quinta-feira, 24 de julho de 2014

2° Capitulo (2 p) - Cidades de Papel

Margo sumia com tanta frequência que ninguém organizava campanhas no colégio para encontrá-la ou coisa parecida, mas todos sentíamos sua falta.
O ensino médio não é nem uma democracia, nem uma ditadura — nem, contrariando a crença popular, uma anarquia. O ensino médio é uma monarquia de direito divino. E, quando a rainha sai de férias, as coisas mudam. Mais especificamente, pioram.
Foi durante a viagem de Margo para o Mississippi no segundo ano, por exemplo, que Becca espalhou para o mundo o boato do Ben Mija-sangue. E dessa vez não foi diferente. A menininha que enfiara o dedo na represa para proteger a cidade havia sumido. A enchente era inevitável. Naquela manhã, eu tinha acordado no horário certo, para variar, e fui de carona com Ben. Estava todo mundo estranhamente quieto do lado de fora da sala de ensaios.
— Cara — disse nosso amigo Frank com um ar muito sério.
— O que foi?
— Chuck Parson, Taddy Mac e Clint Bauer pegaram o Tahoe do Clint e atropelaram doze bicicletas de alunos do primeiro e do segundo anos.
— Que merda — falei, balançando a cabeça.
— Ontem, também — acrescentou nossa amiga Ashley —, alguém rabiscou nossos telefones no banheiro dos meninos com… bem, um monte de sacanagem.
Balancei a cabeça de novo e me juntei ao silêncio. A gente não podia delatá-los; já tínhamos tentado dedurá-los várias vezes durante o ensino fundamental, e inevitavelmente o resultado era mais punição. Então normalmente a gente só esperava que alguém como Margo lembrasse a todos como eram imbecis e imaturos. Mas Margo havia me ensinado um jeito de contra-atacar.
E eu estava prestes a falar quando, pelo canto de olho, vi um indivíduo enorme correndo a toda velocidade em nossa direção. Usava uma máscara de esqui preta e carregava uma pistola d’água verde, grande e complexa. Ao passar por nós, ele esbarrou em meu ombro e eu perdi o equilíbrio, caindo com o lado esquerdo no chão de concreto rachado.
Assim que chegou à porta, ele se virou e gritou para mim:
— Se você mexer com a gente, vai ficar trúcido.
Não reconheci a voz. Ben e os outros me levantaram. Meu ombro doía, mas eu não queria esfregá-lo.
— Tudo bem? — perguntou Radar.
— Tudo bem.
Só então esfreguei o ombro.
— Alguém precisa dizer a ele que, quando você trucida uma pessoa, ela não fica trúcida — disse Radar, balançando a cabeça.
Eu ri. Alguém apontou o estacionamento com a cabeça, e eu vi dois alunos do primeiro ano caminhando em nossa direção, as camisas ensopadas e largas em seus corpos magros.
— Era xixi! — gritou um deles. O outro não falou nada; só estendeu as mãos o mais longe da camisa quanto era possível, o que não chegou a funcionar muito bem. Dava para ver filetes de líquido escorrendo da manga para o braço dele.
— Xixi de bicho ou de gente? — perguntou alguém.
— Como vou saber?! Você acha que eu sou algum tipo de especialista em xixi?
Caminhei até o garoto e botei a mão no alto da cabeça dele, o único lugar que parecia estar totalmente seco.
— Vamos dar um jeito — falei.
O segundo sinal tocou, e Radar e eu voamos para a aula de cálculo. Ao me sentar, bati o braço na mesa, e a dor irradiou até o ombro.
Radar deu um tapinha em seu caderno, onde havia circulado uma mensagem: Tudo ok com o ombro?
Comparado àqueles garotos do primeiro ano, passei a manhã brincando com cachorrinhos em um campo de arco-íris, rabisquei no canto do meu caderno.
Radar riu alto o suficiente para o Sr. Jiminez lançar-lhe um olhar severo.
Tenho um plano, mas a gente precisa descobrir quem era, escrevi.
Radar escreveu de volta: Jasper Hanson, e circulou o nome várias vezes.
Aquilo era inesperado.
Como você sabe?
Não reparou? O idiota estava usando o uniforme dele do time de futebol, escreveu Radar.
Jasper Hanson era do terceiro ano. Sempre pensei nele como um cara inofensivo e até meio legal — daquele jeito desajeitado, tipo “cara, e aí”. Não o tipo de sujeito que se imagina batizando alunos do primeiro ano com xixi. Para ser sincero, na hierarquia administrativa da Winter Park High School, Jason Hanson era talvez um Assistente Substituto da Subsecretaria de Atletismo e Malfeitorias. E quando um cara desses é promovido a Vice-Presidente Executivo da Pistola de Xixi, é preciso tomar uma atitude imediata.


Então quando entrei em casa, naquela tarde, criei uma conta de e-mail e escrevi para meu velho amigo Jason Worthington.

De: vingadorm@gmail.com Para: jworthington90@yahoo.com Assunto: Você, eu, casa de Becca Arrington, seu pênis etc.
Prezado Sr. Worthington,
1. Duzentas pratas em dinheiro vivo para cada uma das doze pessoas cujas bicicletas seus colegas destruíram com um Chevrolet Tahoe. Isso não deve ser um problema, já que você é impressionantemente rico. 2. Esse negócio da pichação no banheiro tem que parar. 3. Pistola d’água? Com xixi? Vê se cresce. 4. Você devia tratar seus colegas com respeito, especialmente os socialmente menos afortunados do que você. 5. É melhor você instruir os membros de seu clã a se comportarem de forma semelhante.
Eu sei que vai ser difícil concluir algumas dessas tarefas. Mas daí também vai ser muito difícil não compartilhar a foto em anexo com o restante do mundo.
Atenciosamente, Sua Cordial Nêmesis na Vizinhança

A resposta veio doze minutos depois:

Então, Quentin, é, eu sei que é você. Você sabe que não fui eu que joguei xixi naqueles garotos. Sinto muito, mas não posso controlar o que as outras pessoas fazem.

Minha resposta:

Sr. Worthington,
Compreendo que você não possa controlar Chuck e Jasper. Mas, sabe, eu estou em situação semelhante. Também não posso controlar o diabinho sentado em meu ombro esquerdo. E ele está dizendo: “IMPRIMA ESTA FOTO IMPRIMA ESTA FOTO ESPALHE POR TODO O COLÉGIO IMPRIMA IMPRIMA IMPRIMA.” E no meu ombro direito tem um anjinho branco. E ele está dizendo: “Cara, espero mesmo que todos aqueles garotos recebam o dinheiro na segunda-feira de manhã.” Eu também, anjinho. Eu também.
Atenciosamente, Sua Cordial Nêmesis na Vizinhança

Ele não respondeu, e nem precisava. Tudo o que havia para ser dito já fora dito.
Ben passou lá em casa depois do jantar e a gente jogou Resurrection, parando a cada meia hora para ligar para Radar, que tinha saído com Angela.
Deixamos onze mensagens na caixa postal dele, cada uma mais irritante e atrevida que a outra. Já havia passado das nove quando a campainha tocou.
— Quentin! — berrou minha mãe.
Ben e eu imaginamos que fosse Radar, então pausamos o jogo e fomos até a sala de estar.
Chuck Parson e Jason Worthington estavam parados em frente à minha casa. Caminhei até eles, e Jason disse:
— Oi, Quentin.
Respondi balançando a cabeça. Jason olhou para Chuck, que virou para mim e balbuciou:
— Foi mal, Quentin.
— Pelo quê? — perguntei.
— Por mandar Jasper atirar xixi naqueles garotos. — Ele parou, e então completou: — E pelas bicicletas.
Ben abriu os braços, como se quisesse dar um abraço, e falou:
— Chega mais, parceiro.
— O quê?
— Chega mais — repetiu ele.
Chuck deu um passo à frente.
— Mais perto.
E então Chuck estava totalmente dentro da casa, talvez a uns trinta centímetros de Ben. Do nada, Ben deu um soco no estômago de Chuck, que mal recuou, mas tomou impulso para revidar. Jase, no entanto, segurou o braço dele.
— Fique frio, parceiro — disse Jase —, nem doeu. — Ele estendeu a mão para mim. — Curto a sua coragem, cara. Quer dizer, você é um babaca. Mas ainda assim…
Apertei a mão dele. Eles saíram, entraram no Lexus de Jase e desceram a entrada de carros da casa.
Assim que fechei a porta, Ben soltou um gemido:
— Aiiiiiiiii. Putz, minha Nossa Senhora, minha mão. — Ele tentou fechar a mão e estremeceu. — Acho que Chuck Parson estava com um livro de capa dura preso à barriga.
— Tem gente que chama de tanquinho — falei.
— Ah é. Já ouvi falar.
Dei um tapinha nas costas dele e voltamos ao quarto para jogar Resurrection.
Tínhamos acabado de retomar o jogo quando Ben disse:
— Aliás, você reparou que o Jase fala parceiro? Eu renovei totalmente essa gíria. Só com o simples poder da minha genialidade.
— É, você vai passar a noite de sexta jogando video game e cuidando da mão que quebrou tentando socar uma pessoa na barriga. Não me admira que Jase Worthington tenha tentado dar carona para seu sucesso.
— Pelo menos eu sou bom em Resurrection — disse ele, e então atirou em mim pelas costas, ainda que estivéssemos na mesma equipe.
Jogamos por mais um tempo, até que Ben simplesmente se enroscou no chão, segurando o controle junto ao peito, e dormiu. Eu também estava cansado — tinha sido um dia bem longo. Imaginei que Margo estaria de volta na segunda-feira, de qualquer forma, mas mesmo assim senti certo orgulho em ser a pessoa que havia salvado o dia.

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