terça-feira, 22 de julho de 2014

7° Capitulo - Cidades de Papel

Sentados na minivan, com a chave na ignição, porém com o motor desligado, ela perguntou:
— A que horas seus pais acordam, a propósito?
— Não sei, lá pelas 6h15? — Eram 3h51. — Quer dizer, ainda temos duas horas e já concluímos a parte nove.
— Eu sei, mas guardei a tarefa mais difícil para o final. De qualquer modo, a gente vai dar conta de tudo. Parte dez: é a vez de Q escolher uma vítima.
— O quê?
— Já escolhi o castigo. Agora é só você escolher em quem vamos fazer valer nossa poderosa lei.
— Com quem vamos fazer valer nossa lei — corrigi, e ela balançou a cabeça com nojo. — Não há ninguém com quem eu queira fazer valer nossa poderosa lei — falei, e era verdade. Sempre achei que só pessoas importantes tinham inimigos. Por exemplo: historicamente, a Alemanha tem mais inimigos do que Luxemburgo. Margo Roth Spiegelman era a Alemanha. E a Inglaterra. E os Estados Unidos. E a Rússia czarista. Eu, eu era Luxemburgo. Só na minha, criando minhas ovelhas e cantando à tirolesa.
— E o Chuck? — perguntou ela.
— Hum.
Chuck Parson tinha sido uma pessoa bem horrível em todos os anos antes de seu reinado. Além do fiasco da esteira da cantina, uma vez ele me agarrou do lado de fora do colégio enquanto eu esperava pelo ônibus e torceu meu braço enquan​to gritava: — Diga que é uma bichinha.
Era disso que ele era capaz, insultos do tipo “eu tenho o vocabulário de um moleque de doze anos, então não espere de mim uma ampla variedade de xingamentos”. E, mesmo sendo ridiculamente infantil, no final eu tive que dizer que era uma bichinha, o que realmente me incomodou porque 1) Eu acho que ninguém deveria usar essa palavra, muito menos eu, 2) Por acaso, eu não sou gay, e além do mais, 3) Chuck Parson achava que chamar alguém de bichinha era a pior humilhação do mundo, embora eu não veja problema algum em ser gay, e era exatamente isso que eu tentava explicar enquanto ele torcia meu braço mais e mais em direção ao ombro e dizia:
— Se você tem tanto orgulho de ser uma bichinha, por que não admite logo que é uma bichinha, sua bichinha?
Obviamente, Chuck Parson não era nenhum Aristóteles quando o assunto era lógica. Mas ele tinha um metro e noventa e pesava cento e vinte quilos, o que conta para alguma coisa.
— Você poderia armar para Chuck — reconheci.
Liguei o carro e comecei a dirigir em direção à rodovia. Eu não sabia para onde estávamos indo, mas tinha certeza de que não ficaríamos no centro da cidade.
— Lembra o baile na Escola de Dança Crown? — perguntou ela. — Eu estava pensando naquela noite.
— Ui. É.
— Foi mal por aquilo, aliás. Não tenho ideia de por que caí na dele.
— É. Já passou — respondi, recordando, no entanto, como ficara puto da vida no baile da Escola de Dança Crown. E acrescentei: — É. Chuck Parson. Você sabe onde ele mora?
— Eu sabia que podia ativar seu lado vingativo. Ele mora em College Park. Pegue a saída em Princeton. — Virei na rampa de acesso à rodovia e o fundo do carro bateu no asfalto. — Ei, cuidado — disse Margo. — Não vá danificar o Chrysler.


No sexto ano, um bando de alunos, incluindo Margo, Chuck e eu, foi obrigado pelos pais a fazer aula de dança de salão na Escola de Humilhação, Degradação e Dança Crown. Funcionava assim: os meninos ficavam de pé de um lado e as meninas do outro, e então a professora dizia que nós, os meninos, deveríamos ir até as meninas e dizer: “Me concede esta dança?”, e a menina responderia: “Sim”. As meninas eram proibidas de responder “não”.
Mas aí um dia — estávamos aprendendo foxtrote — Chuck Parson convenceu todas as meninas a dizerem “não” para mim. Para mais ninguém. Só para mim. Então caminhei até Mary Beth Shortz e disse:
— Me concede esta dança?
E ela disse “não”. E perguntei a outra menina, e a outra, e então perguntei para Margo, que também disse não, e a outra, e então comecei a chorar.
A única coisa que pode ser pior do que ser rejeitado em uma aula de dança é chorar por ser rejeitado em uma aula de dança, e a única coisa pior do que isso é chegar para a professora e dizer em meio às lágrimas:
— Todas as meninas estão dizendo não e elas não podem ​dizer não.
E é óbvio que fui chorando falar com a professora, e por isso passei a maior parte do ensino fundamental tentando superar a vergonha. Então, resumindo, por causa de Chuck Parson, eu nunca dancei foxtrote, o que não deveria ser uma coisa especialmente horrível para um aluno do sexto ano. E eu não estava mais chateado com aquilo nem com nada que ele tivesse feito comigo ao longo dos anos. Mas certamente não iria lamentar o sofrimento dele.
— Peraí, ele não vai saber que sou eu, vai?
— Não. Por quê?
— Não quero que ele pense que me importo o suficiente para fazer alguma coisa contra ele. — Pousei a mão no descanso entre as poltronas e Margo deu um tapinha de leve nela.
— Não se preocupe — disse ela. — Ele nunca vai saber que produto depilatório o atingiu.
— Acho que você não usou essa palavra corretamente, mas não sei o que quer dizer.
— Eu conheço uma palavra que você não conhece — cantarolou ela. — EU SOU A NOVA RAINHA DO VOCABULÁRIO! USURPEI SEU LUGAR!
— Soletre usurpei — pedi.
— Não — respondeu ela, rindo. — Não vou dar minha coroa de bandeja por causa de usurpei. Você vai ter que fazer melhor do que isso.
— Tudo bem — falei e sorri.


Dirigimos ao longo de College Park, um bairro que entrou para a história de Orlando porque quase todas as suas casas foram construídas há uns trinta anos. Margo não se lembrava do endereço exato de Chuck ou de como era a casa dele ou até mesmo em qual rua ficava (“Tenho quase noventa e cinco por cento de certeza de que fica na Vassar”).
Finalmente, depois de o Chrysler rodar por uns três quarteirões da Rua Vassar, Margo apontou para a esquerda e disse:
— Aquela.
— Tem certeza? — perguntei.
— Tipo uns noventa e sete vírgula dois por cento de certeza. Quer dizer, tenho quase certeza de que o quarto dele é ali. — Ela apontou. — Uma vez ele deu uma festa e, quando a polícia chegou, eu fugi pela janela dele. Tenho quase certeza de que é aquela janela.
— A gente pode acabar arrumando problema.
— Mas, se a janela estiver aberta, então não tem arrombamento. Só invasão. E a gente acabou de invadir o SunTrust e não foi um grande problema, foi?
— Você está me transformando em um criminoso. — Eu ri.
— A ideia é essa. Certo, utensílios: pegue o Veet, a tinta spray e a Vaselina.
— Ok.
Peguei tudo.
— Agora vê se não vai entrar em pânico, Q. A boa notícia é que Chuck dorme como um urso hibernando. Eu sei porque era da mesma turma de inglês que ele, e ele não acordava nem quando a Sra. Johnston o espancava com um exemplar de Jane Eyre. A gente vai subir até a janela dele, abrir, tirar os sapatos e entrar em silêncio, aí eu vou sacanear o Chuck. E então eu e você vamos correr em direções opostas e cobrir todas as maçanetas com Vaselina. Assim, mesmo que alguém acorde, eles vão ter um trabalho do caramba para sair da casa a tempo de pegar a gente. E aí a gente vai sacanear o Chuck um pouquinho mais, pintar a casa um pouco, e então vai embora. E boca fechada.
Levo a mão até a jugular, mas estou sorrindo.


Estávamos nos afastando do carro juntos quando Margo pegou minha mão, entrelaçou os dedos aos meus e apertou. Retribuí o aperto e dei uma olhada de relance para ela. Ela assentiu solenemente, e eu assenti de volta, e então ela soltou minha mão.
Escalamos até a janela. Subi cuidadosamente a esquadria de madeira. Ela rangeu bem baixinho, mas se abriu com um único movimento. Olhei para dentro. Estava escuro, mas dava para ver um corpo na cama.
A janela era um pouco alta para Margo, então juntei as mãos e ela pisou nelas, só de meias, daí eu a impulsionei para cima. O silêncio dela ao entrar na casa teria deixado um ninja com inveja.
Me ajeitei para pular lá dentro, passei a cabeça e os ombros pela janela e tentei, com uma ondulação complicada do tronco, me esgueirar feito uma lagarta para dentro do quarto. Teria funcionado perfeitamente se eu não tivesse batido o saco no parapeito, e doeu tanto que soltei um gemido, um erro daqueles. Uma lâmpada de cabeceira se acendeu. E ali, na cama, estava deitado um velho — definitivamente, não era Chuck Parson. Os olhos dele estavam arregalados de pavor; ele não disse uma palavra.
— Hum — disse Margo.
Pensei em fugir, correr de volta para o carro, mas, pelo bem de Margo, fiquei ali, metade dentro da casa, em uma linha paralela ao chão.
— Hum, acho que é a casa errada.
Ela se virou e olhou para mim com urgência. E só então eu me dei conta de que estava bloqueando a saída. Eu me joguei pela janela, agarrei meus tênis e saí correndo. Fomos de carro até o outro lado do College Park, para nos recompormos.
— Acho que nós dois somos culpados nessa — disse Margo.
— Hum, você escolheu a casa errada — falei.
— Ok, mas foi você quem fez barulho.
Ficamos em silêncio por um minuto, rodando em círculos, até que eu disse:
— A gente deve conseguir o endereço dele na internet. Radar tem uma senha para acessar o banco de dados do colégio.
— Genial — disse Margo.
Então telefonei para Radar, mas a ligação caiu diretamente na caixa postal. Pensei em ligar para a casa dele, mas os pais dele eram amigos dos meus, ou seja, não ia dar certo. Enfim, pensei em ligar para Ben. Ele não era Radar, mas sabia todas as senhas de Radar. Liguei. Caiu na caixa postal, mas só depois de tocar algumas vezes. Então liguei de novo. Caixa postal. Liguei de novo. Caixa postal.
E Margo falou enquanto eu discava de novo:
— Está na cara que ele não vai atender.
— Ah, ele vai atender. — E, depois de mais quatro chamadas, ele atendeu.
— Acho melhor você me dizer que tem onze gatinhas peladas na sua casa e que está me ligando para requisitar os serviços especiais que só o papai aqui pode oferecer.
— Preciso que você use o login de Radar para entrar no banco de dados dos alunos e consultar um endereço para mim. Chuck Parson.
— Não.
— Por favor — implorei.
— Não.
— Você vai ficar feliz por ter ajudado, Ben. Eu prometo.
— Ok, ok, já entrei. Eu estava acessando o banco de dados enquanto dizia não. Nunca deixo um amigo na mão. Rua Amherst, número quatro, dois, dois. Ei, por que você quer saber o endereço de Chuck Parson às quatro e vinte da manhã?
— Vá dormir, Benners.
— Vou registrar isso como um sonho — respondeu Ben, e desligou.


A Amherst ficava a uns dois quarteirões. Paramos em frente ao número quatrocentos e dezoito, pegamos os utensílios e atravessamos o gramado diante da casa de Chuck, o orvalho voando da grama para minhas panturrilhas.
Diante da janela dele, que por sorte era mais baixa do que a do Velho Aleatório, pulei silenciosamente para dentro da casa e puxei Margo para dentro.
Chuck Parson estava dormindo de barriga para cima. Margo caminhou em direção a ele, na ponta dos pés, e eu fiquei atrás dela, o coração martelando. Ele mataria a gente se acordasse.
Ela puxou o Veet, colocou um punhado do que parecia creme de barbear na mão e então, bem de leve e com cuidado, espalhou pela sobrancelha direita de Chuck. Ele sequer se mexeu. E então ela abriu a vaselina — a tampa fez um clique que pareceu ensurdecedor de tão alto, porém, mais uma vez, Chuck não demonstrou nem sinal de que iria acordar. Ela colocou um naco gigante na minha mão e nós seguimos para lados opostos da casa. Primeiro fui até a porta de entrada e passei vaselina na maçaneta, e depois lambuzei a maçaneta interna da porta aberta de um quarto e, com o mais leve dos ruídos, fechei a porta.
Finalmente retornei ao quarto de Chuck — Margo já estava lá —, e juntos fechamos a porta e lambuzamos a maçaneta até não podermos mais. Espalhamos a vaselina restante por todas as superfícies do quarto, torcendo para que aquilo dificultasse a abertura da janela depois que a fechássemos ao sair.
Margo deu uma conferida no relógio e ergueu dois dedos. Aguardamos. E durante aqueles dois minutos apenas nos encaramos, e eu fitei o azul dos olhos dela. Foi bom — no escuro e no silêncio, sem a possibilidade de eu dizer algo que estragasse o momento, os olhos dela me encarando de volta como se houvesse algo em mim que valesse a pena ser visto.
E então Margo acenou com a cabeça e eu andei em direção a Chuck. Enrolei a mão na camisa, do jeito que ela havia me mandado fazer, me inclinei para a frente e, com o máximo de leveza possível, esfreguei o dedo na testa dele rapidamente, removendo o Veet. Junto com o creme veio todo e qualquer cabelo que Chuck Parson um dia já teve na sobrancelha direita.
Eu estava de pé ao lado de Chuck, com a sobrancelha direita dele na camisa, quando seus olhos se abriram. Em um instante, Margo agarrou as cobertas e jogou nele, e quando olhei de novo a pequena ninja já tinha saído pela janela. Eu a segui o mais depressa que pude enquanto Chuck gritava:
— MAMÃE! PAPAI! LADRÃO, LADRÃO!
Eu queria dizer: A única coisa que a gente roubou foi sua sobrancelha, mas continuei mudo enquanto passava uma perna de cada vez pela janela. Quase caí em cima de Margo, que estava pichando um M no revestimento de PVC na lateral da casa, e então nós dois agarramos nossos tênis e disparamos para o carro. Quando me virei para olhar a casa, as luzes estavam acesas, mas ninguém estava do lado de fora ainda, uma prova da simplicidade genial de uma maçaneta bem lambuzada de vaselina.
Quando o Sr. (ou Sra., talvez, não dava para ver direito) Parson abriu as cortinas da sala e olhou para fora, estávamos dirigindo de ré em direção à Rua Princeton e à rodovia.
— Cara! — gritei. — Foi genial.
— Você viu? A cara dele sem a sobrancelha? Ele parece permanentemente em dúvida, não é? Tipo, “Ah é? Você está dizendo que eu só tenho uma sobrancelha? Até parece.” E eu adoro o fato de obrigarmos aquele babaca a decidir: é melhor raspar a esquerda ou pintar a direita? Adoro. E o jeito como ele chamou pela mamãe, chorão de merdinha.
— Espere aí, por que você o odeia?
— Eu não disse que odiava. Eu só o chamei de chorão de merdinha.
— Mas você sempre meio que foi amiga dele — falei, ou pelo menos eu achava que fosse.
— É, sim, eu sempre fui meio que amiga de um monte de gente — disse ela. Margo se inclinou dentro do carro e apoiou a cabeça em meu ombro magro, os cabelos escorrendo pelo meu pescoço. — Estou cansada.
— Cafeína? — propus.
Ela pegou a sacola e puxou uma lata de Mountain Dew para cada um de nós. Bebi a minha em dois goles.
— Agora a gente vai para o SeaWorld — disse ela. — Parte onze.
— A gente vai libertar Willy ou algo assim?
— Não. A gente vai até o SeaWorld, só isso. É o único parque temático que ainda não invadi.
— Não dá para invadir o SeaWorld — falei e parei o carro no estacionamento de uma loja de móveis, desligando o motor.
— A gente não tem muito tempo — argumentou ela, esticando-se para ligar o carro de novo.
Afastei sua mão.
— A gente não pode arrombar e invadir o SeaWorld — repeti.
— Ai, de novo essa história. — Ela parou e abriu outra lata de Mountain Dew. A lata refletiu a luz no rosto dela, e por um segundo eu a vi sorrindo por causa da frase que estava prestes a dizer: — A gente não vai arrombar nada. Não pense nisso como arrombar o SeaWorld. Pense que vamos visitar o SeaWorld de graça no meio da noite.

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