Na segunda-feira de manhã aconteceu algo extraordinário. Eu estava atrasado, o que era normal; e então minha mãe me deixou no colégio, o que era normal; e depois fiquei do lado de fora por um tempo, conversando com as pessoas, o que era normal; e então Ben e eu entramos, o que era normal. Mas, assim que abrimos a porta de aço, o rosto de Ben se tornou uma mistura de empolgação e pânico, como se um mágico tivesse acabado de escolhê-lo para serrá-lo ao meio.
Segui os olhos dele ao longo do corredor. Minissaia jeans. Camiseta branca justa. Decote cavado. Pele extraordinariamente bronzeada. Pernas que faziam você passar a gostar de pernas. Cabelo castanho encaracolado perfeitamente bem penteado. Um bóton que dizia VOTE EM MIM PARA RAINHA DA FORMATURA.
Lacey Pemberton.
Caminhando em nossa direção. Junto à sala de ensaios.
— Lacey Pemberton — sussurrou Ben, embora ela estivesse a três passos de nós e pudesse ouví-lo com nitidez. E, de fato, ela abriu um sorriso falsamente acanhado ao ouvir o próprio nome.
— Quentin — voltou-se ela para mim, e, mais do que qualquer coisa, eu achava impossível que ela soubesse meu nome.
Ela fez um sinal com a cabeça e eu a segui, passando pela sala de ensaios até uma fileira de armários. Ben me seguiu de perto.
— Oi, Lacey — cumprimentei assim que ela parou.
Dava para sentir seu perfume, e eu me lembrei do cheiro dentro da picape e do bagre sendo esmagado quando Margo e eu o esprememos com o banco do carro.
— Ouvi dizer que você estava com Margo. — Fiquei olhando para ela. — Naquela noite, com o peixe. Em meu carro. E no armário de Becca. E pela janela de Jase.
Continuei olhando. Não sabia bem o que dizer. Um sujeito pode ter uma vida longa e venturosa sem nunca ter ouvido uma palavra de Lacey Pemberton, e quando essa rara oportunidade acontece ninguém gostaria de falar besteira. Então Ben falou por mim:
— É, eles estavam juntos — disse ele, como se Margo e eu fôssemos próximos.
— Ela estava com raiva de mim? — perguntou Lacey depois de um tempo. Estava olhando para baixo, e pude notar a sombra em seus olhos castanhos.
— O quê?
E então ela falou bem baixinho, a voz falhando um pouco, e de uma hora para outra Lacey Pemberton não era mais Lacey Pemberton. Era só… uma pessoa.
— Ela estava, sei lá, brava comigo por algum motivo?
Fiquei um tempo pensando em que resposta dar.
— Hum, ela estava um pouco chateada porque você não contou sobre Jase e Becca, mas você sabe como Margo é. Ela vai superar.
Lacey começou a andar pelo corredor. Ben e eu a deixamos ir embora, mas ela desacelerou o passo. Queria que a gente a acompanhasse. Ben me cutucou, e nós caminhamos juntos.
— Eu sequer sabia de Jase e Becca. Esse é o problema. Cara, tomara que eu consiga explicar isso a ela logo. Por um instante, fiquei com medo de que ela talvez tivesse ido embora de vez, mas aí dei uma olhada no armário dela, porque sei o código que ela usa, e todas as fotos ainda estão lá, os livros, tudo.
— Que bom — falei.
— Pois é, mas já faz quatro dias. É praticamente um recorde para ela. E, sabe como é, a coisa está feia porque Craig sabia de tudo, e eu fiquei com tanta raiva dele por não ter me contado que terminei com ele, e agora não tenho mais par para o baile de formatura, e minha melhor amiga fugiu sei lá para onde, para Nova York, sei lá, achando que fiz uma coisa que eu NUNCA teria feito.
Lancei um olhar para Ben, que me fitou de volta.
— Preciso correr para minha aula — falei. — Mas por que você acha que ela fugiu para Nova York?
— Acho que uns dois dias antes de sumir ela falou para Jase que Nova York era o único lugar nos Estados Unidos onde uma pessoa poderia viver uma vida no mínimo mais ou menos. Pode ter sido da boca para fora. Não sei.
— Ok, tenho que ir — falei.
Eu sabia que Ben nunca conseguiria convencer Lacey a ir ao baile de formatura com ele, mas achei que ele merecia ao menos tentar. Corri pelos corredores em direção ao meu armário e esfreguei a cabeça de Radar. Ele estava conversando com Angela e uma aluna do primeiro ano que era da banda.
— Ah, não agradeça a mim. Agradeça ao Q. — Eu o ouvi dizer à menina, e então ela gritou:
— Obrigada pelas duzentas pratas!
— Não agradeça a mim. Agradeça a Margo Roth Spiegelman! — gritei sem olhar para trás, porque é claro que ela fora a responsável por me dar as ferramentas de que eu precisava.
Cheguei ao armário e peguei meu caderno de cálculo, mas permaneci ali, mesmo depois de o segundo sinal ter tocado, parado no meio do corredor enquanto as pessoas corriam por mim nos dois sentidos, como se eu fosse o canteiro central na rodovia delas.
Mais um garoto me agradeceu pelas duzentas pratas. Sorri para ele. A escola parecia mais minha do que em todos os quatro anos que passei nela. A gente conseguiu compensar os geeks sem bicicleta da banda. Lacey Pemberton falou comigo. Chuck Parson pediu desculpas. Eu conhecia aqueles corredores tão bem — e finalmente era como se eles também me conhecessem.
Fiquei ali até o terceiro sinal tocar e a multidão minguar. Só então segui para a aula de cálculo e me sentei logo depois de o Sr. Jiminez dar início a mais uma aula interminável.
Eu tinha trazido o exemplar de Folhas de relva de Margo e recomecei a ler os trechos marcados de “Canção de mim mesmo” por baixo da mesa enquanto o Sr. Jiminez deixava seus garranchos no quadro-negro.
Não identifiquei nenhuma referência direta a Nova York. Depois de um tempo, passei o livro para Radar, e ele deu uma olhada antes de escrever em seu caderno, na margem do meu lado:
Esse pedaço marcado de verde tem que significar alguma coisa. Quem sabe ela não quer que você abra as portas da mente?
Dei de ombros e escrevi de volta:
Ou talvez ela tenha apenas lido o poema em dois dias diferentes, com dois marca-textos diferentes.
Alguns minutos depois, enquanto olhava de relance para o relógio pela trigésima sétima vez, vi Ben Starling de pé junto à porta, segurando um bilhete de dispensa e dançando feito um louco.
Quando o sinal do almoço tocou, corri para o meu armário, mas de alguma forma Ben tinha chegado a ele primeiro e sabe-se lá como estava conversando com Lacey Pemberton. Estava quase grudado a ela, com uma corcunda de leve para que os dois ficassem cara a cara. Conversar com Ben às vezes me dava uma sensação um tanto claustrofóbica, e olha que eu não estava nem perto de ser uma garota bonita.
— Oi, gente — falei assim que me aproximei deles.
— Oi — respondeu Lacey, nitidamente afastando-se de Ben. — Ben estava só me pondo em dia sobre Margo. Ninguém nunca tinha entrado no quarto dela, sabia? Ela dizia que os pais não a deixavam levar amigos para casa.
— Sério? — Lacey fez que sim com a cabeça. — Você sabia que ela tem uns mil discos?
— Não. Era isso que Ben estava me contando! — exclamou Lacey, erguendo as mãos. — Ela nunca falava de música. Tipo, ela teria dito se gostasse de alguma coisa que ouvia no rádio ou sei lá. Mas… não. Ela era tão esquisita.
Dei de ombros. Talvez ela fosse esquisita, ou talvez o restante de nós é que éramos esquisitos.
Lacey continuou falando:
— Mas a gente estava dizendo que Walt Whitman era de Nova York.
— E, de acordo com o Omnictionary, Woody Guthrie morou muito tempo lá também — disse Ben. Assenti. — Dá para imaginar Margo em Nova York. Só acho que a gente precisa descobrir a próxima pista. Não pode ser só o livro. Deve haver algum código nos trechos marcados ou algo assim.
— Pois é, posso dar uma olhada na hora do almoço?
— Claro — respondi. — Ou a gente pode tirar uma cópia na biblioteca, se você quiser.
— Não, acho que posso só dar uma olhada. Não entendo porcaria nenhuma de poesia mesmo. Ah, mas, de qualquer modo, uma prima minha estuda na Universidade de Nova York e eu mandei um folheto para ela imprimir. Então vou avisar a ela para distribuir em lojas de discos também. Sei que existe uma porção de lojas de discos, mas mesmo assim…
— Boa ideia — falei.
Eles começaram a caminhar para a cantina e eu os segui.
— Ah, qual é a cor do seu vestido? — perguntou Ben a Lacey.
— É meio safira, por quê?
— Só para ter certeza de que meu smoking vai combinar — disse Ben.
Eu nunca o vira com um sorriso tão abobalhado, e olha que Ben é um sujeito para lá de bobo. Lacey assentiu com a cabeça.
— Bem, a gente também não precisa ficar tão combinadinho. Talvez se você usasse uma coisa mais tradicional, smoking e colete pretos, quem sabe?
— Então você acha que é melhor não usar faixa?
— Ah, pode usar, mas é melhor não escolher uma muito cheia de pregas, entendeu?
Eles continuaram conversando — aparentemente, a quantidade ideal de pregas em uma faixa é um tópico digno de horas de conversa —, mas parei de ouvir e entrei na fila do Pizza Hut. Ben tinha arrumado alguém com quem ir à formatura, e Lacey tinha encontrado um cara capaz de conversar animadamente sobre a festa durante horas. Agora todo mundo tinha um par — menos eu, e eu não ia à festa. A única menina que eu gostaria de levar estava por aí em uma viagem sem volta ou algo assim.
Nós nos sentamos. Lacey começou a ler “Canção de mim mesmo” e concordou que nada daquilo tinha muito a cara de Margo. Ainda não tínhamos ideia do que Margo estava tentando dizer, se é que estava tentando dizer alguma coisa. Ela me devolveu o livro e eles voltaram a falar da formatura.
Durante toda a tarde, fiquei com a sensação de que olhar aqueles versos marcados não iria dar em nada, mas aí eu ficava entediado, abria a mochila, colocava o livro no colo e voltava a ler.
O último tempo era aula de inglês, e a gente tinha começado a estudar Moby Dick, então a Dra. Holden estava falando um monte de coisas sobre pesca no século XIX. Mantive o Moby Dick na mesa e o Whitman no colo, mas nem o fato de estar na aula de inglês me impediu. Pela primeira vez passei alguns minutos inteiros sem olhar para o relógio, então me espantei quando o sinal tocou e levei mais tempo do que os outros para fechar a mochila. Ao jogar a mochila por cima do ombro e me dirigir à saída, a Dra. Holden sorriu para mim e disse:
— Walt Whitman, é?
Assenti, meio encabulado.
— Bom livro — elogiou ela. — Tão bom que eu quase não ligo de você ficar lendo no meio da aula. Quase.
Murmurei um desculpe e segui para o estacionamento dos alunos.
Enquanto Ben e Radar ensaiavam, fiquei sentado no PNC, as portas abertas, uma brisa leve atravessando o carro. Tentei ler O Federalista para me preparar para a prova de ciências políticas no dia seguinte, mas minha cabeça voltava parao ciclo contínuo: Guthrie, Whitman, Nova York, Margo.
Será que ela fora para Nova York a fim de fazer uma imersão na música folk? Será que existia uma Margo secreta amante de folk que eu não conhecia? Será que ela estava na casa em que um dos dois tinha morado? E por que ela queria que eu soubesse disso?
Pelo retrovisor lateral, vi Ben e Radar se aproximando. Radar vinha sacolejando a caixa do sax enquanto andava apressadamente em direção ao PNC. Eles entraram pelas portas já abertas, Ben girou a chave, e o carro engasgou; a gente torceu, mas ele falhou de novo, a gente torceu mais um pouco e ele, enfim, ganhou vida. Ben acelerou para fora do estacionamento, fez a curva e então exclamou:
— DÁ PARA ACREDITAR NESSA MERDA!?
Ele mal conseguia se conter de tanta felicidade. E começou a apertar a buzina, mas é claro que ela não funcionava, então a cada batida ele simplesmente gritava:
— BI-BI! BI-BI! BI-BI! BUZINE AÍ QUEM VAI PARA A FORMATURA COM A GATINHA DA LACEY PEMBERTON! BUZINE, BABY, BUZINE!
Ele mal calou a boca durante todo o caminho para casa.
— Sabe o que foi? Além do desespero? Acho que ela e Becca estão meio brigadas porque Becca, vocês sabem, é uma traidora, e acho que ela começou a se sentir mal por causa da história do Mija-sangue. Ela não chegou a admitir, mas meio que agiu como se sentisse assim. Então, no final das contas, o Mija-sangue vai me tirar da secura.
Eu estava feliz pelo cara e tudo o mais, mas queria me concentrar no desafio de descobrir onde Margo estava.
— Vocês têm alguma ideia?
Eles ficaram em silêncio por um instante, então Radar olhou para mim pelo retrovisor e disse:
— Aquele trecho das portas é o único que está marcado com uma caneta diferente, além de ser o mais aleatório. Eu realmente acho que a pista está nele. Como é mesmo?
— “Arranquem os trincos das portas! / Arranquem as próprias portas dos batentes!” — respondi.
— Vamos combinar, Jefferson Park não é o melhor lugar para arrancar as portas dos batentes de gente bitolada — ponderou Radar. — Talvez seja isso que ela esteja dizendo. Assim como o negócio de cidade de papel que ela falou sobre Orlando… Talvez ela esteja explicando por que foi embora.
Ben reduziu por causa do sinal, então se virou para Radar e disse:
— Cara, acho que vocês estão dando muita bola para essa gatinha da Margo.
— Como assim? — perguntei.
— Arrancar os trincos das portas — disse ele. — Arrancar as próprias portas dos batentes.
— Isso — falei.
O sinal abriu e Ben pisou fundo. O PNC tremeu como se fosse se desfazer, mas aí começou a andar.
— Não é poesia. Não é metáfora. São instruções. O que a gente tem que fazer é ir até o quarto de Margo e arrancar o trinco da porta dela, arrancar a própria porta do batente.
Radar me fitou pelo retrovisor e eu o encarei de volta.
— Às vezes ele é tão retardado que chega a ser genial — disse ele.
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