quinta-feira, 24 de julho de 2014

4° Capitulo ( 2 p) - Cidades de Papel

Da janela do meu quarto não dava para ver a porta da frente ou a garagem: para isso, precisávamos ir até a sala da tevê. Então, enquanto Ben continuava jogando Resurrection, Radar e eu fomos até lá e fingimos que assistíamos à tevê, porém estávamos olhando a casa dos Spiegelman pela janela, esperando que os pais de Margo saíssem.
O Crown Victoria preto do investigador Warren ainda estava na entrada da garagem deles. Ele saiu uns quinze minutos depois, mas nem a porta da garagem nem a porta da frente se abriram de novo durante a hora seguinte.
Radar e eu estávamos vendo uma comédia engraçadinha sobre maconheiros na HBO, e eu estava começando a embarcar no enredo quando Radar disse:
— A porta da garagem.
Pulei do sofá e me aproximei da janela, para ver bem quem estava no carro. O Sr. e a Sra. Spiegelman. Ruthie ainda estava em casa.
— Ben! — gritei.
Ele apareceu em um segundo e, assim que os Spiegelman dobraram na Jefferson Way em direção à Jefferson Road, nós saímos de casa correndo naquela manhã abafada.
Atravessamos o gramado da casa dos Spiegelman até a porta da frente. Toquei a campainha e ouvi as patas de Myrna Mountweazel derrapando no piso de madeira de lei, e então ela começou a latir feito louca, olhando para nós através do vitral. Ruthie abriu a porta. Ela era uma graça, devia ter uns onze anos.
— Oi, Ruthie.
— Oi, Quentin.
— Seus pais estão em casa?
— Eles acabaram de sair — disse ela —, foram ao Target. — Seus olhos eram grandes como os de Margo, só que cor de mel. Ela me encarou, os lábios tensos de preocupação.
— Você encontrou o policial?
— Encontrei — disse. — Ele parecia legal.
— Mamãe falou que é como se Margo tivesse ido para a faculdade antes da hora.
— É — respondi, pensando que a maneira mais simples de resolver um mistério era decidindo que não havia nenhum mistério a resolver. Mas naquele instante ficou claro para mim que ela havia deixado pistas. — Escute, Ruthie, a gente precisa dar uma olhada no quarto de Margo — falei. — Só que isso é tipo quando sua irmã pede a você para fazer uma coisa ultrassecreta. Estamos na mesma situação aqui.
— Margo não gosta que ninguém entre no quarto dela — disse Ruthie. — Exceto eu. E às vezes a mamãe.
— Mas nós somos amigos dela.
— Ela não deixa nem os amigos entrarem — rebateu Ruthie.
— Por favor, Ruthie — falei, inclinando-me para a frente.
— E você não quer que eu conte para a mamãe nem para o papai?
— Isso.
— Cinco pratas — disse ela.
Eu estava prestes a barganhar, mas Radar puxou uma nota de cinco e lhe entregou.
— Se eu vir o carro chegando, aviso vocês — disse ela com ar de cúmplice.
Eu me ajoelhei para afagar a envelhecida-porém-animada Myrna Mountweazel, e depois nós subimos correndo a escada até o quarto de Margo.
Ao colocar a mão na maçaneta, me dei conta de que não entrava no quarto dela desde que tinha dez anos. Entrei. Muito mais organizado do que se espera de Margo, mas talvez a mãe dela tivesse arrumado tudo. À minha direita, um armário empanturrado de roupas. Na parte de trás da porta, uma sapateira com uma dúzia de pares, de sapatilhas a sandálias de festa. Não dava para faltar muita coisa no armário.
— Vou verificar o computador — disse Radar.
Ben estava mexendo na persiana:
— O pôster foi colado com Durex — disse ele. — Nada muito forte.
A maior surpresa estava na parede ao lado da mesinha do computador: uma estante da minha altura e o dobro dessa medida em largura, cheia de discos de vinil. Centenas deles.
— A Love Supreme, de John Coltrane, está no toca-discos — disse Ben.
— Caramba, esse disco é demais — disse Radar sem tirar os olhos do computador. — A garota tem bom gosto.
Olhei confuso para Ben, e ele falou:
— Ele era saxofonista.
Assenti.
— Não acredito que Q nunca tenha ouvido falar de Coltrane — falou Radar, ainda digitando. — A música dele é literalmente a prova mais convincente da existência de Deus com a qual eu já me deparei.
Comecei a examinar os discos. Estavam organizados em ordem alfabética pelo nome do artista, então fui até a letra G. Dizzy Gillespie, Jimmie Dale Gilmore, Green Day, Guided by Voices, George Harrison.
— Ela tem todos os músicos do mundo menos Woody Guthrie — falei.
E então voltei para o início e recomecei da letra A.
— Todos os livros da escola ainda estão aqui. — Ouvi Ben dizer. — E mais alguns outros na mesinha de cabeceira. Nenhum diário.
Mas eu estava distraído com a coleção de discos de Margo. Ela gostava de tudo. Jamais poderia imaginá-la ouvindo todas aquelas músicas antigas. Eu já a tinha visto ouvir música enquanto corria, mas jamais suspeitara do tamanho de seu vício. Eu sequer tinha ouvido falar da maioria daquelas bandas e estava surpreso que as mais recentes ainda gravassem discos de vinil. Continuei olhando os da letra A, depois os da letra B — passando por Beatles, Blind Boys of Alabama e Blondie —, e então comecei a percorrer os discos mais depressa, tanto que nem vi o verso do Mermaid Avenue, de Billy Bragg, e já estava olhando para o álbum do Buzzcocks. Parei, voltei e puxei o disco do Billy Bragg. A capa era a foto de uma fileira de casas no subúrbio. Mas na parte de trás Woody Guthrie me encarava, um cigarro pendendo dos lábios, segurando uma guitarra com a frase ESTA MÁQUINA MATA FASCISTAS.
— Ei — chamei.
Ben me olhou.
— Putz — disse ele. — Boa, garoto.
Radar girou na cadeira e disse:
— Impressionante. O que será que tem dentro?
Infelizmente, só havia um disco. E o disco não parecia ter nada de especial. Coloquei-o no toca-discos de Margo e depois de um tempo descobri como ligá-lo e baixar a agulha. Era um cara cantando as músicas de Woody Guthrie. E ele cantava melhor do que Woody Guthrie.
— O que é isso? Só uma coincidência louca? — perguntei.
Ben estava segurando a capa.
— Olhem — disse ele, apontando para a lista de músicas: a faixa “Walt Whitman’s Niece” fora circulada com caneta preta.
— Interessante — comentei.
A mãe de Margo dissera que as pistas dela nunca levavam a lugar algum, mas agora eu sabia que Margo havia deixado uma série de pistas — e aparentemente ela as criara para mim. Na mesma hora me lembrei dela no prédio do SunTrust, dizendo que eu era melhor quando demonstrava segurança. Virei o disco e coloquei para tocar. “Walt Whitman’s Niece” era a primeira música do lado B. E não era ruim, na verdade.
Vi Ruthie parada à porta. Ela me encarava.
— Tem alguma pista para a gente, Ruthie?
Ela balançou a cabeça e disse, desanimada:
— Já procurei.
Radar olhou para mim e apontou com a cabeça para Ruthie.
— Você pode ficar de olho em sua mãe para nós? — perguntei.
Ela fez que sim com a cabeça e eu fechei a porta.
— E aí? — virei-me para Radar.
Ele nos mostrou o computador.
— Na semana antes de sumir, Margo usou bastante o Omnictionary. Só de ficar alguns minutos logado com o nome dela, vi que as senhas ficaram gravadas no navegador. Mas ela apagou todo o histórico, então não sei o que estava pesquisando.
— Ei, Radar, dê um pesquisada em quem foi Walt Whitman — disse Ben.
— Era um poeta — respondi. — Século XIX.
— Ótimo — disse Ben, revirando os olhos. — Poesia.
— Qual o problema? — perguntei.
— Poesia é coisa de emo — disse ele. — Ah, o sofrimento. A dor. Está sempre nublado. Em minha alma.
— É, acho que isso é Shakespeare — falei com desdém. — Whitman tinha sobrinhas? — perguntei a Radar.
Ele já estava na página do Omnictionary sobre Whitman. Um cara robusto, com uma barba enorme. Eu nunca tinha lido nada dele, mas ele parecia um bom poeta.
— Hum, nenhuma sobrinha famosa. Diz aqui que ele tinha dois irmãos, mas não menciona se eles tinham filhos. Mas posso descobrir, se você quiser.
Fiz que não com a cabeça. Não parecia ser o caminho certo. Voltei a examinar o quarto. Na última prateleira da estante havia alguns livros — anuários do ensino fundamental, um exemplar surrado de Vidas sem rumo — e alguns exemplares velhos de revistas de adolescentes. Nada relacionado à sobrinha de Walt Whitman, certamente. Olhei os livros na cabeceira. Nada de interessante.
— Faria sentido se ela tivesse um livro dele — disse eu. — Mas parece que não tem.
— Tem sim! — disse Ben, animado.
Fui até onde ele estava ajoelhado, junto à estante, e agora consegui ver. Eu tinha passado direto pelo volume fino em meio a dois anuários, na última prateleira. Walt Whitman. Folhas de relva. Puxei o livro. Havia uma foto dele na capa, seus olhos claros me encarando.
— Nada mal — disse a Ben.
Ele fez que sim com a cabeça.
— Ok, então agora a gente pode ir embora? Pode me chamar de antiquado, mas eu preferia não estar aqui quando os pais de Margo voltassem.
— Tem alguma coisa que deixamos de ver?
Radar se levantou:
— Parece que ela está traçando uma linha bem reta; deve ter alguma pista nesse livro. Mas é estranho, quer dizer, não me leve a mal, mas, se ela sempre deixa as pistas para os pais, por que dessa vez resolveu deixar para você?
Dei de ombros. Não sabia a resposta, mas é claro que tinha esperanças: talvez Margo precisasse testar minha convicção. Talvez dessa vez ela quisesse ser encontrada, e por mim. Talvez, da mesma forma como me escolhera na noite mais longa, tivesse me escolhido de novo. E talvez riquezas incontáveis estivessem à espera de quem a encontrasse.


Depois de voltarmos para minha casa e darmos uma olhada no livro sem encontrar nenhuma pista óbvia, Ben e Radar foram embora. Peguei os restos de uma lasanha na geladeira para o almoço e fui para o quarto com Walt. Era uma primeira edição de Folhas de relva publicada pela Penguin Classics. Li um pedacinho da introdução e então folheei o livro. Havia uma série de versos grifados em azul, todos do longo poema épico conhecido como “Canção de mim mesmo”. E havia dois versos grifados em verde:
Arranquem os trincos das portas! Arranquem as próprias portas dos batentes!
Passei a maior parte da tarde tentando entender a citação, imaginando que talvez fosse o jeito de Margo me dizer para me tornar um pouco mais marrento ou algo assim. Mas também li e reli tudo que estava grifado em azul:
Nada de pegar coisas de segunda ou de terceira mão… nem de ver através dos olhos dos mortos… nem de se alimentar dos espectros nos livros
Vadio uma jornada perpétua
Tudo segue e segue sem parar… nada se colapsa, E morrer é diferente do que se imaginava, bem mais afortunado.
Se ninguém mais no mundo está ciente, fico contente, E se cada um e todos estão cientes, fico contente.
As últimas três estrofes de “Canção de mim mesmo” também estavam grifadas:
Me entrego à terra pra crescer da relva que amo, Se me quiser de novo me procure sob a sola de suas botas.
Vai ser difícil você saber quem sou ou o que estou querendo dizer, Mas mesmo assim vou dar saúde, Vou filtrar e dar fibra a seu sangue.
Não me cruzando na primeira, não desista, Não me vendo num lugar, procure em outro, Em algum lugar eu paro e espero você.
Aquilo tomou o restante do meu fim de semana: tentar encontrar Margo nos fragmentos do poema que ela havia deixado para mim. Eu não conseguia chegar a lugar algum com aqueles versos, mas mesmo assim continuava pensando neles, porque não queria decepcioná-la. Ela queria que eu não perdesse o fio da meada, que eu achasse o lugar no qual ela esperava por mim, que eu seguisse a trilha de migalhas de pão até ela.

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