terça-feira, 22 de julho de 2014

4° Capitulo - Cidades de Papel

Estávamos dirigindo pela rodovia I-4, felizmente vazia, e eu seguia as orientações de Margo. O relógio no painel indicava 1h07.
— Bonito, não é? — disse ela. Estava olhando pela janela, o rosto distante do meu, então eu mal podia vê-la. — Adoro dirigir depressa sob a luz dos postes.
— Luz — declamei —, o lembrete visível da Luz Invisível.
— Que bonito isso — disse ela.
— T.S. Eliot. Você leu também. Na aula de inglês, ano passado. Na verdade, eu não conhecia o poema inteiro, mas os poucos versos que li haviam ficado em minha cabeça.
— Ah, é uma citação — disse ela, um tanto decepcionada.
Vi a mão dela no espaço entre os bancos. Eu poderia ter colocado minha mão ali, e então nossas mãos estariam no mesmo lugar ao mesmo tempo. Mas não coloquei.
— Recite de novo — pediu ela.
— Luz, o lembrete visível da Luz Invisível.
— É. Caraca, a frase é boa. Deve ajudá-lo com sua amiguinha.
— Minha ex-amiguinha — corrigi.
— Suzie largou você? — perguntou Margo.
— Como você sabe que foi ela quem me largou?
— Ah, foi mal.
— Mas foi — admiti, e Margo riu. O término já tinha acontecido alguns meses antes, mas eu não culpava Margo por não prestar atenção ao mundo romântico da simples plebe. O que acontece na sala de ensaios fica na sala de ensaios.
Margo colocou os pés no painel e ficou balançando os dedos no ritmo da própria fala. Ela sempre falava daquele jeito, com aquela cadência perceptível, como se estivesse recitando poesia.
— Certo, bem, que pena! Mas eu entendo você. Meu querido namorado há muuuitos meses está comendo minha melhor amiga.
Voltei o olhar para ela, mas o cabelo lhe cobria todo o rosto, então não dava para saber se ela estava brincando.
— Sério? — Ela não respondeu. — Mas você estava rindo com ele hoje de manhã. Eu vi vocês.
— Não sei do que você está falando. Fiquei sabendo antes do primeiro tempo, e aí vi os dois conversando e comecei a gritar feito uma louca, e aí Becca correu para os braços de Clint Bauer, e Jase ficou lá de pé como um retardado, a saliva pingando daquela boca fedida.
Obviamente eu tinha interpretado mal a cena no corredor.
— Estranho, pois Chuck Parson me perguntou hoje de manhã o que eu sabia a respeito de você e do Jase.
— É, bem, Chuck só faz o que mandam, acho. Provavelmente estava tentando descobrir para o Jase quem ficou sabendo.
— Meu Deus, por que ele iria querer ficar com Becca?
— Bem, ela não é conhecida por sua personalidade ou generosidade de espírito, então deve ser porque é gostosa.
— Não tanto quanto você — soltei sem pensar.
— Isso sempre me pareceu tão ridículo, que as pessoas pudessem querer ficar com alguém só por causa de beleza. É como escolher o cereal de manhã pela cor, e não pelo sabor. A propósito, a gente vai pegar a próxima saída. Mas eu não sou bonita, não de perto, pelo menos. Normalmente, quanto mais as pessoas se aproximam de mim, menos me acham atraente.
— Isso… — comecei.
— Tanto faz — respondeu ela.


Acho um tanto injusto que um babaca feito Jason Worthington consiga transar com Margo e Becca, enquanto sujeitos perfeitamente agradáveis como eu não conseguem transar com nenhuma das duas — nem com ninguém, aliás. Dito isso, gosto de pensar que não sou do tipo de pessoa que sairia com Becca Arrington. Ela pode ser gostosa, mas também é 1) agressivamente insípida, e 2) uma absoluta e completa filha da mãe. Há muito tempo que o grupo que frequenta a sala de ensaios suspeita que ela mantém a boa forma se alimentando somente da alma de gatinhos e dos sonhos de crianças carentes.
— Becca é meio mala — falei, tentando puxar Margo de volta para a conversa.
— É — respondeu ela, encarando a janela do carona, o cabelo refletindo as luzes da rua.
Pensei por um segundo que ela pudesse estar chorando, mas ela se aprumou depressa, subiu o capuz e tirou a trava The Club da sacola do supermercado.
— Bem, vai ser divertido de qualquer forma — disse, abrindo a embalagem da trava.
— Já posso saber para onde estamos indo?
— Para a casa de Becca — respondeu.
— Ah, não.
Parei em um sinal. Coloquei a marcha do carro em ponto morto e comecei a dizer a Margo que ia levá-la de volta para casa.
— Nada de delitos graves. Eu juro. A gente precisa achar o carro de Jase. A rua de Becca é a próxima à direita, mas ele não iria estacionar na rua dela, porque os pais dela estão em casa. Tente a próxima. Isso é a primeira coisa.
— Tudo bem — falei. — Mas depois a gente vai para casa.
— Não, aí a gente vai para a parte dois das onze.
— Margo, essa é uma péssima ideia.
— Apenas dirija — ordenou, e foi o que eu fiz.
Encontramos o Lexus de Jase a duas quadras da rua de Becca, parado em uma rua sem saída. Antes mesmo que eu parasse o carro, Margo saltou, com a trava na mão. Ela abriu a porta do motorista do Lexus e pôs a trava no volante. Em seguida bateu a porta de leve.
— Babaca burro que nunca tranca o carro — balbuciou enquanto entrava de volta na minivan, guardando as chaves da trava no bolso. E então se aproximou e acariciou meu cabelo. — Parte um: resolvida. Agora, para a casa de Becca.
Enquanto eu dirigia, Margo me explicou as partes dois e três.
— É genial — comentei, embora, lá no fundo, estivesse tremendo de nervosismo.
Entrei na rua de Becca e parei duas casas antes da Mansão Arrington. Margo pulou para a parte de trás do carro e voltou com um binóculo e uma câmera digital. Primeiro, ela olhou pelo binóculo, depois o passou para mim. Dava para ver uma luz no porão da casa, mas não havia movimento. Eu estava impressionado com o simples fato de a casa ter um porão — não dá para cavar muito fundo em Orlando sem atingir o lençol freático. Enfiei a mão no bolso, peguei meu celular e liguei para o número que Margo havia ditado para mim. O telefone tocou uma, duas vezes, e então uma voz masculina sonolenta atendeu:
— Alô?
— Sr. Arrington? — perguntei.
Margo quis que eu ligasse porque ninguém jamais reconheceria minha voz.
— Quem é? Meu Deus, que horas são?
— Acho que o senhor deveria saber que, neste momento, sua filha está transando com Jason Worthington no porão de sua casa.
E então desliguei.
Parte dois: concluída.
Margo e eu abrimos as portas do carro e corremos rua abaixo, e nos deitamos de bruços atrás da cerca viva ao redor do jardim de Becca. Ela me passou a câmera, e eu fiquei observando enquanto uma luz foi acesa em um quarto do segundo andar, depois na escada, e então na cozinha, até que, finalmente, na escada do porão.
— Lá vem ele — sussurrou Margo. Eu não entendi muito bem o que ela queria dizer até que, pelo canto do olho, notei um Jason Worthington sem camisa pendurado na janela do porão. Ele correu, atravessando o gramado só de cueca, e, quando se aproximou, levantei e bati uma foto dele, completando a parte três. Acho que o flash surpreendeu a nós dois, e ele piscou na escuridão por um instante antes de sair correndo pela noite. Margo me puxou pela calça; olhei para baixo, e ela estava sorrindo de maneira tola. Estiquei a mão, a ajudei a se levantar e nós corremos de volta para o carro. Eu estava enfiando a chave na ignição quando ela disse:
— Quero ver a foto.
Passei a câmera para ela e, juntos, vimos a foto surgir na tela, nossa cabeça quase se tocando.
Ao ver a cara assustada e pálida de Jason Worthington, não consegui segurar o riso.
— Ai, meu Deus — disse Margo, apontando. Na pressa, parece que Jason não conseguira enfiar o Pequeno Jason dentro da cueca. E lá estava ele, pendurado, capturado digitalmente para a posteridade. — É um pênis — disse Margo —, do mesmo jeito que aquela titica de Rhode Island é um estado: pode até ter uma história ilustre, mas certamente não é grande.
Olhei de volta para a casa e notei que a luz do porão estava apagada. Percebi que me sentia meio mal por Jason — não era culpa dele ter o pênis pequeno e uma namorada ardilosamente vingativa. Mas no sexto ano Jase prometera não socar meu braço se eu comesse uma minhoca viva, então eu comi, e ele me socou na cara. Por isso não me senti mal por muito tempo. Quando olhei de novo para Margo, ela estava observando a casa pelo binóculo.
— A gente precisa ir — disse Margo. — Entrar naquele porão.
— O quê? Por quê?
— Parte quatro. Pegar as roupas dele caso ele tente retornar. Parte cinco. Deixar um peixe para Becca.
— Não.
— Sim. Agora — mandou ela. — Ela está lá em cima, levando uma bronca dos pais. Mas, tipo, quanto tempo esse sermão deve durar? Quer dizer, o que se diz nesses casos? “Você não devia transar com o namorado de Margo no porão de casa.” É basicamente um sermão de uma frase só. Então a gente tem que correr.
Ela saiu do carro com a tinta spray em uma das mãos e um bagre na outra.
— Essa é uma péssima ideia — sussurrei, mas a segui de perto, agachado como ela, até chegarmos à janela ainda aberta do porão.
— Eu vou primeiro — disse ela.
Ela passou uma das pernas pela janela para entrar, e, quando estava de pé na escrivaninha de Becca, metade dentro da casa, metade fora, perguntei:
— Posso ficar só vigiando aqui fora?
— Enfia logo essa bunda magra aqui dentro — respondeu ela, e eu obedeci.
Rapidamente peguei as roupas masculinas que vi jogadas no carpete lilás de Becca: uma calça jeans com cinto de couro, um par de chinelos, um boné de beisebol do time da Winter Park e uma polo azul-bebê. Voltei-me para Margo, que me passou o peixe enrolado em jornal e uma das canetinhas roxas de Becca. Ela me mandou escrever o seguinte: Uma mensagem de Margo Roth Spiegelman: a amizade de vocês dorme com os peixes. Margo escondeu o peixe no armário, entre os shorts dobrados de Becca.
Ouvi passos no andar de cima e dei um tapinha no ombro de Margo, arregalando os olhos para ela. Ela apenas sorriu e sacou devagar a tinta spray. Enfiei-me pela janela e me virei para observar enquanto Margo se debruçava sobre a mesa e sacudia a lata de tinta calmamente. Com um movimento elegante — do tipo que você associaria a calígrafos ou ao Zorro —, ela pichou a letra M na parede acima da mesa. Esticou as mãos, e eu a puxei pela janela. Ela estava se levantando quando ouvi uma voz estridente gritando:
— QUE CACETE!
Peguei as roupas e saí correndo com Margo em minha cola. Apenas ouvi, porém sem ver, a porta da frente da casa de Becca se abrindo, mas não parei, nem me virei, nem mesmo quando uma voz grossa gritou:
— PARADOS!
E nem quando ouvi o som inconfundível de uma arma sendo engatilhada. Ouvi Margo balbuciar a palavra “arma” atrás de mim — ela não parecia exatamente chateada a esse respeito, estava só fazendo uma observação —, e então, em vez de contornar a cerca viva, mergulhei por cima dela. Não sei muito bem como eu esperava aterrissar — talvez com um salto mortal artístico ou algo assim —, mas, de qualquer forma, eu me estabaquei no asfalto, pousando no ombro esquerdo.
Por sorte, o montinho de roupas de Jase acertou o chão primeiro e amorteceu a queda. Xinguei um palavrão e, antes que pudesse ao menos começar a me levantar, senti as mãos de Margo me puxando, e então estávamos de volta ao carro, eu dirigindo de ré com os faróis apagados.
E foi assim que quase atropelei um cara seminu, a começar pela ausência do boné de beisebol do time da Winter Park. Jase estava correndo bem, mas não parecia estar indo para nenhum lugar em especial. Senti mais uma pontada de arrependimento quando passamos por ele de ré, então abri a janela até a metade e joguei a camisa polo na direção dele. Felizmente, acho que ele não nos viu, e não tinha nenhum motivo para reconhecer a minivan, já que — e eu não quero parecer amargo ou algo assim por trazer isto à tona — eu não posso ir de carro para o colégio.
— Por que diabos você fez isso? — perguntou Margo enquanto eu acendia os faróis, dirigindo para a frente e tentando me localizar no labirinto de ruas suburbanas para retornar à rodovia interestadual.
— Senti pena dele.
— Dele? Por quê? Porque ele está me traindo há seis semanas? Porque ele me passou sabe-se lá que tipo de doença? Porque ele é um idiota nojento que provavelmente vai ser rico e feliz pelo resto da vida, provando assim a total injustiça do universo?
— Ele só parecia meio desesperado — respondi.
— Tanto faz. Casa de Karin agora. Fica na Pensilvânia, do lado da ABC Liquors.
— Não fique com raiva de mim — pedi. — Um cara acabou de apontar uma arma para mim só porque resolvi ajudar você, então não fique com raiva de mim.
— NÃO ESTOU COM RAIVA DE VOCÊ! — berrou Margo, socando o painel do carro.
— Bem, você está gritando.
— Eu achei que talvez… ah, deixa para lá. Eu achei que talvez ele não estivesse me traindo.
— Ah.
— Foi Karin quem me contou. E acho que um monte de gente já sabia há um tempão. E ninguém me falou nada até Karin me avisar. Achei que talvez ela só estivesse querendo arrumar confusão ou algo assim.
— Foi mal.
— Tá, tá. Nem acredito que me importo com isso.
— Meu coração está acelerado — falei.
— É assim que a gente sabe que está se divertindo — disse Margo.
Mas não parecia divertido; parecia um ataque cardíaco. Parei o carro no estacionamento de uma loja de conveniência vinte e quatro horas e levei o dedo até a jugular, observando os dois pontinhos no relógio digital piscarem a cada segundo. Quando me virei para Margo, ela estava revirando os olhos.
— Minha pulsação está perigosamente acelerada — disse.
— Eu nem lembro qual foi a última vez em que fiquei empolgada por algo assim. A adrenalina na garganta e os pulmões inflando.
— Inspire pelo nariz, expire pela boca — respondi.
— Toda essa sua ansiedade. É tão…
— Bonitinho?
— É assim que estão chamando “infantil” hoje em dia?
Margo sorriu. Ela pulou no banco de trás e voltou com uma bolsa. Quanta coisa ela enfiou aqui dentro?, pensei. Ela abriu a bolsa e tirou um vidro de esmalte vermelho tão escuro que era quase preto.
— Vou pintar as unhas enquanto você se acalma — disse, seu sorriso para mim aparecendo atrás da franja. — Não tenha pressa.
E ali ficamos, ela com o vidro de esmalte equilibrado no painel, e eu com o dedo trêmulo checando minha pulsação. O esmalte era de uma cor bonita, e Margo tinha dedos elegantes, mais magros e ossudos que o restante do corpo, todo curvilíneo. Os dedos dela eram do tipo que qualquer um gostaria de entrelaçar aos seus. Eu me lembrei deles em meu quadril quando estávamos no Wal-Mart, fato que parecia ter acontecido dias antes. Meu coração se acalmou. E tentei dizer a mim mesmo: Margo tem razão. Não há nada a se temer aqui, não nesta cidade, nesta noite tranquila.

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