quinta-feira, 24 de julho de 2014

3° Capitulo ( 2 p) - Cidades de Papel

A partir de então, todas as manhãs eu verificava se havia algum sinal de vida no quarto de Margo. Ela sempre mantinha a persiana fechada, mas desde seu sumiço sua mãe ou alguém as abrira, então eu podia ver um pedaço de parede azul e um teto branco.
No sábado de manhã, após apenas quarenta e oito horas do desaparecimento, não achei que ela já estaria de volta, mas mesmo assim senti uma pontinha de decepção quando vi a persiana aberta.
Escovei os dentes e então, depois de chutar Ben de leve na tentativa de acordá-lo, saí do quarto de bermuda e camiseta. Havia cinco pessoas sentadas à mesa de jantar.
Minha mãe e meu pai. A mãe e o pai de Margo. E um negro robusto com óculos grandes demais usando um terno cinza e segurando uma pasta de arquivo.
— Hum, oi — cumprimentei.
— Quentin, você viu Margo na noite de quarta? — perguntou minha mãe.
Caminhei até a sala de jantar e me recostei na parede do lado oposto ao estranho. Já tinha pensado na resposta para aquela pergunta.
— Vi — contei. — Ela apareceu na janela do meu quarto lá pela meia-noite. Nós conversamos por um minuto, aí o Sr. Spiegelman percebeu e a levou de volta para casa.
— E foi só…? Você não a viu depois disso? — perguntou o Sr. Spiegelman.
Ele parecia bem tranquilo.
— Não, por quê?
Foi a mãe de Margo quem respondeu à pergunta, com a voz esganiçada:
— Bem, parece que Margo fugiu. De novo. — Ela suspirou. — Esta deve ser… o quê, Josh, a quarta vez?
— Ah, já perdi a conta — respondeu ele, irritado.
— É a quinta vez que vocês prestam queixa — disse o cara negro. Ele então assentiu com a cabeça para mim e disse: — Investigador Otis Warren.
— Quentin Jacobsen — repliquei.
Mamãe se levantou e pôs as mãos nos ombros da Sra. Spiegelman.
— Debbie, sinto muito. É uma situação muito frustrante — disse ela.
Eu conhecia o truque. Era uma tática psicológica chamada escuta empática. Você diz o que a pessoa está sentindo para ela se sentir compreendida. Mamãe faz isso comigo o tempo todo.
— Não estou frustrada — declarou a Sra. Spiegelman. — Estou farta.
— Exatamente — concordou o Sr. Spiegelman. — Hoje de tarde um chaveiro vai passar lá em casa. Vamos trocar as fechaduras. Ela tem dezoito anos. Quer dizer, o investigador acabou de falar que a gente não pode fazer nada…
— Bem — interrompeu o agente Warren —, não foi exatamente isso que eu disse. Eu disse que ela não é uma menor desaparecida. Então ela tem o direito de sair de casa.
O Sr. Spiegelman continuou falando com minha mãe:
— Estamos dispostos a pagar pela faculdade dela, mas não podemos apoiar essa… essa palhaçada. Connie, ela tem dezoito anos! E ainda é tão egocêntrica! Ela precisa enfrentar as consequências.
Minha mãe tirou as mãos dos ombros da Sra. Spiegelman.
— Eu diria que ela precisa de carinho.
— Bem, ela não é sua filha, Connie. Ela não pisou em você feito capacho durante uma década. Temos outra criança com que nos preocupar — retrucou a mãe da Margo.
— Além de nós mesmos — acrescentou o Sr. Spiegelman. E então olhou para mim: — Quentin, sinto muito se ela tentou arrastar você para o joguinho dela. Você nem pode imaginar como isso… como isso é vergonhoso para nós. Você é um garoto tão bom, e ela… bem.
Eu me afastei da parede e endireitei o corpo. Conhecia um pouco os pais de Margo, mas nunca os tinha visto tão agressivos. Não era de se admirar que ela estivesse irritada com eles na noite de quarta. Dei uma olhada para o investigador. Ele estava folheando as páginas dentro da pasta.
— Ela costuma deixar uma trilha de migalhas de pão, não é? — perguntou ele.
— Pistas — disse o Sr. Spiegelman, pondo-se de pé.
O investigador havia colocado a pasta na mesa, e o pai da Margo se aproximou para examiná-la junto com ele.
— Pistas em todos os cantos. No dia em que fugiu para o Mississippi, ela comeu sopa de letrinhas e deixou exatamente quatro letras na tigela: um M, um I, um S e um P. Ficou decepcionada quando a gente não descobriu o que era, mas falei para ela no dia em que finalmente voltou para casa: “Como vamos encontrar você quando tudo o que sabemos é Mississippi? É um estado enorme, Margo!”
— E ela deixou uma boneca da Minnie na cama quando passou a noite na Disney — disse o agente, pigarreando.
— É — disse a mãe dela. — As pistas. As pistas idiotas. Mas, acredite em mim, elas nunca levam a lugar nenhum.
O investigador ergueu os olhos do bloco de anotações e disse:
— Vamos espalhar a notícia, claro, mas ela não pode ser obrigada a voltar para casa; vocês não devem necessariamente esperar que ela volte a morar com vocês em um futuro próximo.
— Eu não quero ela em nossa casa. — A Sra. Spiegelman levou um lenço aos olhos, embora eu não ouvisse nenhum sinal de choro em sua voz. — Eu sei que isso é terrível, mas é a verdade.
— Deb — disse minha mãe com sua voz de terapeuta.
A Sra. Spiegelman apenas balançou a cabeça ligeiramente.
— O que mais a gente pode fazer? Avisamos o investigador. Demos queixa. Ela já é adulta, Connie.
— Ela é sua adulta — disse minha mãe, mantendo a calma.
— Ah, por favor, Connie. Veja bem, é tão terrível assim para a gente preferir que ela fique fora de casa? Claro que é. Mas ela é terrível! Como se procura alguém que proclama que não vai ser encontrada, que sempre deixa pistas que não levam a lugar nenhum, que foge o tempo todo? Não dá!
Minha mãe e meu pai trocaram um olhar, e então o investigador falou comigo:
— Filho, será que a gente pode conversar em particular?
Concordei.
Fomos para o quarto de meus pais, ele em uma poltrona e eu sentado na beira da cama.
— Filho — começou ele ao se sentar —, permita-me lhe dar um conselho: nunca trabalhe para o governo. Porque, quando você trabalha para o governo, você trabalha para as pessoas. E, quando você trabalha para as pessoas, precisa interagir com elas, até mesmo com gente como os Spiegelman.
Eu meio que ri.
— Vou ser sincero com você, filho. Aqueles dois sabem como criar um filho tanto quanto eu sei fazer dieta. Já trabalhei com eles, e não gosto deles. Não ligo se você vai contar a eles onde ela está, mas gostaria que me contasse.
— Eu não sei — falei. — De verdade.
— Filho, eu tenho pensando nessa menina. As coisas que ela faz: invadir a Disney World, por exemplo, não é? Ir para o Mississippi e deixa pistas em uma sopa de letrinhas. Organizar uma campanha gigantesca para jogar papel higiênico na casa dos outros.
— Como você sabe disso?
Dois anos antes, Margo organizara uma farra do papel higiênico em duzentas casas em uma única noite. Nem preciso dizer que não fui convidado para a aventura.
— Trabalhei no caso. Então, filho, o ponto no qual eu gostaria que você me ajudasse: quem planeja essas coisas? Esses planos malucos? Ela é uma porta-voz, maluca o suficiente para executá-los. Mas quem os elabora? Quem está por aí, sentado diante de um bloquinho de anotações repleto de diagramas descobrindo quanto papel higiênico é necessário para cobrir uma tonelada de casas?
— Ela, acho.
— Mas talvez ela tenha um parceiro, alguém que a ajude a fazer todas essas coisas grandes e geniais, e talvez não seja a pessoa mais óbvia, como um melhor amigo ou o namorado. Talvez seja alguém em quem você não pensaria de imediato — disse ele e respirou fundo.
Ele estava prestes a dizer mais alguma coisa quando o interrompi:
— Eu não sei onde ela está. Juro por Deus.
— Só estava me certificando, filho. De qualquer modo, de alguma coisa você sabe, não é? Então vamos começar por aí.
Eu contei tudo. Confiei no cara. Ele anotou algumas coisas enquanto eu falava, mas nada muito detalhado. Havia algo ali, naquela necessidade de contar tudo a ele e de ele anotar no bloquinho, na incompreensão por parte dos pais dela — algo naquilo tudo tornou concreta para mim, pela primeira vez, a possibilidade de o sumiço dela ser definitivo. Senti a preocupação arrebatar minha respiração quando parei de falar.
O investigador não disse nada por um tempo. Ele apenas se inclinou para a frente na poltrona e olhou para além de mim até ver o que esperava ver, e então começou a falar:
— Escute, filho. O negócio é o seguinte: algumas pessoas, normalmente as meninas, têm o espírito livre, não se dão bem com os pais. Esses adolescentes são como balões de hélio presos por um barbante. Eles fazem força na direção oposta ao barbante e fazem mais força, até que algo acontece, o barbante se rompe e eles vão embora, voando. E talvez a gente nunca mais os veja. Eles pousam no Canadá ou algo assim, começam a trabalhar em um restaurante, e, antes que se deem conta, o balão passou trinta anos miseráveis na mesma lanchonete servindo café. Ou talvez daqui a uns três ou quatro anos, ou três ou quatro dias, os ventos dominantes tragam o balão de volta para casa, seja porque ele precisa de dinheiro ou porque tomou juízo, ou porque sente falta do irmão caçula. Mas preste atenção, filho, o barbante sempre arrebenta.
— É, mas…
— Ainda não terminei, filho. O problema com esses balões é que existem muitos deles. O céu está lotado deles, esbarrando uns nos outros enquanto voam por aí, e, de um jeito ou de outro, todos esses malditos balões acabam na minha mesa, e depois de um tempo um sujeito acaba ficando desanimado. Balões para todos os lados, e cada um deles com uma mãe ou um pai ou, Deus me livre, os dois, e depois de um tempo não se consegue mais enxergá-los individualmente. Você olha para todos aqueles balões lá em cima e consegue ver todos eles, mas não consegue enxergar apenas um. — Ele fez uma pausa e inspirou profundamente, como se tivesse acabado de se dar conta de alguma coisa. — Mas de vez em quando você conversa com um garoto cabeludo e de olhos arregalados e se sente inclinado a mentir para ele, pois ele parece ser um garoto legal. E você se sente mal por ele, porque a única coisa pior do que o céu cheio de balões que você vê é o que ele vê: um céu azul imenso com apenas um balão. Porém, uma vez que aquele barbante se rompe, filho, você não pode remendá-lo. Compreende o que estou dizendo?
Fiz que sim com cabeça, embora não tivesse certeza de tê-lo compreendido de verdade.
Ele ficou de pé e disse:
— Mas acho que ela não vai demorar a voltar. Se isso for de alguma ajuda.
Gostei da alegoria de Margo como um balão, mas achei que, em sua ânsia por ser poético, o investigador vira mais preocupação em mim do que a pontada que eu sentia de fato. Eu sabia que ela iria voltar. Ela iria murchar e voltar para Jefferson Park. Ela sempre voltava.


Segui o investigador de volta para a sala de jantar, e então ele disse que queria voltar à casa dos Spiegelman para dar uma olhada no quarto dela. A Sra. Spiegelman me deu um abraço e disse:
— Você sempre foi um menino tão bom. Sinto muito que você tenha se envolvido em toda essa confusão.
O Sr. Spiegelman apertou a minha mão e eles saíram. Assim que a porta se fechou, meu pai exclamou:
— Uau!
— Uau! — concordou mamãe. — A dinâmica social é complicada ali, não é, filho?
— Eles são meio babacas — falei.
Meus pais sempre gostavam quando eu xingava assim na frente deles. Dava para notar prazer no rosto deles. Significava que eu confiava neles, que eu era eu mesmo na frente deles. Mas, ainda assim, eles pareciam tristes.
— Os pais de Margo sofrem de um trauma narcisístico grave toda vez que ela apronta — disse meu pai.
— Isso impede que eles desempenhem seu papel como pais de forma eficaz — acrescentou minha mãe.
— Eles são uns babacas — repeti.
— Na verdade — disse meu pai —, provavelmente eles têm razão. Ela na certa precisa de atenção. E Deus é testemunha, eu também precisaria de atenção se tivesse aqueles dois como pais.
— Quando ela voltar — disse minha mãe —, vai ficar arrasada. Ser abandonada desse jeito! Excluída quando sua maior necessidade é ser amada.
— Talvez ela pudesse morar com a gente quando voltasse — falei, e no mesmo instante me dei conta de como aquela ideia era fantasticamente perfeita.
Os olhos de minha mãe também se iluminaram, mas então ela percebeu a expressão de papai e me respondeu com seu tom contido de sempre:
— Bem, é claro que ela seria bem-vinda, mas isso envolveria outros desafios, como ficar porta a porta com os Spielgeman. Mas, quando ela voltar ao colégio, por favor, diga que é bem-vinda aqui e que, se ela não quiser ficar conosco, existem várias opções disponíveis para ela, e que ficaríamos muito felizes de conversar a respeito.
Ben se levantou, seu cabelo parecendo desafiar nossa compreensão primordial do poder que a força da gravidade exerce sobre a matéria.
— Sr. e Sra. Jacobsen, que prazer!
— Bom dia, Ben. Eu não sabia que você ia dormir aqui.
— Nem eu, na verdade — disse ele. — Aconteceu alguma coisa?
Contei para Ben a respeito do investigador e dos Spiegelman, e que Margo tecnicamente era uma adulta desaparecida. Quando terminei, ele fez que sim com a cabeça e disse:
— A gente devia conversar a respeito durante uma boa e velha partida de Resurrection.
Eu sorri e o segui de volta para o quarto.
Radar chegou logo depois e, assim que ele apareceu, fui expulso do time, pois estávamos diante de uma missão difícil, e, apesar de eu ser o único que de fato tinha o jogo, eu não era muito bom em Resurrection.
Enquanto eu os via atravessar uma estação espacial infestada de demônios, Ben dizia:
— Olhe o goblin, Radar, o goblin.
— Tô vendo.
— Venha aqui, seu filho da mãe — disse Ben, torcendo o controle com as mãos. — O papai aqui vai mandar você num barco para o outro lado do rio Estige.
— Você acabou de dar uma de machão usando mitologia grega? — perguntei.
Radar riu. Ben começou a esmagar os botões, gritando:
— Coma isso, seu goblin! Coma isso feito Zeus comeu Métis!
— Eu acho que na segunda ela já estará de volta — falei. — Não é bom perder muitos dias de aula, mesmo para Margo Roth Spiegelman. Talvez ela fique aqui até a formatura.
— Eu não entendo nem por que ela foi embora, foi só… monstro, canto inferior da tela, não, cara, use a pistola de laser… dor de amor? — respondeu Radar do jeito desligado de quem está jogando Resurrection. — Eu achava que ela… onde fica a cripta, é à esquerda… fosse imune a essas coisas.
— Não — comentei. — Acho que não foi isso. Não só isso, de qualquer forma. Ela meio que odeia Orlando, chamou de cidade de papel. Para dizer que tudo é tão falso e frágil. Acho que ela simplesmente queria umas férias disso tudo.
Olhei pela janela e imediatamente vi que alguém — o investigador, imaginei — tinha descido a persiana do quarto de Margo. Mas eu não estava vendo a persiana. Em vez disso, estava vendo um pôster em preto e branco colado atrás da persiana. Na foto, um homem de pé, os ombros levemente caídos, olhando para a frente. Um cigarro pendendo da boca. Uma guitarra pendurada no ombro, e palavras pintadas na guitarra: ESTA MÁQUINA MATA FASCISTAS.
— Tem alguma coisa na janela de Margo.
A música do jogo cessou e Radar e Ben se ajoelharam junto a mim, um de cada lado.
— Aquilo é novo? — perguntou Radar.
— Já vi a traseira daquela persiana um milhão de vezes — respondi —, mas nunca tinha visto aquele pôster.
— Estranho — disse Ben.
— Os pais de Margo disseram hoje de manhã que às vezes ela deixa pistas — falei. — Mas nada concreto o suficiente para encontrá-la antes de ela voltar para casa.
Radar já estava com seu tablet na mão, pesquisando a frase no Omnictionary:
— A foto é de Woody Guthrie. Um cantor de folk, 1912 a 1967. Cantava sobre a classe trabalhadora. “This Land Is Your Land”. Meio comuna. Hum, inspirado em Bob Dylan. — Radar tocou um trechinho de uma música dele, uma voz aguda e rouca cantando sobre sindicatos. — Vou mandar um e-mail para o cara que escreveu o artigo, ver se há alguma conexão óbvia entre Woody Guthrie e Margo — disse Radar.
— Não consigo imaginá-la gostando das músicas dele — comentei.
— Fala sério — disse Ben. — Esse cara parece o sapo Caco alcoólatra com câncer de garganta.
Radar abriu a janela, colocou a cabeça para fora e olhou para os dois lados.
— Embora, Q, sem dúvida ela tenha deixado isso para você. Quer dizer, ela sabe de mais alguém que consiga ver essa janela?
— O modo como ele está olhando para a gente — acrescentou Ben depois de algum tempo —, é como se dissesse: “Preste atenção em mim.” E a cabeça dele desse jeito, sabe? Não parece que ele está em um palco; ele está de pé na soleira de uma porta ou algo assim.
— Acho que ele quer que a gente entre — disse eu.

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