terça-feira, 29 de julho de 2014

14° Capitulo (2p) - Cidades de Papel

Dormi por algumas horas e passei a manhã lendo os guias de viagem que tinha encontrado no dia anterior. Esperei até dar meio-dia para telefonar para Ben e Radar. Liguei para Ben primeiro.
— Bom dia, flor do dia — falei.
— Ah, Deus — respondeu Ben, a voz carregada de um sofrimento abjeto. — Ah, meu Jesus Cristinho, venha até aqui cuidar de seu camarada Ben. Ah, Deus do céu! Derrame sobre mim sua misericórdia.
— Tenho várias novidades sobre o caso Margo — falei, animado —, então você tem que vir para cá. Vou ligar para Radar também.
Ben parecia não me ouvir.
— Ei, por que quando minha mãe entrou em meu quarto às nove da manhã e eu levei a mão à boca para bocejar, tanto ela quanto eu descobrimos uma lata de cerveja grudada nela?
— Você colou um monte de latinhas com superbonder para fazer uma espada de cerveja, e aí colou a espada na mão.
— Ah, é. A espada de cerveja. Tenho uma vaga lembrança.
— Ben, venha para cá.
— Cara, estou me sentindo um lixo.
— Então eu vou para sua casa. Que horas?
— Cara, você não pode vir aqui. Eu preciso dormir mais umas dez mil horas, beber uns dez mil litros d’água e tomar uns dez mil analgésicos. Vejo você amanhã na escola.
Respirei fundo e tentei não soar irritado:
— Eu atravessei a Flórida Central de carro no meio da noite para ser o único cara sóbrio na festa mais bêbada do mundo e levar essa sua bunda encachaçada para casa, e é isso que…
Eu teria continuado, mas percebi que Ben tinha desligado. Ele desligou na minha cara. Babaca.
À medida que o tempo ia passando, eu só sentia mais raiva. Uma coisa era não dar a mínima para Margo. Mas, sério, Ben também não dava a mínima para mim. Talvez nossa amizade sempre tivesse sido uma questão de conveniência: ele não conhecia ninguém mais interessante com quem jogar video game. E agora não precisava mais ser legal comigo ou se importar com as coisas com as quais eu me importava, afinal ele tinha Jase Worthington. Ele era o recordista do keg stand. Ele tinha sido o par de uma menina gostosa no baile de formatura. Ele agarrara a primeira oportunidade que teve para se juntar à fraternidade dos filhos da mãe sem cérebro.


Cinco minutos depois de Ben desligar na minha cara, liguei para o celular dele de novo. Ele não atendeu, então deixei um recado: “Você quer ser legal como o Chuck, Ben Mija-sangue? É isso que você sempre desejou? Então, parabéns! Você conseguiu. E vocês se merecem, porque você é um babaca igual a ele. Nem precisa me ligar de volta.”
E então telefonei para Radar.
— Oi — falei.
— Oi — respondeu ele. — Acabei de vomitar no chuveiro. Posso ligar para você daqui a pouco?
— Ahã — respondi, tentando não soar irritado.
Eu só queria que alguém me ajudasse a pensar como Margo. Mas Radar não era Ben; ele me ligou de volta uns dois minutos depois.
— Foi tão nojento que eu vomitei de novo enquanto tentava limpar, e depois de novo, tentando limpar o segundo vômito. É praticamente um círculo vicioso. Se continuarem me alimentando, acho que nunca mais vou parar de vomitar.
— Você pode dar um pulo aqui? Ou eu aí em sua casa?
— Claro. O que foi?
— Margo ainda estava viva e ficou no centro comercial por pelo menos uma noite depois de desaparecer.
— Estou indo até aí. Chego em quatro minutos.


Precisamente quatro minutos depois, Radar surgiu à minha janela.
— Fique sabendo que eu e Ben tivemos uma briga feia — falei enquanto ele pulava para dentro do quarto.
— Estou com uma ressaca muito braba para intermediar — respondeu ele baixinho. Deitou em minha cama, os olhos semicerrados, e esfregou o cabelo raspado curto. — Parece que fui atingido por um raio — disse e fungou. — Certo, conte o que aconteceu.
Me sentei na cadeira da escrivaninha e contei a Radar sobre minha noite na casa de veraneio de Margo, tentando não me esquecer de nenhum detalhe importante. Eu sabia que Radar era melhor do que eu com enigmas, e estava torcendo para que ele fosse capaz de desvendar aquele. Ele esperou em silêncio até eu dizer:
— E aí Ben me ligou, e eu fui embora para aquela festa.
— Você tem o livro aí, o que está cheio de orelhas? — perguntou ele.
Eu me levantei e, depois de algum esforço para alcançá-lo, peguei o livro debaixo da cama.
Radar o ergueu acima da cabeça, espremendo os olhos para enxergar em meio à dor de ca​beça, e folheou as páginas.
— Anote aí — disse ele. — Omaha, Nebraska. Sac City, Iowa. Alexandria, Indiana. Darwin, Minnesota. Hollywood, Califórnia. Alliance, Nebraska. Certo. Esses são os lugares que ela, ou quem quer que tenha lido este livro, achou interessantes. — Ele se levantou, fez um sinal para que eu saísse da cadeira e então deslizou nela até o computador.
Radar tinha o talento incrível de continuar conversando enquanto digitava.
— Existe um site que gera um monte de itinerários dependendo da quantidade de destinos que você insere. Não que ela conhecesse o programa. Mas, ainda assim, quero dar uma olhada.
— Como você sabe essas coisas? — perguntei.
— Hum, nunca se esqueça: Eu. Passo. Minha. Vida. Toda. No. Omnictionary. Desde que entrei em casa nesta manhã até o momento em que fui vomitar no chuveiro, reescrevi completamente a página sobre o tamboril- pintado. Eu tenho um problema. Ok, olhe aqui — disse ele.
Eu me inclinei e vi um monte de rotas em zigue-zague no mapa dos Estados Unidos. Todas começavam em Orlando e terminavam em Hollywood, na Califórnia.
— Talvez ela esteja indo para Los Angeles? — sugeriu Radar.
— Talvez — respondi.
— Mas não dá para saber qual rota ela está seguindo.
— Verdade. Além disso, não existe mais nenhuma pista de que ela esteja indo mesmo para Los Angeles. O que ela disse a Jase sugere Nova York. A pichação “você vai para as cidades de papel e nunca mais voltará” parece indicar um bairro fantasma próximo daqui. E quem sabe o esmalte não seja uma pista de que ela ainda está na cidade? Só estou dizendo que agora a gente pode acrescentar a cidade que possui a maior bola de pipoca do mundo à nossa lista de possíveis localizações de Margo. — Uma viagem se encaixaria em uma das citações de Whitman: “Vadio uma jornada perpétua.”
Radar permaneceu diante do computador. Eu me sentei na cama.
— Ah, será que você pode imprimir um mapa dos Estados Unidos para eu marcar os pontos? — perguntei.
— Posso fazer isso on-line.
— É, mas eu quero dar uma olhada no papel.
Poucos segundos depois a impressora cuspiu uma folha, e eu coloquei o mapa na parede, ao lado do mapa dos bairros fantasmas. Pus uma tachinha em cada um dos seis locais que ela (ou alguém) havia marcado no livro. Tentei visualizá-los como uma constelação, procurando por alguma forma ou letra, mas não consegui enxergar nada. Era uma distribuição absolutamente aleatória, como se ela tivesse tapado os olhos e atirado dardos no mapa.
Suspirei.
— Sabe o que seria legal? — perguntou Radar. — Se a gente conseguisse alguma prova de que ela está verificando os e-mails ou fazendo qualquer outra coisa na internet. Todos os dias eu faço uma busca com o nome dela; e criei um web bot que vai me avisar se for feito login no Omnictionary com o nome de usuário dela. Eu fico rastreando o endereço de IP das pessoas que buscam por “cidades de papel”. É tão frustrante.
— Eu não sabia que você estava fazendo tudo isso — falei.
— É, pois é. Estou apenas fazendo o que gostaria que os outros fizessem. Sei que eu não era amigo dela, mas ela merece ser encontrada, né?
— A menos que ela não queira.
— É, essa é uma possibilidade. Tudo é possível. — Eu concordei com a cabeça. — Certo, então… — disse ele, e perguntou em seguida: — A gente pode pensar nisso jogando video game?
— Não estou muito no clima.
— Então a gente pode ligar para o Ben?
— Não. Ben é um babaca.
Radar me fitou pelo canto do olho.
— É claro que ele é. Sabe qual é seu problema, Quentin? Você espera que as pessoas não sejam elas mesmas. Quer dizer, eu podia odiar você por ser tão pouco pontual e por nunca se interessar por nada que não seja Margo Roth Spiegelman e por, tipo, nunca me perguntar como estão indo as coisas com minha namorada… Mas eu não ligo, cara, porque você é você. Meus pais têm uma tonelada de porcaria de Papais Noéis pretos, mas tudo bem. São meus pais. Eu sou totalmente obcecado por uma enciclopédia on-line e por isso deixo de atender o telefone quando meus amigos ligam, ou mesmo minha namorada. Tudo bem também. Eu sou assim. Você gosta de mim do jeito que eu sou. E eu de você. Você é engraçado, inteligente e pode até chegar atrasado, mas sempre chega.
— Valeu.
— É, bem, não era para ser um elogio. Eu só estava dizendo para você parar de pensar que Ben deveria ser você, e ele precisa parar de pensar que você deveria ser quem ele é, e vocês dois podiam baixar um pouco a bola.
— Tudo bem… — cedi, afinal, e liguei para Ben.
A notícia de que Radar estava lá em casa querendo jogar video game produziu uma cura milagrosa na ressaca de Ben.
— E aí — falei depois de desligar —, como vai Angela?
Radar riu.
— Vai bem, cara. Vai muito bem. Obrigado por perguntar.
— Você continua virgem?
— Eu não gosto de falar dessas coisas. Mas sim, ainda sou. Ah, e a gente teve nossa primeira briga hoje de manhã. Fomos tomar café na Waffle House, e ela estava falando que os Papais Noéis negros são o máximo e que meus pais são pessoas maravilhosas por colecioná-los, que é importante não concluirmos que todas as coisas legais de nossa cultura, tipo Deus e Papai Noel, sejam brancos, e como um Papai Noel negro fortalece toda a comunidade negra dos Estados Unidos.
— Na verdade, acho que meio que concordo com ela — falei.
— É, pois é, é uma ideia legal, pena que é tudo besteira. Eles não estão tentando divulgar o evangelho do Papai Noel negro. Se estivessem, estariam fabricando os próprios Papais Noéis. Mas não, o que eles querem é comprar todo o estoque mundial. Tem um velho em Pittsburgh que é dono da segunda maior coleção de Papais Noéis negros, e eles passam o tempo todo tentando comprá-la dele.
E então Ben falou da porta do meu quarto, pois aparentemente ele já estava ali havia um tempo:
— Radar, o fato de você ainda não ter conseguido dobrar aquela gatinha adorável é a maior tragédia humanitária de nossa era.
— E aí, Ben? — perguntei.
— Valeu pela carona ontem à noite, cara.

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