terça-feira, 29 de julho de 2014

16° Capitulo (2p) - Cidades de Papel

O relógio sempre foi um castigo, mas sentir que eu estava cada vez mais próximo de desvendar o mistério fez com que o tempo parasse por completo na terça-feira. Todos nós resolvemos ir até o centro comercial abandonado logo depois da aula, e a espera foi insuportável.
Quando o sinal finalmente soou ao final da aula de inglês, desci correndo as escadas, e já estava quase no estacionamento quando lembrei que a gente não podia ir embora antes de Ben e Radar saírem do ensaio da banda. Fiquei sentado do lado de fora da sala de ensaios e tirei uma fatia de pizza enrolada em um guardanapo da mochila, onde estava guardada desde a hora do almoço.
Já tinha comido um quarto da pizza quando Lacey Pemberton se sentou a meu lado. Ofereci uma mordida. Ela recusou. Conversamos sobre Margo, claro. A única coisa que tínhamos em comum.
— O que preciso descobrir — expliquei, limpando as mãos na calça jeans — é um lugar. Mas nem sei se estou na direção certa com essa história dos bairros fantasmas. Às vezes acho que estamos seguindo um caminho completamente furado.
— É, sei lá. Para falar a verdade, o que eu quero mesmo é descobrir coisas a respeito dela. Coisas que eu não sabia. Eu não fazia ideia de quem ela era. Sinceramente, nunca pensei nela como nada mais do que minha amiga linda e meio doida que faz um monte de coisas lindas e meio doidas.
— Pois é, mas ela não inventava as coisas que fazia do nada — falei. — Quer dizer, todas as aventuras dela tinham uma certa… Sei lá.
— Elegância — disse Lacey. — Ela é a única pessoa que eu conheço que não é, tipo, adulta e é tão elegante.
— É.
— Então é difícil imaginá-la em um lugar nojento, escuro e cheio de poeira.
— É — concordei. — E cheio de ratos.
Lacey levou os joelhos até o peito e ficou em posição fetal.
— Eca. Isso é tão diferente de Margo.


Por algum motivo, Lacey ficou no banco do carona, embora fosse a mais baixa dentre todos nós. Ben estava dirigindo. Suspirei alto quando Radar se sentou ao meu lado, pegou o tablet e começou a trabalhar no Omnictionary.
— Estou só deletando um vandalismo na página do Chuck Norris — disse ele. — Por exemplo, embora eu acredite que Chuck Norris seja especialista em roundhouse kick, não acho muito correto dizer que “as lágrimas dele têm o poder de curar o câncer, mas infelizmente ele nunca chorou”. Enfim, eliminar vandalismo só utiliza quatro por cento do meu cérebro.
Eu sabia que Radar estava tentando me fazer rir, mas eu só queria falar sobre um assunto naquele momento.
— Não estou convencido de que ela esteja em um bairro fantasma. Talvez não seja nem isso que ela tenha tentado dizer com “cidades de papel”, sabia? Existem muitas pistas de lugares, mas nada específico.
Radar ergueu os olhos por um segundo e então voltou sua atenção para o aparelho.
— Na verdade acho que ela está bem longe, visitando alguma atração turística ridícula, enganando-se ao pensar que deixou pistas suficientes para mostrar aonde foi. Então acho que ela está, sei lá, em Omaha, no Nebraska, vendo a maior bola de selos do mundo, ou em Minnesota, conferindo a maior bola de barbantes do mundo.
— Então você acha que Margo está em uma viagem pelo país em busca das Maiores Bolas do Mundo? — perguntou Ben, olhando pelo retrovisor.
Radar concordou com a cabeça.
— Ora — continuou Ben —, então alguém devia avisar a ela para voltar para casa, pois as maiores bolas do mundo estão bem aqui em Orlando, na Flórida. E ficam num local especial conhecido como “meu escroto”.
Radar riu, e Ben continuou:
— Sério, minhas bolas são tão grandes que quando alguém pede uma porção de batatas fritas no McDonald’s pode escolher entre quatro tamanhos: pequeno, médio, grande e bolas do Ben.
— Não. Tem. Graça — disse Lacey para Ben.
— Foi mal — murmurou Ben. — Acho que ela está aqui em Orlando. Vendo a gente procurar por ela. E vendo os pais não fazerem nada.
— Ainda acho que ela foi para Nova York — disse Lacey.
— Tudo é possível — falei.
Uma Margo para cada um de nós. E todas elas eram mais espelho do que janela.


O centro comercial estava do mesmo jeito de dois dias antes. Ben estacionou e eu os levei até a porta dos fundos do escritório.
Quando todos entraram, falei com calma:
— Não acendam as lanternas ainda. Deem um tempo para os olhos se acostumarem à falta de luz. — Senti unhas cravando em meu braço e sussurrei: — Está tudo bem, Lace.
— Opa — disse ela. — Braço errado. — E percebi que ela estava procurando pelo braço de Ben.
Lentamente, a sala foi entrando em foco, cinzenta e um tanto nebulosa. Dava para ver as mesas alinhadas ainda aguardando pelos funcionários.
Acendi minha lanterna, e cada um acendeu a sua também. Ben e Lacey permaneceram juntos, caminhando em direção à Caverna do Troll para ver as outras salas. Radar foi comigo até a mesa de Margo. Ele se ajoelhou para olhar de perto o calendário de papel congelado no mês de junho. Eu estava me abaixando ao lado dele quando ouvi passos velozes em nossa direção.
— Alguém — sussurrou Ben com urgência.
Ele se enfiou debaixo da mesa de Margo e puxou Lacey consigo.
— O quê? Onde?
— Na sala ao lado! — disse ele. — Usando máscaras. Parecem policiais. Precisamos ir embora.
Radar iluminou a Caverna do Troll com a lanterna, mas Ben a derrubou com força no chão.
— Hora. De. Cair. Fora.
Lacey estava olhando para mim, os olhos arregalados, e provavelmente com um pouco de raiva por eu ter prometido que aquele lugar era seguro.
— Tudo bem — sussurrei. — Tudo bem, todo mundo para fora, pela porta. Com calma e bem rápido.
Eu tinha acabado de dar o primeiro passo quando ouvi uma voz retumbante berrar: — QUEM ESTÁ AÍ?! Merda.
— Hum — falei —, só estamos dando uma olhada.
Que coisa mais bizarramente idiota de se dizer! Uma luz branca vinda da Caverna do Troll me cegou. Talvez fosse Deus em pessoa.
— Quais são as suas intenções? — A voz tinha um sotaque britânico meio forçado.
Ben se pôs a meu lado. Era bom não estar sozinho.
— Estamos investigando um desaparecimento — disse ele, confiante. — Não íamos quebrar nada.
A luz se apagou e eu pisquei para me livrar da cegueira até distinguir três pessoas, todas de calça jeans, camiseta e máscara com dois filtros circulares. Um deles puxou a máscara até a testa e nos encarou. Reconheci o cavanhaque e a boca fina e comprida.
— Gus? — perguntou Lacey, colocando-se de pé. Era o segurança do SunTrust.
— Lacey Pemberton. Meu Deus! O que está fazendo aqui? E sem máscara? Este lugar tem uma tonelada de amianto.
— O que você está fazendo aqui?
— Explorando — respondeu ele.
De algum modo, Ben se sentiu confiante o suficiente para caminhar até os outros homens e oferecer um aperto de mão. Eles se apresentaram como Ace e Carpenter. Imaginei que não fossem seus nomes verdadeiros. Puxamos algumas das cadeiras de rodinhas e nos sentamos em uma espécie de círculo.
— Foram vocês que quebraram o compensado? — perguntou Gus.
— Bem… fui eu — admitiu Ben.
— Tapamos com fita crepe porque não queríamos que mais ninguém entrasse. Se as pessoas vissem uma entrada da rodovia, isso aqui iria ficar cheio de gente que não saca nada de exploração. Mendigos, viciados em crack e tudo o mais.
— Então vocês… hum… sabiam que Margo vinha aqui? — perguntei, me aproximando deles.
Antes que Gus pudesse responder, Ace falou através da máscara. Sua voz soou meio esquisita, mas fácil de compreender:
— Cara, Margo vinha aqui o tempo todo. A gente só vem algumas vezes por ano; está cheio de amianto e, além do mais, nem é tão legal assim. Mas provavelmente vimos Margo, tipo, mais de metade das vezes em que estivemos aqui nos últimos dois anos. Ela era gostosa, não era?
— Era? — perguntou Lacey enfaticamente.
— Ela fugiu, não foi?
— O que você sabe a respeito? — perguntou Lacey.
— Nada, caramba. Eu vi Margo com ele — disse Gus, apontando para mim — há umas duas semanas. E depois ouvi dizer que ela fugiu. Só agora eu me toquei de que talvez ela estivesse aqui, então viemos dar uma olhada.
— Nunca entendi por que ela gostava tanto deste lugar. Não tem nada aqui — disse Carpenter.
— Nem é legal de explorar.
— O que você quer dizer com explorar? — perguntou Lacey a Gus.
— Exploração urbana. Nós entramos em prédios abandonados, exploramos o lugar e fotografamos tudo. Não pegamos nada; não deixamos nada para trás. Somos apenas observadores.
— É um hobby — disse Ace. — Gus deixava que Margo viesse com a gente quando ainda estávamos no colégio.
— Margo tinha um senso de observação e tanto, embora só tivesse treze anos — disse Gus. — Achava um jeito de entrar em qualquer lugar. Na época era uma coisa eventual, mas agora a gente faz umas três explorações por semana. Existem lugares para explorar em tudo o que é canto. Tem um hospital abandonado em Clearwater que é o máximo. Muito maneiro. Dá para ver onde amarravam os malucos para dar eletrochoque. E tem um presídio velho perto daqui. Mas ela não gostava muito de explorar. Ela gostava de entrar nos lugares, mas aí só queria ficar lá dentro.
— Pois é, nossa, como isso era irritante — acrescentou Ace.
— Ela nem sequer tirava fotos — esclareceu Carpenter. — Nem dava uma olhada ao redor para procurar alguma coisa. Margo só queria entrar e, sei lá, ficar lá, sentada. Vocês se lembram do caderninho preto dela? Ela ficava sentada em um canto escrevendo, como se estivesse em casa fazendo o dever da escola ou sei lá o quê.
— Para falar a verdade — disse Gus —, ela nunca entendeu de verdade o espírito da coisa. A aventura. No fundo, parecia deprimida pra cacete.
Eu queria deixar que eles continuassem falando, porque achava que tudo o que dissessem me ajudaria a visualizar Margo. Mas, de repente, Lacey ficou de pé e chutou a cadeira atrás de si.
— E você nunca pensou em perguntar por que no fundo ela parecia deprimida pra cacete? Ou por que ela passava o tempo nesses lugares sinistros? Isso nunca o incomodou?
Ela estava de pé, se curvando sobre ele, gritando, e ele se levantou também, ficando uns quinze centímetros mais alto que ela, e então Carpenter falou:
— Que saco, alguém faz o favor de calar a boca dessa vaca?
— Ah, pode parar! — gritou Ben e, antes mesmo que eu pudesse entender o que estava acontecendo, empurrou Carpenter, que caiu desajeitadamente da cadeira e bateu com o ombro no chão.
Ben subiu nele e começou a socá-lo, furioso e meio sem jeito, batendo na máscara e gritando:
— ELA NÃO É VACA. A VACA AQUI É VOCÊ!
Fiquei de pé aos tropeços e agarrei um dos braços de Ben, enquanto Radar agarrava o outro. Nós o afastamos, mas ele continuou berrando:
— Eu tô com muita raiva! E eu estava gostando de bater nele! Me deixe bater nele!
— Ben — falei, tentando transmitir calma, tentando soar como minha mãe. — Ben, já chega. Ele já aprendeu a lição.
Gus e Ace levantaram Carpenter, e Gus disse:
— Caramba, a gente já está indo embora, ok? O lugar é todo de vocês.
Ace pegou a máquina fotográfica e eles seguiram apressados para a saída.
Lacey começou a explicar de onde conhecia o sujeito:
— Ele estava no último ano quando a gente…
Porém, eu fiz um sinal com a mão para que ela parasse de falar. Nada daquilo importava. Radar sabia o que era importante. Ele de imediato voltou a observar o calendário, os olhos grudados no papel.
— Acho que ela não escreveu nada no mês de maio — disse ele. — O papel é bem fino e não dá para ver marca alguma. Mas é impossível ter certeza.
Ele continuou procurando por mais pistas, e eu notei as luzes das lanternas de Lacey e Ben sumindo à medida que eles atravessavam a Caverna do Troll. No entanto, fiquei ajoelhado no meio do escritório, apenas pensando nela. E a imaginei seguindo aqueles caras, quatro anos mais velhos que ela, e invadindo prédios abandonados.
Aquela era a Margo que eu conhecia. Dentro dos prédios, porém, ela já não era a Margo que eu sempre havia imaginado. Enquanto eles se entregavam à exploração, tiravam fotos e davam umas voltas pelo lugar, Margo se sentava no chão e escrevia.
— Q! Achamos alguma coisa! — gritou Ben da sala ao lado.
Sequei o suor do rosto nas mangas da camisa e me apoiei na mesa de Margo para me levantar. Cruzei a sala, me enfiei pela Caverna do Troll e caminhei em direção às três lanternas que iluminavam a parede acima do carpete enrolado.
— Veja — disse Ben, usando a luz da lanterna para desenhar um quadrado na parede. — Sabe esses buraquinhos de que você falou?
— Sei.
— Com certeza tinha alguma lembrança presa aqui. Cartões-postais ou fotos, talvez, pela distância entre os buracos. Coisas que ela deve ter levado quando foi embora — disse ele.
— É, talvez — falei. — Queria encontrar o tal caderno que Gus mencionou.
— Quando ele falou aquilo, eu me lembrei do caderno — disse Lacey, o feixe de minha lanterna iluminando apenas as pernas dela. — Ela sempre andava com ele. Mas nunca a vi escrevendo ali, então eu achava que fosse uma agenda ou algo assim. Nossa, eu nunca cheguei a perguntar. Fiquei com tanta raiva de Gus, e ele nem mesmo era amigo dela. Mas que perguntas eu mesma já fiz?
— De qualquer forma, ela não teria respondido — falei.
Não era justo agir como se Margo não tivesse contribuído para o próprio obscurecimento.
Caminhamos pelo lugar por mais uma hora e, no momento em que tive certeza de que tudo aquilo era perda de tempo, minha lanterna por acaso passou pelos panfletos de empreendimentos imobiliários, os mesmos que tinham sido usados para montar o castelo de cartas que vimos quando estivemos ali pela primeira vez. Um dos panfletos anunciava o Grovepoint Acres. Fiquei com a respiração presa enquanto espalhei os outros panfletos pela mesa. Corri até minha mochila largada junto à entrada e voltei com uma caneta e um caderno, então anotei os nomes de todos os loteamentos dos anúncios. De cara reconheci um deles: Collier Farms — um dos dois bairros fantasmas que eu ainda não tinha visitado de minha lista. Terminei de copiar os nomes e coloquei o caderno de volta na mochila.
Posso ser chamado de egoísta, mas, se eu conseguisse encontrá-la, queria fazer isso sozinho.

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