terça-feira, 29 de julho de 2014

48° Capitulo - Convergente

Tobias


O quartel general dos sem facção – mas esse edifício será sempre a sede da Erudição para mim, não importa o que aconteça – permanece silencioso na neve, com nada além de janelas brilhantes sinalizando que há pessoas dentro. Paro na frente das portas e faço um som descontente com a garganta.
— O que foi? — Peter pergunta.
— Odeio isso aqui.
Ele afasta o cabelo, encharcado pela neve, dos olhos.
— Então, o que a gente vai fazer, quebrar a janela? Procurar pela porta dos fundos?
— Eu só vou entrar — respondo. — Sou o filho dela.
— Você também a traiu e deixou a cidade quando ela proibiu qualquer um de fazer isso — ele aponta — e ela mandou pessoas atrás de você para te impedir. Pessoas com armas.
— Você pode ficar aqui se quiser.
— Onde o soro for, eu vou. Mas se você levar um tiro, eu vou pegar o frasco e correr.
— Não espero nada mais que isso.
Ele é um tipo estranho de pessoa.
Entro no lobby, onde alguém recolocou o retrato de Jeanine Matthews na parede, mas desenhou um X em tinta vermelha em cada um dos seus olhos e escreveu “Escória das facções” na parte inferior.
Várias pessoas vestindo braçadeiras de sem facção avançam sobre nós com armas erguidas. Algumas delas eu reconheço dos acampamentos sem facção, do tempo que passei ao lado de Evelyn como um líder da Audácia. Outras são completamente estranhas, me lembrando de que a população sem facção é maior do que suspeitávamos.
Ponho as mãos para o alto.
— Estou aqui para ver Evelyn.
— É claro — um deles diz. — Até porque nós deixamos qualquer um que quer vê-la entrar.
— Eu tenho uma mensagem das pessoas de fora — falo. — Uma mensagem que tenho certeza de que ela quer ouvir.
— Tobias? — uma mulher sem facção pergunta.
Eu a reconheço, mas não de um setor sem facção – da Abnegação. Ela era minha vizinha. Grace é o nome dela.
— Olá Grace. Só quero falar com a minha mãe.
Ela morde a parte interna da bochecha e me avalia. O aperto em sua pistola vacila.
— Bom, nós ainda não podemos deixar ninguém entrar.
— Pelo amor de Deus — Peter diz. — Então vá falar para ela que nós estamos aqui e veja o que ela diz. Podemos esperar.
Grace entra na multidão que se acumulou enquanto nós estávamos conversando, e então abaixa a arma e corre até uma passagem próxima.
Esperamos pelo o que parece um longo tempo, até que meus ombros ficam com câimbras por suportar meus braços no alto. Em seguida Grace retorna e acena para nós. Baixo meus braços e entro na sala de estar, passando pelo centro da multidão como uma linha no buraco de uma agulha. Ela nos leva até um elevador.
— O que você está fazendo segurando uma arma, Grace? — pergunto. — Eu nunca soube de alguém da Abnegação que segurou uma arma.
— Sem mais fantasias de facções — ela diz. — Agora eu me defendo. Eu tenho um senso de autopreservação.
— Bom — eu digo e realmente quis dizer isso.
A Abnegação era tão degradada quanto as outras facções, mas o mal dela era menos óbvio, camuflada enquanto eles estavam sob o disfarce de Abnegação. Mas pedir a uma pessoa que desapareça, desvaneça no fundo aonde quer que ela vá, não é melhor do que encorajá-la a socar uns aos outros.
Nós vamos para o andar onde fica o escritório administrativo de Jeanine – mas não é para lá que Grace nos leva. Ao invés disso, ela nos leva até uma sala de reuniões com mesas, sofás e cadeiras arranjadas em quadrados perfeitos. Grandes janelas ao longo da parede dos fundos deixam a luz do luar entrar. Evelyn está sentada em uma mesa à direita, olhando para a janela.
— Você pode ir, Grace — Evelyn diz. — Tem uma mensagem para mim, Tobias?
Ela não olha para mim. Seu cabelo grosso está amarrado para trás em um coque, e ela está vestindo uma camisa cinza com uma braçadeira dos sem facção sobre ela. Ela parece exausta.
— Se importa de esperar no corredor? — pergunto a Peter, e para a minha surpresa, ele não discute. Apenas vai para fora, fechando a porta atrás dele.
Minha mãe e eu estamos sozinhos.
— As pessoas lá de fora tem mensagens para nós — eu digo, chegando mais perto dela. — Eles queriam apagar a memória de todos desta cidade. Acreditam que não podem raciocinar conosco sem apelar para o melhor de nossa natureza. Eles decidiram que seria mais fácil nos apagar do que falar com a gente.
— Talvez eles estejam certos — Evelyn diz.
Finalmente ela se volta para mim, descansando a bochecha nas mãos fechadas. Ela tinha um circulo tatuado em um de seus dedos como uma aliança.
— Para que vocês vieram aqui, então?
Eu hesito, a mão no frasco em meu bolso. Eu olho para ela, e posso ver a forma como o tempo agiu sobre ela como um pedaço de pano velho, as fibras expostas e esfiapadas. E posso ver a mulher que eu conhecia quando criança também, a boca que se torcia em um sorriso, os olhos que brilhavam de alegria. Mas quanto mais olho para ela, mais estou convencido de aquela mulher feliz nunca existiu. Aquela mulher é só uma versão pálida da minha verdadeira mãe, vista através dos olhos de uma criança.
Eu sento de frente para ela na mesa e coloco o frasco do soro da memória entre nós.
— Eu vim para fazer você beber isto — digo.
Ela olha para o frasco, e penso ver lágrimas em seus olhos, mas poderia ter sido apenas o reflexo da luz.
— Pensei que essa fosse a única forma de prevenir uma destruição total. Sei que Marcus, Johanna e seu grupo vão atacar, e sei que você vai fazer o possível para impedi-los, inclusive usar aquele soro da morte que você possui como melhor vantagem — inclino minha cabeça. — Estou errado?
— Não — ela responde. — As facções são más. Elas não podem ser restauradas. Antes eu preferiria que todos nós fôssemos destruídos.
Sua mão aperta os cantos da mesa, as juntas brancas.
— A razão pela qual as facções eram más era porque não havia nenhuma maneira de sair delas — eu digo. — Eles nos deram uma ilusão de escolha sem nos dar realmente uma escolha. É a mesma coisa que você está fazendo aqui, abolindo-as. Você está dizendo “Façam escolhas. Mas garantam que não escolham as facções ou vou moê-los em pedacinhos!”
— Se você pensa assim, por que não me falou? — ela pergunta, sua voz mais alta e os olhos evitando os meus, evitando a mim. — Por que, ao invés de me trair?
— Porque eu tenho medo de você! — As palavras irrompem de mim e eu me arrependo, mas também estou satisfeito por tê-las dito, satisfeito porque antes de eu pedir a ela para desistir de sua identidade, posso pelo menos ser honesto com ela. — Você... Você me lembra dele!
— Não ouse — ela fecha suas mãos em punhos e praticamente cospe as palavras. — Não ouse!
— Eu não me importo se não quer ouvir isto — falo, ficando em pé. — Ele era um tirano em nossa casa e agora você é uma tirana nesta cidade, e não pode nem ver que é a mesma coisa!
— Então é por isso que você trouxe isto — ela diz, e pega o frasco e olha para ele. — Porque pensa que esta é a única maneira de consertar as coisas.
— Eu...
Estou prestes a dizer que esta é a maneira mais fácil, a melhor maneira, talvez a única maneira de eu confiar nela. Se eu apagar suas memórias, posso criar para mim uma nova mãe, mas...
Mas ela é mais do que minha mãe. Ela é uma pessoa com seus próprios direitos, e ela não pertence a mim. Não posso escolher o que ela pode se tornar só porque não posso lidar com quem ela é.
— Não — eu falo. — Não, eu vim para de dar uma escolha.
De repente eu me sinto assustado, minhas mãos dormentes, meu coração disparado...
— Pensei em ver Marcus esta noite, mas não fui — eu respiro fundo. — Vim te ver ao invés disso porque... Porque acho que há esperança de reconciliação entre nós. Não agora, não logo, mas um dia. E com ele não há esperança, não há possibilidade de reconciliação.
Ela me encara, seus olhos ferozes, mas com lágrimas brotando.
— Não é justo para mim te dar esta escolha — continuo. — Mas tenho que fazer isso. Você pode liderar os sem facção, pode lutar contra os Convergentes, mas vai ter que fazer isso sem mim, para sempre. Ou você pode deixar essa guerra, e... E terá seu filho de volta.
É uma oferta débil, eu sei disso, por isso estou com medo – com medo de que ela vá se recusar a escolher, que vai escolher o poder ao invés de mim, que vai me chamar de criança ridícula, o que eu sou. Eu sou uma criança. Tenho um metro e oitenta e estou lhe perguntando o quanto ela me ama.
Os olhos de Evelyn, escuros como terra molhada, enfrentam os meus por um longo tempo.
E então ela sai do outro lado da mesa e me aperta ferozmente em seus braços, que formam uma gaiola em volta de mim, surpreendemente fortes.
— Que tenham a cidade e tudo o que está nela — ela diz nos meus cabelos.
Eu não consigo me mover, não consigo falar. Ela me escolheu. Ela me escolheu.

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