terça-feira, 29 de julho de 2014

20° Capitulo (2p) - Cidades de Papel

Durante toda a noite de quarta-feira e todo o dia de quinta, tentei usar minha nova compreensão sobre Margo para encontrar algum significado nas pistas que eu possuía — alguma relação entre o mapa e os guias de viagem, ou alguma conexão entre Whitman e o mapa que me permitisse compreender o roteiro dela.
No entanto, cada vez mais eu me sentia como se ela tivesse ficado fascinada demais pelo prazer de ir embora para deixar uma trilha de migalhas de pão. E, se fosse esse o caso, o mapa que ela jamais pretendera que víssemos talvez fosse nossa melhor chance de encontrá-la.
Mas nenhum dos lugares marcados nele era específico o bastante. Mesmo o ponto em Catskill Park, que me interessava por ser o único que não ficava em uma metrópole, nem estava perto de uma, era grande e populoso demais para se encontrar uma pessoa sozinha.
Havia referências a lugares na cidade de Nova York na “Canção de mim mesmo”, mas eram lugares demais para rastrear.
Como você localiza com precisão um ponto em um mapa quando o ponto parece estar andando de uma metrópole a outra?


Eu já estava acordado, folheando os guias de viagem, quando meus pais entraram em meu quarto na sexta-feira de manhã. Eles raramente entravam juntos em meu quarto, então senti uma pontada de enjoo — talvez tivessem notícias ruins a respeito de Margo — antes de me lembrar que era o dia da colação de grau.
— Pronto, filho?
— Pronto. Quer dizer, não é nada de mais, mas vai ser legal.
— Você só se forma no colégio uma única vez — disse minha mãe.
— Eu sei — respondi.
Eles se sentaram na cama, de frente para mim. Notei uma troca de olhares e uma risada.
— O que foi? — perguntei.
— Bem, a gente queria dar seu presente de formatura — disse minha mãe. —Estamos muito orgulhosos de você, Quentin. Você é a maior conquista de nossa vida, e este dia é tão importante para você, e nós… Você é um rapaz e tanto.
Sorri e olhei para baixo. Então me pai me entregou um pacotinho bem pequeno, embrulhado em papel de presente azul.
— Não — falei, pegando o presente da mão dele.
— Vá, abra.
— Não brinquem — falei, olhando para o pacote.
Era do tamanho de uma chave. Tinha o peso de uma chave. Quando sacudi, ouvi um barulho de chave.
— Abra logo, meu amor — incentivou minha mãe.
Rasguei o papel. UMA CHAVE! Olhei bem de perto. A chave de um Ford! Ninguém lá em casa tinha um Ford.
— Vocês compraram um carro para mim?!
— Isso mesmo — disse meu pai. — Não é novo, mas só tem dois anos de uso e apenas trinta e dois mil quilômetros rodados.
Dei um pulo e abracei os dois.
— É meu?
— É! — quase gritou minha mãe.
Eu tinha um carro! Um carro! Todinho meu! Desenrosquei-me de meus pais e saí gritando obrigado, obrigado, obrigado, obrigado, obrigado, obrigado enquanto cruzava a sala de estar e arreganhava a porta da frente só de cueca e camiseta.
E ali, parada na entrada de carros de casa, com um laçarote azul enorme, havia uma minivan Ford. Eles me deram uma minivan. Eles podiam ter escolhido qualquer carro, mas escolheram uma minivan. Uma minivan. Ó, Deus da Justiça Automobilística, por que zombas de mim? Minivan, seu albatroz morto em torno do meu pescoço! Maldita marca de Caim! Seu monstro abominável de teto alto e motor de poucos cavalos!
Eu me virei, tentando manter a pose, e disse:
— Obrigado, obrigado, obrigado! — Embora na certa não soasse mais tão entusiasmado, já que estava fingindo.
— Ah, a gente sabia quanto você gostava de dirigir minha minivan — disse minha mãe.
Os dois estavam radiantes — obviamente convencidos de que tinham me proporcionado o transporte dos meus sonhos.
— É ótimo para levar os amigos! — acrescentou meu pai. E pensar que aqueles dois são especialistas em analisar e compreender a psique humana. — Escute — disse meu pai —, a gente tem que sair logo se quiser arrumar lugares bons.
Eu não tinha tomado banho, nem me vestido, nem nada. Bem, não que eu fosse de fato me vestir, mas ainda assim…
— Eu só preciso chegar lá por volta de meio-dia e meia — falei. — Preciso me arrumar.
— Bem — Meu pai franziu a testa —, eu queria ficar lá na frente, para poder tirar fo…
— Eu posso ir no MEU CARRO — interrompi. — Eu posso ir SOZINHO, no MEU CARRO. — E abri um sorriso enorme.
— Eu sei! — disse minha mãe, animada.
E peraí… No final das contas, um carro não deixa de ser um carro. Dirigir minha própria minivan certamente era uma evolução em relação a dirigir a minivan alheia.


Voltei para o computador e contei a Radar e Lacey (Ben não estava on-line) sobre a minivan.
OMNICTIONARIAN96: Na verdade, é uma excelente notícia. Posso passar aí e colocar um isopor na mala do carro? Vou ter que levar meus pais para a colação e não quero que eles vejam.
QRESURRECTION: Claro, o carro está destrancado. Isopor para quê?
OMNICTIONARIAN96: Bem, já que ninguém bebeu na minha festa, sobraram 212 garrafas de cerveja, e a gente vai levar tudo para a festa da Lacey amanhã à noite.
QRESURRECTION: 212 garrafas?
OMNICTIONARIAN96: O isopor é grande.
E então Ben apareceu no chat, GRITANDO que ele já tinha tomado banho e estava pelado, e que só precisava colocar a beca e o capelo. Estávamos todos conversando sobre nossa colação de grau nua. Depois que todo mundo desligou para terminar de se arrumar, entrei no chuveiro e fiquei parado para que a ducha batesse diretamente no rosto, e comecei a pensar enquanto a água me acertava.
Nova York ou Califórnia? Chicago ou Washington? Agora eu podia ir também, pensei. Tinha um carro, assim como ela. Podia ir para os cinco pontos do mapa e, mesmo que não a encontrasse, seria mais divertido do que passar outro verão escaldante em Orlando. Mas não. É como invadir o SeaWorld. É necessário um plano perfeito, e então você o executa com precisão e depois… nada. É só o SeaWorld, só que mais escuro.
Foi o que ela me disse: o prazer não está na execução; o prazer está no planejamento.
E foi nisso que pensei enquanto ficava ali, de pé debaixo do chuveiro: o planejamento.
Ela sentada no centro comercial abandonado com seu caderno, planejando. Talvez estivesse planejando uma viagem, usando o mapa para imaginar as rotas. Ela lê o livro de Whitman e ilumina a frase “Vadio uma jornada perpétua” porque esse é o tipo de coisa que gosta de se imaginar fazendo, o tipo de coisa que gosta de planejar. Mas é esse o tipo de coisa que ela realmente gosta de fazer?
Não. Porque Margo conhece o segredo de ir embora, o segredo que só agora eu havia descoberto: ir embora é uma sensação boa e pura apenas quando você abandona uma coisa importante, algo que tinha um significado. Arrancando a vida pela raiz. Mas só se pode fazer isso quando sua vida já criou raízes. E assim, quando ela foi embora, se foi para sempre. Mas eu não conseguia acreditar que ela havia saído para uma jornada perpétua. Eu tinha certeza de que ela havia seguido para algum lugar — um lugar onde pudesse permanecer por tempo suficiente para que ele se tornasse importante, por tempo suficiente para que a próxima partida fosse tão boa quanto a última.
Existe um canto no mundo, um lugar bem longe daqui, onde ninguém sabe o que “Margo Roth Spiegelman” significa. E Margo está nesse canto, escrevendo em seu caderninho preto. A água começou a ficar fria. Eu nem tinha tocado no sabonete, mas saí do banho mesmo assim, enrolei uma toalha na cintura e me sentei diante do computador.
Abri o e-mail de Radar sobre seu programa no Omnictionary e baixei o plug- in. Era bem legal. Primeiro digitei um código postal do centro de Chicago e cliquei em “localização”, e então estabeleci um raio de trinta quilômetros. O programa gerou cem resultados, desde Navy Pier até Deerfield. A primeira frase de cada artigo apareceu em minha tela, e eu li todas em cinco minutos. Nada me saltou aos olhos. Então tentei um código postal próximo de Catskill Park, no estado de Nova York. Menos resultados dessa vez, oitenta e dois, organizados por cronologia crescente de publicação no Omnictionary. Comecei a ler:

Woodstock, Nova York, é uma cidade no condado de Ulster, em Nova York, talvez mais conhecida pelo festival homônimo [ver Festival de Woodstock], de 1969, evento de três dias que incluiu shows de músicos como Jimi Hendrix e Janis Joplin, mas que na verdade aconteceu em uma cidade vizinha.

O Lago Katrine é um pequeno lago no condado de Ulster, em Nova York, frequentemente visitado por Henry David Thoreau.

O Catskill Park abrange uma área de setecentos mil acres nas montanhas Catskill e é administrado em conjunto pelos governos local e estadual, sendo que a prefeitura de Nova York detém cinco por cento do terreno e obtém a maior parte de seu abastecimento de água dos reservatórios do parque.

Roscoe, Nova York, é uma vila no Estado de Nova York que, de acordo com censo recente, contém duzentas e sessenta e uma residências.

Agloe, Nova York, é uma cidade fictícia criada pela Esso no início dos anos 1930 e inserida nos mapas turísticos como uma forma de identificar plágios e violações de copyright, ou seja, uma cidade de papel.

Cliquei no link e abri o artigo completo, que continuava da seguinte forma:

Localizada no cruzamento de duas estradas de terra imediatamente ao norte de Roscoe, no estado de Nova York, Agloe foi criada pelos cartógrafos Otto G. Lindberg e Ernest Alpers, que inventaram uma cidade cujo nome era um anagrama de suas iniciais. Armadilhas para identificar violações de copyright fazem parte do mundo da cartografia há séculos. Diversos cartógrafos criaram pontos de referência, ruas e cidades fictícias e os inseriram secretamente em seus mapas. Caso o local apareça no mapa de outro cartógrafo, fica comprovado que houve plágio do mapa. Tais armadilhas são também conhecidas como armadilhas-chave, ruas de papel ou cidades de papel [ver também Entradas fictícias]. Embora poucas empresas desenvolvedoras de mapas admitam sua existência, armadilhas para a identificação de violação de copyright ainda aparecem em mapas atuais. Nos anos 1940, a cidade de Agloe, Nova York, começou a aparecer nos mapas de outras empresas. A Esso suspeitou de plágio e preparou diversos processos legais, mas, na verdade, um morador não identificado havia construído um prédio chamado “The Agloe General Store” exatamente no cruzamento que aparecia no mapa da Esso. O prédio, que ainda existe [carece de fontes], é o único em Agloe, e a cidade continua a aparecer em muitos mapas e é tradicionalmente identificada com uma população de nenhum habitante.

Todos os artigos do Omnictionary contêm subpáginas nas quais você pode ver as modificações incorporadas ao texto e quaisquer discussões levantadas por membros do Omnictionary a esse respeito. O artigo sobre Agloe não era modificado por ninguém havia quase um ano, mas existia um comentário recente de um usuário anônimo na página de discussões:

para sua informação, a quem Quer que edite isto — a População de agloe Vai na verdade ser de Um habitante até o dia 29 de Maio ao Meio-dia.

Reconheci o uso das maiúsculas imediatamente.
As regras de letra maiúscula são tão injustas com as palavras que ficam no meio.
Minha garganta quase fechou, mas me obriguei a manter a calma. O comentário tinha sido publicado quinze dias antes. E tinha ficado lá, à minha espera, aquele tempo todo. Olhei para o relógio no computador. Eu tinha menos de vinte e quatro horas. Pela primeira vez em semanas, ela parecia completa e inegavelmente viva para mim. Ela estava viva. Por pelo menos mais um dia, ela estava viva.
Eu havia me concentrado em seu paradeiro por tanto tempo, na tentativa de evitar imaginar obsessivamente se ela estava viva ou não, que não fiz ideia de quão aterrorizado estivera até aquele momento. Mas, meu Deus do céu! Ela estava viva.
Dei um pulo, deixei a toalha cair e liguei para Radar. Segurei o telefone entre o ombro e o pescoço enquanto colocava uma cueca e então uma bermuda.
— Descobri o que significa cidades de papel! Você está com seu tablet?
— Estou. Mas, cara, você já tinha que estar aqui. Eles estão prestes a arrumar a gente em fila.
E ouvi Ben gritar junto ao telefone:
— E avisa a ele que é melhor que ele esteja pelado!
— Radar — falei, tentando transmitir a importância da situação —, dê uma olhada no artigo sobre Agloe, Nova York. Entendeu?
— Entendi. Estou lendo. Aguenta aí. Uau. Uau. Será que é o ponto do mapa em Catskill?
— Eu acho que é. É muito perto. Veja a página de discussão. — … — Radar?
— Meu Deus!
— Eu sei, eu sei! — gritei.
Não ouvi a resposta dele porque estava vestindo uma camiseta, mas quando coloquei o telefone de volta na orelha o ouvi falando com Ben.
Simplesmente desliguei. Pesquisei na internet como ir de carro de Orlando até Agloe, mas o aplicativo de mapas nunca tinha ouvido falar do lugar, então procurei por Roscoe. De acordo com o aplicativo, se eu dirigisse a uma velocidade média de cem quilômetros por hora, levaria dezenove horas e quatro minutos para chegar lá. Eram duas e quinze da tarde. Eu tinha vinte e uma horas e quarenta e cinco minutos.
Imprimi as indicações de trajeto, peguei as chaves da minivan e tranquei a porta de casa.


— São dezenove horas e quatro minutos de viagem — falei ao telefone.
Era o celular de Radar, mas foi Ben quem atendeu.
— E o que você vai fazer? — perguntou ele. — Vai pegar um avião?
— Não, não tenho dinheiro suficiente e, de qualquer forma, fica a oito horas de Nova York. Então vou de carro.
De repente, Radar pegou o telefone de volta:
— Quanto tempo de viagem?
— Dezenove horas e quatro minutos.
— Segundo quem?
— Google Maps.
— Droga — disse ele. — Nenhum desses programas de mapa faz o cálculo considerando o trânsito. Já ligo de volta. E ande logo. A gente precisa entrar na fila agora!
— Eu não vou. Não posso perder tempo — protestei, mas já estava falando sozinho.
Radar me ligou um minuto depois:
— Se você mantiver a velocidade média de cem quilômetros por hora, sem parar, e considerando os padrões habituais de tráfego, deve levar vinte e três horas e nove minutos. O que significa que deve chegar lá pouco depois de uma da tarde, então vai ter que tentar ganhar tempo como puder.
— O quê? Mas…
— Eu não quero ser chato — disse Radar —, mas talvez, neste caso especificamente, a pessoa que está sistematicamente atrasada devia ouvir a pessoa que é sempre pontual. Mas você precisa passar aqui por pelo menos um segundo, senão seus pais vão pirar quando seu nome for chamado e você não aparecer, e também, não que isso seja tão importante assim, mas só para registrar, você está com toda a nossa cerveja.
— Eu obviamente não tenho tempo — respondi.
Ben se aproximou do telefone:
— Deixe de ser babaca. Você vai perder cinco minutos.
— Ok, tudo bem.
Virei à direita depois do sinal e acelerei a minivan em direção ao colégio — ela tinha mais arranque que a da minha mãe, mas não muito mais.
Cheguei ao ginásio em três minutos. Não estacionei, só larguei o carro no meio do estacionamento e saltei. Enquanto disparava em direção ao ginásio, vi três figuras de beca vindo em minha direção. Dava para ver as pernas compridas de Radar sob a beca esvoaçante ao redor, e Ben ao lado, usando tênis sem meias. Lacey vinha logo atrás deles.
— Peguem a cerveja — falei enquanto passava por eles. — Preciso falar com meus pais.
Os familiares dos formandos estavam nas arquibancadas, e eu corri umas duas vezes de um lado a outro da quadra de basquete até ver minha mãe e meu pai mais ou menos no meio da arquibancada. Estavam acenando para mim. Subi os degraus de dois em dois, então estava um pouquinho sem fôlego quando me ajoelhei ao lado deles e disse:
— Certo, eu não vou [arf] participar da colação, porque [arf] acho que descobri onde Margo está e [arf] eu simplesmente preciso ir, estou com meu celular ligado [arf],e, por favor, não fiquem bravos comigo, e obrigado de novo pelo carro.
Minha mãe agarrou meu pulso e disse:
— O quê? Quentin, do que você está falando? Acalme-se.
— Estou indo para Agloe, em Nova York — expliquei de novo —, e preciso ir agora. Tem toda uma história. Certo, eu preciso ir. Não tenho mais tempo. Estou com o celular. Amo vocês.
Tive de puxar o braço para me soltar. Antes que eles pudessem dizer qualquer coisa, pulei os degraus e corri em direção à minivan. Entrei no carro, o motor ligado, e eu já estava começando a dirigir quando vi Ben no banco do carona.
— Pegue a cerveja e desça logo do carro! — berrei.
— A gente vai com você — disse ele. — Você ia acabar dormindo se tentasse dirigir essa distância toda.
Olhei para trás e vi Lacey e Radar segurando os celulares junto às orelhas.
— Tenho que avisar meus pais — explicou Lacey, digitando no telefone. — Ande logo, Q. Vá, vá, vá, vá, vá, vá.

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