, porque a meia hora que antecedia o primeiro sinal era o auge de nossa agenda social: ficar batendo papo em frente à porta lateral que levava à sala de ensaio da banda.
A maioria dos meus amigos participava da banda, e eu passava a maior parte do tempo livre no colégio em um raio de seis metros da sala da banda. Mas eu não fazia parte dela porque sofro de um tipo de surdez musical geralmente associado à surdez mesmo.
Estava vinte minutos atrasado, o que tecnicamente significava que ainda chegaria dez minutos antes da aula. Enquanto dirigia, minha mãe me perguntou sobre minhas aulas, as provas finais e o baile de formatura.
— Não acredito em baile de formatura — lembrei a ela enquanto o carro virava na esquina.
Com maestria, inclinei minha tigela de cereal para compensar a força G. Já tinha feito aquilo antes.
— Bem, não faz mal algum ir com uma amiga. Tenho certeza de que você poderia convidar Cassie Hiney.
E eu podia ter convidado Cassie Hiney, que, aliás, era perfeitamente simpática, agradável e bonita, embora tivesse um azar e tanto no sobrenome, gíria para bunda.
— Não é só porque eu não gosto de bailes de formatura. Também não gosto de gente que gosta de bailes de formatura — expliquei, embora não fosse verdade: Ben estava totalmente alucinado com a ideia de ir à festa.
Mamãe entrou na rua da escola, e eu segurei a tigela quase vazia com as duas mãos enquanto passávamos por um quebra-molas. Dei uma olhada no estacionamento dos alunos do último ano. O Honda prateado de Margo Roth Spiegelman estava na vaga de sempre.
Minha mãe encostou o carro na rua sem saída em frente à sala da banda e me beijou na bochecha. Vi Ben e meus outros amigos de pé formando um semicírculo. Caminhei até eles, e a semirrodinha se expandiu naturalmente para me incluir.
Estavam comentando sobre minha ex-namorada, Suzie Chung, que tocava violoncelo e aparentemente estava dando o que falar desde que começara a sair com Taddy Mac, um jogador de beisebol. Eu não sabia se aquele era o nome verdadeiro dele. Mas a questão era que Suzie tinha aceitado ir ao baile de formatura com Taddy Mac. Mais uma baixa.
— Cara — disse Ben, que estava de frente para mim. Ele balançou a cabeça para cima e para baixo e se virou. Eu deixei o grupo e o segui pela porta.
Ben, um sujeito pequeno e de pele morena que havia chegado à puberdade sem passar por problemas, era meu melhor amigo desde o quinto ano, quando enfim nos demos conta de que provavelmente nenhum de nós seria capaz de atrair outra pessoa para ser seu melhor amigo. Além do mais, ele se esforçava bastante, e eu gostava disso — na maioria das vezes.
— E aí? — perguntei.
Estávamos seguros lá dentro, a conversa das outras pessoas abafando o som da nossa.
— Radar vai ao baile de formatura — disse ele, mal-humorado.
Radar era nosso outro melhor amigo. A gente o chamava assim porque ele se parecia com o cara baixinho e de óculos chamado Radar de um antigo programa de tevê intitulado M*A*S*H, só que: 1) O Radar da tevê não era negro e 2) Algum momento depois de ganhar o apelido nosso Radar cresceu uns quinze centímetros e passou a usar lentes de contato, então acho que 3) Ele não se parecia mais nem um pouco com o cara do M*A*S*H, mas 4) Não fazia sentido reapelidar o cara faltando três semanas e meia para a formatura do ensino médio.
— Com aquela garota, a Angela? — perguntei.
Radar nunca contava nada sobre sua vida amorosa, mas isso não nos impedia de especular com frequência. Ben assentiu.
— Sabe aquele meu plano infalível de convidar uma caloura para o baile porque elas são as únicas que não sabem da história do Ben Mija-sangue? — indagou.
Concordei com a cabeça.
— Então — disse ele —, esta manhã, uma gatinha do nono ano veio me perguntar se eu era o Ben Mija-sangue, e eu comecei a explicar que tinha sido uma infecção renal, e ela desatou a rir e saiu correndo. Ou seja, o plano já era.
No décimo ano, Ben foi hospitalizado com uma infecção renal, só que Becca Arrington, a melhor amiga de Margo, espalhou o boato de que o verdadeiro motivo de haver sangue na urina dele era que ele se masturbava muito. Apesar de isso ser medicamente implausível, a história assombrava Ben desde então.
— Que merda — falei.
Ben começou a delinear os planos a fim de encontrar um par para a festa, mas eu não prestei muita atenção porque, através da multidão que se aglomerava no corredor, vi Margo Roth Spiegelman. Ela estava junto ao seu armário, ao lado do namorado, Jase. Usava saia branca na altura dos joelhos e camiseta azul estampada. Dava para ver seu colo acima do decote. Estava rindo de forma histérica — os ombros curvados para a frente, os olhos grandes enrugados nos cantos, a boca escancarada. Mas não parecia ser de nada que Jase tivesse dito porque ela estava olhando para o outro lado, para uma fileira de armários na parede oposta do corredor.
Segui a trajetória dos olhos dela e vi Becca Arrington agarrada a um jogador de beisebol como se ela fosse um enfeite e ele, uma árvore de Natal. Sorri para Margo, embora soubesse que ela não podia me ver.
— Cara, você devia tentar. Esqueça o Jase. Meu Deus, isso é o que eu chamo de excesso de gostosura.
Enquanto caminhávamos, eu olhava de relance para ela de vez em quando através da multidão: uma série de instantâneos fotográficos intitulada A perfeição fica parada enquanto os mortais passam por ela. Ao me aproximar, imaginei que talvez ela não estivesse rindo, afinal de contas. Talvez lhe tivessem feito uma surpresa ou dado um presente ou algo assim. Parecia não conseguir fechar a boca.
— É — respondi para Ben, ainda sem prestar atenção, ainda tentando olhar para ela o máximo possível sem dar bandeira. Não era nem o fato de ela ser tão bonita. É que ela era o máximo, literalmente. E então já estávamos longe demais dela, muita gente entre nós dois, e eu nem consegui me aproximar o suficiente para ouvir sua voz ou entender qual tinha sido a surpresa hilariante.
Ben balançou a cabeça; ele já me vira olhando para ela milhares de vezes e estava acostumado.
— Sendo sincero, ela é gostosa, mas também não é tudo isso. Sabe quem é gostosa de verdade?
— Quem? — perguntei.
— Lacey — disse ele, referindo-se a outra melhor amiga de Margo. — E a sua mãe. Cara, eu vi sua mãe beijar sua bochecha hoje de manhã, e foi mal, mas juro por Deus que pensei, cara, eu queria ser o Q. E também queria ter um pênis na bochecha.
Dei uma cotovelada nas costelas dele, mas ainda pensava em Margo, porque ela era a única deusa que eu tinha como vizinha. Margo Roth Spiegelman, cujo nome de seis sílabas era frequentemente pronunciado inteiro, em uma espécie de reverência silenciosa. Margo Roth Spiegelman, cujas histórias de aventuras épicas se espalhavam pela escola como uma tempestade de verão: um velho que morava num casebre em Hot Coffee, Mississippi, a ensinara a tocar violão. Margo Roth Spiegelman, que passou três dias viajando com o circo — eles achavam que a menina tinha potencial no trapézio. Margo Roth Spiegelman, que bebeu uma caneca de chá de ervas no camarim do Mallionaires depois de um show em St. Louis, enquanto eles bebiam uísque. Margo Roth Spiegelman, que conseguiu entrar no tal show dizendo ao segurança na porta que era namorada do baixista e que eles não a estavam reconhecendo, e, fala sério, cara, meu nome é Margo Roth Spiegelman, e se você for lá dentro e pedir para o baixista vir aqui me ver, ele vai dizer que ou eu sou a namorada dele ou que ele queria que eu fosse, e quando o segurança fez isso, o baixista veio e disse “é, ela é minha namorada, pode deixar entrar”, e depois, quando o cara quis ficar com ela, ela deu um fora no baixista do Mallionaires. As histórias, quando passadas adiante, invariavelmente acabavam com um “Dá para acreditar?”. Normalmente não dava, mas elas sempre se provavam verdadeiras.
E então chegamos aos nossos armários. Radar estava recostado no armário de Ben, digitando em um tablet.
— Quer dizer que você vai ao baile de formatura — falei para ele.
Ele levantou o olhar para mim e então voltou a encarar o aparelho.
— Estou desvandalizando um artigo no Omnictionary sobre um ex- primeiro-ministro francês. Ontem à noite alguém apagou o verbete inteiro e deixou só a frase “Jacques Chirac é viado”, o que foge não só à verdade como também à gramática.
Radar é megaeditor de uma enciclopédia on-line aberta chamada Omnictionary. A vida inteira dele é dedicada à manutenção e ao bem-estar do Omnictionary. Por isso, e por vários outros motivos, o fato de ele ter alguém com quem ir à festa era algo tão surpreendente.
— Quer dizer que você vai ao baile de formatura — repeti.
— Foi mal — desculpou-se ele, sem erguer o olhar. Todo mundo sabia que eu era contra o baile de formatura. Nada que tivesse a ver com essa festa me interessava — nem dançar música lenta, nem dançar música agitada, nem os vestidos e, definitivamente, nem os smokings alugados. Alugar um smoking me parecia uma ótima maneira de pegar uma doença medonha do locatário anterior, e eu não tinha a menor pretensão de ser o único virgem do mundo com chatos.
— Cara — disse Ben a Radar —, as calouras já sabem da história do Ben Mija-sangue. — Radar finalmente desviou os olhos do aparelho e assentiu em solidariedade. — Então — continuou Ben —, as duas estratégias que me restam são: contratar pela internet um par para o baile de formatura ou pegar um avião para um fim de mundo, tipo o Missouri, e sequestrar uma gatinha caipira.
Eu já tinha tentado avisar ao Ben que “gatinha” soava machista e caído, em vez de retrô e descolado, mas ele se recusava a abandonar a gíria. Chamava até a própria mãe de gatinha. Ben não tinha jeito.
— Vou perguntar a Angela se ela conhece alguém — disse Radar. — Só que lhe arrumar um par para o baile de formatura vai ser mais difícil do que transformar chumbo em ouro.
— Arrumar um par para você vai ser tão duro que só com a simples hipótese já daria para cortar diamantes — acrescentei.
Radar bateu o punho duas vezes em um dos armários, em um gesto de aprovação, e veio com outra:
— Ben, arrumar um par para você é tão difícil que o governo norte- americano acha que não dá para fazer isso só com diplomacia, e que vai ser preciso usar a força.
Eu estava tentando pensar em algo mais quando nós três vimos, ao mesmo tempo, a massa humana de anabolizantes que atende pelo nome de Chuck Parson caminhando cheio de si em nossa direção. Chuck Parson não participava de nenhum esporte coletivo porque isso o afastaria de seu principal objetivo na vida: ser preso por homicídio algum dia.
— E aí, seus bichinhas — disse ele.
— Chuck — cumprimentei do jeito mais amistoso que pude.
Havia uns dois anos que Chuck não representava um problema maior para nós — alguém do grupinho de alunos descolados tinha decretado que não era para mexer com a gente. Então era meio esquisito ele vir falar conosco.
Talvez porque eu tivesse falado alguma coisa, talvez não, ele deu um soco no armário e firmou as mãos ali, uma de cada lado e eu no meio, e chegou tão perto do meu rosto que eu podia imaginar qual era a marca da pasta de dente dele.
— O que você sabe sobre Margo e Jase?
— Hum — respondi.
Pensei em tudo que sabia sobre eles: Jase era o primeiro e único namorado sério de Margo Roth Spiegelman. Eles haviam começado a sair no fim do ano anterior. Os dois iam para a Universidade da Flórida no ano seguinte. Jase conseguira uma bolsa pelo time de beisebol da universidade. Ele nunca ia à casa dela, a não ser para buscá-la para sair. Ela nunca agia como se gostasse dele tanto assim, mas… ela nunca agia como se gostasse de ninguém tanto assim.
— Nada — respondi, por fim.
— Para de sacanagem — rosnou ele.
— Eu mal conheço a Margo — falei, o que tinha se tornado verdade.
Ele refletiu por um instante, e eu tentei encarar aqueles olhos juntos. Ele assentiu muito ligeiramente, tirou as mãos do armário e se afastou, a caminho de sua primeira aula do dia: como manter e cultivar os músculos peitorais.
O segundo sinal tocou. Um minuto para a aula. Radar e eu estávamos na turma de cálculo; Ben, na de matemática finita. As salas eram geminadas; caminhamos juntos, os três lado a lado, confiando que o mar de alunos iria abrir passagem para nós, e abriu.
— Arrumar um par para você vai ser tão difícil que mil macacos digitando em mil máquinas de escrever durante mil anos não digitariam “Eu vou ao baile de formatura com o Ben” — falei.
Nem o próprio Ben conseguiu deixar de se zoar:
— Minhas chances de arrumar um par são tão baixas que nem a avó do Q me quis. Ela disse que estava esperando o convite do Radar.
— É verdade, Q. Sua avó adora os irmãos de cor.
Radar concordou com um movimento lento de cabeça. Foi muito fácil me esquecer de Chuck e conversar sobre o baile de formatura, ainda que eu não desse a mínima para a festa. E assim foi a vida naquela manhã: nada importava de verdade, nem as coisas boas, nem as ruins. Estávamos entretidos em divertir uns aos outros, e estávamos mandando razoavelmente bem.


Passei as três horas seguintes dentro de salas de aula, tentando não olhar para os relógios acima de diferentes quadros-negros e então voltar a olhá-los e me surpreender por só terem passado uns poucos minutos desde a última espiada. Eu tinha quase quatro anos de experiência olhando para aqueles relógios, mas a lerdeza deles nunca deixava de me impressionar. Se alguém me dissesse que eu só teria mais aquele dia de vida, eu iria diretamente para os corredores sagrados da Winter Park High School, famosa pelo dia que dura mil anos.
No entanto, embora parecesse que a aula de física do terceiro tempo nunca iria acabar, ela acabou, e eu fui com Ben para a cantina. Radar almoçava no quinto tempo, com a maioria de nossos amigos, então normalmente éramos eu e Ben apenas, umas duas cadeiras entre nós e um grupo de alunos do teatro que a gente conhecia. Naquele dia, estávamos comendo minipizzas de pepperoni.
— Gosto de pizza — falei. Ele concordou distraidamente. — O que foi?
— Nada — respondeu ele com a boca cheia de pizza. E então engoliu. — Sei que você acha que é uma idiotice, mas eu quero ir ao baile de formatura.
— Um: sim, acho que é uma idiotice; dois: se você quer ir, vá; três: se não estou enganado, você ainda nem convidou alguém.
— Convidei Cassie Hiney durante a aula de cálculo. Passei um bilhete para ela.
Ergui a sobrancelha, questionando-o. Ben enfiou a mão no bolso e me passou um pedaço de papel dobrado várias vezes. Desdobrei:
Ben, Eu adoraria ir à festa com você, mas já falei para o Frank que iria com ele. Foi mal! C.
Dobrei o bilhete e devolvi a Ben, por cima da mesa. Ainda me lembrava de jogar futebol com bolinhas de papel naquelas mesas.
— Que merda — comentei.
— É, tanto faz. — Naquele instante foi como se os muros de som estivessem se fechando sobre nós, e ficamos em silêncio por um instante e então Ben ergueu o olhar para mim e disse, muito sério: — Eu vou zoar muito na faculdade. Vou entrar no Guinness na categoria “O maior pegador de gatinhas”.
Eu ri. Estava pensando nos pais de Radar, que estavam de fato no Guinness, quando reparei em uma menina negra bonita, com dreads pequenininhos e pontudos, caminhando em nossa direção. Levei um tempo para perceber que se tratava de Angela, a quem-sabe-namorada de Radar.
— Oi — cumprimentou ela.
— E aí? — respondi.
Nós éramos da mesma turma em algumas matérias, então eu a conhecia um pouco, mas a gente não se cumprimentava no corredor, nem nada parecido. Cheguei para o lado, para que ela se sentasse conosco. Ela puxou uma cadeira e ficou na cabeceira.
— Acho que vocês conhecem o Marcus melhor do que qualquer um — disse ela, usando o nome verdadeiro de Radar e inclinando-se em nossa direção, os cotovelos na mesa.
— É um trabalho sujo, mas alguém tem que fazer — respondeu Ben, sorrindo.
— Vocês acham que ele, tipo, tem vergonha de mim?
— O quê? Não. — Ben riu.
— Tecnicamente, você é quem deveria ter vergonha dele — acrescentei.
Ela revirou os olhos, sorrindo. Estava acostumada a receber elogios.
— Mas ele nunca me chamou para sair com vocês, por exemplo.
— Ahhh — falei, finalmente entendendo a questão.
— Isso é porque ele tem vergonha da gente.
Ela riu.
— Vocês me parecem ser bem normais.
— É porque você nunca viu Ben beber Sprite pelo nariz e depois cuspir pela boca — respondi.
— Eu fico igual a um chafariz desvairado de refrigerante — acrescentou ele na maior cara de pau.
— Mas, é sério, vocês não ficariam preocupados? Quer dizer, estamos saindo há cinco semanas e ele nunca nem mesmo me levou à casa dele — Ben e eu trocamos um olhar cúmplice, e eu fiz uma careta para conter uma gargalhada. — O que foi? — perguntou ela.
— Nada — respondi. — Mas, sendo honesto, Angela, se ele estivesse forçando você a sair com a gente e levando você à casa dele o tempo todo…
— Aí sim significaria que ele não gosta muito de você — completou Ben para mim.
— Os pais dele são esquisitos?
Responder àquela pergunta com honestidade era uma saia justa:
— Hum, não. Eles são legais. Só um pouco superprotetores, acho.
— É, superprotetores — concordou Ben meio depressa demais. Ela sorriu e se levantou, dizendo que precisava encontrar alguém antes do fim do almoço. Ben a esperou se afastar para dizer:
— Essa garota é o máximo.
— Eu sei. Será que a gente consegue trocar o Radar por ela?
— Mas ela provavelmente não manda bem em computadores. A gente precisa de alguém que seja bom com computadores. Além do mais, aposto que é fraca em Resurrection. — Esse era nosso video game preferido. — Aliás — acrescentou Ben —, foi uma boa saída dizer que os pais do Radar eram superprotetores.
— Pois é, não sou eu quem tem que dizer a ela.
— Quanto tempo até ela conhecer a Residência e Museu Família Radar? — Ben sorriu.


Nosso horário de almoço estava quase no fim, então Ben e eu nos levantamos e levamos nossas bandejas até a esteira de coleta. A mesma em que Chuck Parson me atirara no primeiro ano, quando fui parar no assustador inferno das lava-louças da Winter Park. Caminhamos até o armário de Radar e ficamos ali até ele aparecer correndo logo depois do primeiro sinal.
— No meio da aula sobre ciências políticas concluí que literalmente era melhor chupar bola de jumento do que assistir àquela aula até o final do semestre — disse ele.
— Dá para aprender muito sobre o governo a partir das bolas de um jumento — falei. — Ah, e por falar em motivos pelos quais você gostaria de almoçar durante o quarto tempo, acabamos de almoçar com Angela.
Ben lançou um sorrisinho malicioso para Radar e disse:
— É, ela quer saber por que você nunca a levou à sua casa.
Radar expirou por um longo tempo enquanto girava o cadeado do armário. Ele soltou tanto ar que achei que fosse desmaiar.
— Bosta — disse ele, afinal.
— Você está com vergonha? — perguntei, sorrindo.
— Cale a boca — respondeu ele, dando-me uma cotovelada na barriga.
— Você tem uma casa encantadora — comentei.
— Sério, cara — acrescentou Ben. — Ela é mesmo uma garota muito legal. Não entendo por que você não pode apresentá-la aos seus pais e mostrar a Casa Radar.
Radar jogou os livros no armário e bateu a porta. O burburinho à volta diminuiu assim que ele olhou para cima e berrou:
— EU NÃO TENHO CULPA POR MEUS PAIS TEREM A MAIOR COLEÇÃO MUNDIAL DE PAPAIS NOÉIS NEGROS!
Eu já tinha ouvido Radar dizer “a maior coleção mundial de Papais Noéis negros” mais de mil vezes, e ainda assim nunca perdia a graça. Mas ele não estava brincando. Eu me lembro da primeira vez que o visitei. Devia ter uns treze anos. Era março ou abril, ou seja, vários meses depois do Natal, mas ainda havia Papais Noéis negros no parapeito da casa. Papais Noéis negros de papel pendendo do corrimão da escada. Velas de Papais Noéis negros decorando a mesa de jantar. Acima da lareira, um óleo sobre tela de um Papai Noel negro, e na prateleira abaixo várias estátuas de Papais Noéis negros. Eles tinham uma caixa de balas de Papai Noel negro comprada na Namíbia. A luminária plástica de Papai Noel negro que enfeitava a caixinha do correio entre o dia de Ação de Graças e o Ano-novo passava o restante do ano vigiando orgulhosamente um canto do banheiro de visitas, que era coberto por um papel de parede pintado em casa com tinta e uma esponja em formato de Papai Noel. Eles estavam em todos os quartos, exceto no de Radar, e a casa era o próprio império papai-noelístico: de gesso, plástico, mármore, argila, madeira, resina e tecido. Ao todo, os pais dele tinham mais de mil e duzentos Papais Noéis negros dos mais variados tipos. Ao lado da porta da frente, uma placa anunciava que a casa de Radar era oficialmente um ponto de referência na tradição dos Papais Noéis, de acordo com a Sociedade do Natal.
— Você tem que contar para ela, cara — falei. — É só dizer: “Angela, eu gosto mesmo de você, mas tem uma coisa que você precisa saber: quando a gente for lá em casa dar uns amassos, vamos ser observados por dois mil e quatrocentos olhos de mil e duzentos Papais Noéis negros.”
Radar correu os dedos pelo cabelo raspado curto e balançou a cabeça.
— É, acho que não vai ser bem assim que vou dizer, mas vou dar meu jeito.
Segui para a aula de ciências políticas e Ben para a eletiva de design de video games. Observei relógios por mais dois tempos, e finalmente o alívio irradiou de meu peito quando as aulas acabaram — o final de cada dia como uma espécie de ensaio para o final do ensino médio, a menos de um mês.


Fui para casa. Lanchei dois sanduíches de manteiga de amendoim com geleia. Assisti ao pôquer na tevê. Meus pais chegaram às seis, se abraçaram e me abraçaram. Jantamos uma caçarola de macarrão. Eles me perguntaram sobre a escola. Perguntaram sobre o baile de formatura. Ficaram maravilhados com o excelente trabalho que desempenharam em minha criação. Contaram sobre o dia deles, lidando com gente que não tinha sido criada tão bem assim. Foram assistir à tevê. Eu segui para meu quarto e fui ler meu e-mail. Escrevi um pouco sobre O grande Gatsby para a aula de inglês. Li alguns artigos de O Federalista a fim de me preparar para a prova final de ciências políticas.
Estava no chat com Ben, depois Radar ficou on-line. Enquanto conversávamos, ele usou a expressão “a maior coleção mundial de Papais Noéis negros” quatro vezes, e eu ri em todas elas. Eu disse que estava feliz por ele, por ter uma namorada. Ele disse que o verão seria ótimo. Concordei. Era cinco de maio, mas não fazia diferença. Meus dias tinham uma agradável uniformidade. E eu sempre gostei disso: eu gostava da rotina. Gostava de sentir tédio. Não queria gostar, mas gostava. E assim, o cinco de maio poderia ter sido um outro dia qualquer — até pouco antes de meia-noite, quando Margo Roth Spiegelman abriu a janela sem tela do meu quarto pela primeira vez desde que me mandara fechá-la nove anos antes.

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