quinta-feira, 24 de julho de 2014

10° Capitulo (2 p) - Cidades de Papel

Ben e Radar me deixaram em casa — apesar de terem matado aula, não podiam se dar ao luxo de faltar ao ensaio.
Permaneci sentado diante do “Canção de mim mesmo” por muito tempo e, pela décima vez, tentei ler o poema inteiro desde o início, mas o problema é que ele tem pelo menos umas oitenta páginas, além de ser confuso e repetitivo, e, embora eu entendesse cada palavra, não conseguia compreendê-lo por inteiro. Mesmo sabendo que as partes grifadas eram provavelmente as mais importantes, eu queria descobrir se aquele poema era um bilhete suicida. Mas não conseguia entender nada.
Já estava na décima página daquela maluquice quando fiquei tão nervoso que resolvi ligar para o investigador. Catei o cartão dele no bolso de uma bermuda na pilha de roupa suja. Ele atendeu ao segundo toque.
— Warren.
— Oi, bem, aqui é Quentin Jacobsen. Sou amigo de Margo Roth Spiegelman.
— Claro, filho, eu me lembro. E aí?
Contei a ele a respeito das pistas, do centro comercial abandonado e das cidades de papel, de que ela havia chamado Orlando de cidade de papel, no singular, quando estava lá no alto do SunTrust, de que ela dissera não querer ser encontrada, sobre encontrá-la sob a sola das botas.
Ele nem chegou a me dizer para não invadir prédios abandonados ou a me perguntar o que eu estava fazendo em um prédio abandonado às dez da manhã, quando deveria estar na escola. Apenas esperou que eu terminasse de falar e disse:
— Deus do céu, meu filho, você é praticamente um investigador. Só precisa de uma arma, instinto e três ex-mulheres. E aí, qual é a sua teoria?
— Estou com medo de que ela tenha, hum… se matado.
— Nunca me passou pela cabeça que ela pudesse ter feito algo além de fugir, filho. Entendo seu ponto de vista, mas você tem que se lembrar de que ela já fez isso antes. Estou falando das pistas. Elas dão um toque dramático a toda essa empreitada. Falando sério, filho, se ela quisesse que você a encontrasse, viva ou morta, você já a teria encontrado.
— Mas você não…
— Filho, o pior de tudo é que ela é maior de idade, tem livre-arbítrio, entendeu? Deixe-me dar um conselho: espere-a voltar para casa. Digo, em algum momento você precisa parar de olhar para o céu, ou um belo dia, quando olhar para baixo novamente, vai se dar conta de que também saiu flutuando por aí.


Desliguei o telefone sentindo um gosto ruim na boca — percebi que a poesia de Warren não me levaria até Margo.
Continuei pensando nas linhas que ela havia grifado ao final do poema: “Me entrego à terra pra crescer da relva que amo, / Se me quiser de novo me procure sob a sola de suas botas.” A relva, descreve Whitman logo nas primeiras páginas, é “a cabeleira comprida e bonita dos túmulos”. Mas onde estavam os túmulos? Onde estavam as cidades de papel?
Entrei no Omnictionary para ver se ele sabia mais do que eu sobre “cidades de papel”. Havia um artigo extremamente ponderado e útil criado por um usuário chamado rabodegambá:
“Uma Cidade de Papel é uma cidade que possui uma fábrica de papel.” Esse era o problema do Omnictionary: os artigos que Radar escrevia eram completos e muito úteis; já o material não editado de rabodegambá deixava muito a desejar. No entanto, quando resolvi pesquisar na internet, encontrei algo interessante escondido por volta do quadragésimo link, em um fórum sobre empreendimentos imobiliários no Kansas:
Ao que parece, o Madison Estates não vai ser construí​do; meu marido e eu compramos uma propriedade lá, mas alguém nos ligou esta semana para dizer que vão reembolsar nosso depósito porque não venderam unidades suficientes para financiar o projeto. Mais uma cidade de papel no Kansas! — Marge, de Cawker, KS Um bairro fantasma! Você vai para os bairros fantasmas e nunca mais voltará.
Respirei fundo e encarei o monitor por um tempo. Minha conclusão parecia inevitável. Mesmo com tudo arrebentado e decidido dentro de si, Margo não era capaz de desaparecer de vez. E tinha resolvido deixar seu corpo — deixá-lo para mim — em uma cópia de nosso bairro planejado, onde os primeiros fios dela se arrebentaram.
Ela dissera que não iria querer que seu corpo fosse encontrado por umas crianças quaisquer — e fazia todo sentido que, dentre todas as pessoas conhecidas, ela me escolhesse para encontrá-la. Ela não estaria me ferindo de um jeito novo. Eu já vivera aquilo. Tinha passado pela experiência no parque. Vi que Radar estava on-line e logo antes de clicar em seu nome recebi sua mensagem:
OMNICTIONARIAN96: E aí?
QRESURRECTION: Cidade de papel = bairro fantasma. Acho que ela quer que eu encontre o corpo dela. Porque ela acha que sou capaz de lidar com a situação. Porque a gente encontrou aquele cara morto quando era criança.
Mandei o link para ele.
OMNICTIONARIAN96: Peraí. Vou ver o link.
QRESURRECTION: Ok.
OMNICTIONARIAN96: Certo, não precisa ser tão mórbido. Você não tem certeza de nada. Acho que ela está bem.
QRESURRECTION: Não, você não acha.
OMNICTIONARIAN96: Tá legal, não acho. Mas concluir que alguém está vivo ou morto apenas com essas provas já é ir longe demais.
QRESURRECTION: É, tem razão. Vou me deitar agora. Meus pais vão chegar daqui a pouco.
Mas eu não conseguia me acalmar, então liguei para Ben, já na cama, e contei minha teoria.
— Que pesado, cara. Mas ela está bem. Tudo isso faz parte do jogo que ela criou.
— Você só está querendo ser gentil.
— Tanto faz — disse ele, suspirando. — É meio vacilo da parte dela zoar as três últimas semanas de aula, sabe? Ela deixou você todo nervoso, e deixou Lacey toda nervosa, e a formatura é daqui a três dias, sabe? Será que não dá para a gente ter uma formatura divertida?
— Você está falando sério? Ela pode estar morta, Ben.
— Ela não morreu. Ela é uma diva. Só quer chamar atenção. Quer dizer, eu sei que os pais dela são uns babacas, mas eles conhecem Margo melhor do que a gente, não é? E eles também acham isso.
— Às vezes você é tão idiota — falei.
— Ah, tanto faz, cara. Nós dois tivemos um dia cheio. Estresse demais. Tô vazando.
Minha vontade era ridicularizá-lo por usar uma gíria tão antiga, mas eu estava sem forças.
Depois de desligar o telefone, voltei para o computador e comecei a procurar por uma lista de bairros fantasmas na Flórida. Não tive sorte, mas, depois de um tempo procurando por “empreendimentos imobiliários abandonados” e “Grovepoint Acres” e coisas do tipo, elaborei uma lista de cinco lugares a três horas de distância do Jefferson Park. Imprimi um mapa da Flórida Central, o prendi na parede, acima do computador, e coloquei uma tachinha em cada um dos cinco locais.
Olhando o mapa, não consegui identificar um padrão entre eles. Estavam distribuídos aleatoriamente entre os subúrbios longínquos da Flórida, e eu levaria no mínimo uma semana para vasculhar todos eles.
Por que ela não me deixou um lugar específico? Todas aquelas pistas assustadoras pra diabo. Toda aquela insinuação de tragédia. Mas nenhum lugar. Nada a que se agarrar. Era como tentar escalar uma montanha de cascalho.


No dia seguinte, Ben me emprestou o PNC, já que ia passar o dia dirigindo a picape de Lacey e fazendo compras para a formatura. Então pela primeira vez não precisei ficar esperando à porta da sala de ensaios — o sinal do sétimo tempo tocou e corri para o carro dele.
Eu não tinha a mesma habilidade de Ben para fazer o PNC funcionar, então fui um dos primeiros a chegar ao estacionamento do último ano e um dos últimos a sair, mas enfim o motor pegou, e eu estava a caminho de Grovepoint Acres.
Saí da cidade pela Colonial Drive, dirigindo devagar, procurando por qualquer bairro fantasma que eu não tivesse achado na internet. Uma longa fila de carros se formou atrás de mim, e fiquei nervoso por prendê-los.
Me senti maravilhado com minha capacidade de ainda me preocupar com coisas tão triviais e ridículas, como, por exemplo, se o cara na picape atrás de mim me considerava um motorista cauteloso demais.
Eu queria que o desaparecimento de Margo tivesse causado alguma mudança em mim, mas na verdade eu não mudei nada.
À medida que a linha de carros serpenteava atrás de mim feito uma procissão funerária indesejada, eu me flagrei conversando com ela em voz alta.
Não vou perder o fio da meada. Vou encontrar você.


Estranhamente, falar com ela daquele jeito me acalmou. Fez com que eu não ficasse perdido em conjecturas. Cheguei mais uma vez à placa de madeira caída que indicava a entrada de Grovepoint Acres.
Quase pude ouvir os suspiros de alívio dos motoristas no engarrafamento atrás de mim quando virei à esquerda na rua sem saída asfaltada. Ela parecia uma entrada de garagem sem a casa. Deixei o PNC ligado e desci. De perto, dava para ver que Grovepoint Acres estava mais concluído do que parecera inicialmente. Duas ruas de terra terminando em uma rua em gota haviam sido escavadas no solo poeirento, embora estivessem tão erodidas que mal dava para perceber o contorno. Enquanto caminhava ao longo das duas ruas, eu sentia o calor em meu nariz a cada respiração. O sol escaldante dificultava meu progresso, mas eu conhecia a bela, se não mórbida, verdade: o calor faz a morte feder, e Grovepoint Acres cheirava a nada além de ar cozido e escape de carro — o acúmulo de tudo aquilo que exalamos mantido pela umidade junto à superfície.
Procurei por indícios de que ela tivesse passado por ali: pegadas, algo escrito na terra ou alguma lembrança. Mas, ao que parecia, eu era a primeira pessoa em anos a pisar naquelas ruas de terra e sem nome. O chão estava plano, e a vegetação ainda não havia crescido muito, então eu conseguia enxergar bem longe em todas as direções. Nada de barraca. Nada de fogueira. Nada de Margo.


Voltei para o PNC e dirigi pela I-4, e então segui para a região nordeste da cidade, para um local chamado Holly Meadows. Passei pelo lugar três vezes antes de finalmente encontrá-lo: a área era toda coberta por carvalhos e ranchos, e, como não havia placa indicando a entrada, Holly Meadows não se sobressaía.
No entanto, assim que avancei alguns metros por uma rua de terra atrás da fileira de carvalhos e pinheiros junto à estrada, vi que era tão desolado quanto Grovepoint Acres. A rua principal simplesmente evaporava lentamente em um campo de terra.
Não consegui distinguir mais nenhuma rua, mas, enquanto caminhava pelo lugar, vi jogadas pelo chão umas estacas de madeira pintadas com tinta spray. Provavelmente algum dia tinham servido para a marcação dos lotes. Não senti nenhum cheiro suspeito nem enxerguei nada de mais, mas mesmo assim um medo crescia em meu peito.
A princípio, não soube bem por quê, mas depois percebi: quando eles limparam a área para construção, deixaram um único carvalho vivo no fundo do terreno. E a árvore retorcida com seus galhos espessos se assemelhava tanto àquela onde havíamos encontrado Robert Joyner em Jefferson Park que cheguei a ter certeza de que ela estaria ali, atrás do tronco.
E, pela primeira vez, tive que imaginar a cena: Margo Roth Spiegelman jogada em uma árvore, os olhos silenciosos, o sangue escuro escorrendo da boca, toda inchada e destruída porque eu tinha demorado demais para encontrá-la. Ela havia confiado em mim para encontrá-la antes. Ela havia confiado sua última noite a mim. E eu tinha falhado. E, muito embora o ar cheirasse a nada mais do que promessa de chuva, eu estava certo de que a havia encontrado. Mas não. Era só uma árvore, sozinha no meio da poeira cinzenta.
Sentei-me recostado nela e tentei recuperar o fôlego. Odiava o fato de estar sozinho. Odiava aquilo. Se ela achava que Robert Joyner havia me preparado, estava enganada. Eu não conhecia Robert Joyner. Eu não amava Robert Joyner.
Soquei a terra com os punhos e fiquei ali, batendo e esmurrando sem parar, a areia se espalhando pelas mãos até que eu cheguei às raízes da árvore, e ainda assim continuei, a dor vibrando por minhas palmas e pulsos.
Até então eu não havia chorado por Margo, mas enfim chorei, golpeando o chão e gritando porque não havia ninguém para me ouvir: eu sentia saudades dela, eu sentia saudades dela, eu sentia saudades dela, eu sinto saudades dela.
Continuei ali, mesmo depois de meus braços se cansarem e os olhos secarem, sentado, pensando nela até a luz do dia ficar cinza.

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