terça-feira, 29 de julho de 2014

15° Capitulo (2p) - Cidades de Papel

Apesar de faltar só uma semana para as provas finais, passei a tarde de segunda-feira lendo a “Canção de mim mesmo”. Eu queria ir aos dois últimos bairros fantasmas, mas Ben precisava do carro.
Eu não estava mais à procura de pistas no poema tanto quanto procurava pela própria Margo. Tinha chegado mais ou menos à metade quando me vi lendo e relendo o mesmo trecho. “Agora só vou ficar ouvindo”, escreve Whitman.
E então ele fica só ouvindo por duas páginas: o burburinho de um riacho, as vozes das pessoas, uma ópera. Ele se senta na relva e deixa o som atravessá-lo. E acho que era isso que eu estava tentando fazer também: ouvir todos os barulhinhos emitidos por ela, porque, antes de fazer sentido, as coisas precisam ser ouvidas. Por muito tempo eu não ouvira a Margo de verdade — eu a vira gritar uma vez e achei que ela estivesse rindo —, então agora esse era meu trabalho. Tentar, mesmo de tão longe, ouvir a ópera dela. Se eu não conseguia ouvir Margo, ao menos podia ouvir o que ela ouvira um dia, então baixei um álbum com as versões cover de Woody Guthrie.
Me sentei diante do computador, os olhos fechados, cotovelos apoiados na mesa, e ouvi uma voz cantando em tom menor. Tentei encontrar, em uma música que eu nunca tinha ouvido, a voz que eu vinha tendo dificuldades de recordar depois de doze dias de ausência. Ainda estava ouvindo — agora um dos preferidos dela, Bob Dylan — quando minha mãe chegou.
— Seu pai vai se atrasar hoje — disse ela atrás da porta. — Pensei em fazer hambúrguer de peru para o jantar, tudo bem?
— Tudo bem — respondi e fechei os olhos de novo, ouvindo a música. E não me levantei até meu pai me chamar para jantar, um álbum e meio depois.


Durante o jantar, meus pais ficaram conversando sobre a política do Oriente Médio. E, embora ambos concordassem em absolutamente tudo, ainda assim conseguiram gritar, dizendo que fulano era mentiroso, e que sicrano era mentiroso e ladrão, e que todos eles deveriam renunciar.
Eu me concentrei no hambúrguer de peru, que estava uma delícia, cheio de catchup e cebolas assadas.
— Ok, já chega — disse minha mãe depois de um tempo. — Quentin, como foi seu dia?
— Tranquilo — respondi. — Estudando para as provas, na verdade.
— Nem acredito que já é sua última semana de aula — disse meu pai. — Realmente parece que foi ontem…
— Pois é — completou minha mãe.
E uma voz em minha cabeça dizia: ALERTA VERMELHO NOSTALGIA À VISTA ALERTA VERMELHO ALERTA VERMELHO.
Gente muito bacana os meus pais, mas sempre propensos a ataques agudos de sentimentalismo.
— Estamos muito orgulhosos de você — disse ela. — Mas, meu Deus, vamos sentir sua falta no ano que vem.
— Bem, não conte vantagem antes da hora. Eu ainda posso ser reprovado em inglês.
Minha mãe riu e então disse:
— Ah, adivinhe quem encontramos na ACM ontem? Betty Parson. Ela disse que Chuck vai para a Universidade da Geórgia. Fiquei feliz por ele; sempre teve tanta dificuldade.
— Ele é um babaca.
— É — disse meu pai —, ele praticava bullying. E tinha um comportamento deplorável.
Isso era típico dos meus pais: na cabeça deles, ninguém era simplesmente babaca. Sempre tinha algo de errado com as pessoas além do fato de serem escrotas: distúrbios de socialização, transtorno de personalidade limítrofe ou sei lá mais o quê.
— Mas Chuck tem dificuldades de aprendizado — minha mãe continuou o raciocínio. — Ele tem diversos problemas, como todo mundo. Eu sei que é impossível para vocês enxergarem seus colegas assim, mas, quando estiver mais velho, você vai começar a ver todos os garotos apenas como pessoas, sejam eles bons ou ruins. Eles são só pessoas; pessoas que merecem cuidados. Com diferentes graus de doença, diferentes graus de neurose, diferentes graus de autorrealização. Mas sabe, sempre gostei de Betty e sempre acreditei em Chuck. Então é bom que ele esteja indo para a faculdade, você não acha?
— Falando sério, mãe, eu não estou nem aí para ele.
Mas no fundo eu estava pensando que, se todos somos pessoas, por que meus pais odiavam todos os políticos de Israel e da Palestina? Eles não falavam deles como se fossem pessoas.
Meu pai terminou de mastigar, largou o garfo e olhou para mim:
— Quanto mais eu trabalho, mais percebo que os seres humanos carecem de bons espelhos. É muito difícil para qualquer um mostrar a nós como somos de fato, e é muito difícil para nós mostrarmos aos outros o que sentimos.
— Que lindo — disse minha mãe.
Eu gostava que eles gostassem um do outro.
— Mas será que isso não é porque, em algum nível fundamental, achamos difícil entender que o outro também é um ser humano tal como nós? Ou nós os idealizamos como deuses ou os dispensamos como animais.
— Verdade. A consciência não é uma boa janela. Acho que nunca pensei nisso dessa forma.
Eu estava recostado na cadeira. Escutando. E estava ouvindo alguma coisa a respeito dela, janelas e espelhos. Chuck Parson era uma pessoa. Como eu. Margo Roth Spiegelman também era uma pessoa. E eu nunca tinha pensado nela dessa forma, não mesmo; essa era a falha de tudo o que eu havia imaginado antes. O tempo todo — e não apenas depois que ela desapareceu, mas uma década antes disso — eu a imaginava sem escutá-la, sem saber que ela possuía uma janela tão opaca quanto a minha. E por isso eu não conseguia imaginá-la como uma pessoa capaz de sentir medo, de se sentir isolada em uma sala cheia de gente, de sentir vergonha de sua coleção de discos porque era algo pessoal demais para ser compartilhado. Alguém que talvez lesse guias de viagem para fugir de uma cidade para a qual tanta gente fugia. Alguém que — porque ninguém a enxergava como uma pessoa — não tinha ninguém com quem conversar de verdade.
E imediatamente eu soube como Margo Roth Spiegelman se sentia quando não estava sendo Margo Roth Spiegelman: vazia. Ela sentia que uma parede intransponível se fechava em torno de si.
E pensei nela dormindo naquele carpete com apenas uma faixa de céu logo acima. Talvez Margo se sentisse à vontade ali porque a pessoa Margo vivesse daquele jeito o tempo todo: em um cômodo abandonado com janelas lacradas e cuja única fonte de luz era um buraco no teto.
Sim.
O erro fundamental que sempre cometi — e ao qual, sejamos justos, ela sempre me conduziu — era este: Margo não era um milagre. Não era uma aventura. Nem uma coisa sofisticada e preciosa. Ela era uma garota.

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