terça-feira, 22 de julho de 2014

6° Capitulo - Cidades de Papel

Turistas nunca visitam o centro de Orlando porque não há nada para ver a não ser uns arranha-céus de bancos e companhias de seguro. É o tipo de centro de cidade que fica completamente deserto à noite e nos fins de semana, com exceção de algumas boates frequentadas pelos muito desesperados ou muito toscos.
À medida que eu seguia as indicações de Margo pelo labirinto de ruelas de mão única, víamos gente dormindo nas calçadas ou sentadas nos bancos, mas ninguém se mexia. Quando Margo abriu a janela, senti o vento denso soprando em meu rosto, mais quente do que se espera para um vento noturno.
Dei uma olhada e notei mechas de cabelo voando ao redor de seu rosto. Embora pudesse vê-la ali, eu me sentia completamente sozinho em meio àqueles prédios grandes e vazios, como se tivesse sobrevivido ao apocalipse e o mundo tivesse me dado todo aquele universo fascinante e infinito, só meu, para ser explorado.
— A gente está passeando pelo centro? — perguntei.
— Não — disse ela. — Estou tentando chegar ao prédio do SunTrust. Fica ao lado do Aspargão.
— Ah — respondi, porque pela primeira vez naquela noite eu tinha uma informação útil a oferecer. — Fica no sul.
Dirigi por mais alguns quarteirões e virei na curva. Margo apontou alegremente, e sim, diante de nós, estava o Aspargão. Tecnicamente, o Aspargão não é um aspargo grande, nem é feito de aspargos. É só uma escultura que lembra um aspargo de dez metros de altura — muito embora eu já tenho ouvido gente associá-la a:
1) Um pé de feijão de vidro verde; 2) A representação abstrata de uma árvore; 3) Uma versão mais ecologicamente correta, mais vítrea e mais feia do Monumento a Washington; 4) O falo verde e gigantesco do gigante da propaganda de ervilha enlatada Green Giant.
A questão é que, certamente, ele não se parece com uma torre de luz, o verdadeiro nome da escultura.
Encostei o carro diante de um parquímetro e olhei para Margo. Por um instante, eu a flagrei olhando para o nada, os olhos perdidos, não exatamente encarando o Aspargão, mas olhando para além dele. Foi a primeira vez que achei que talvez algo estivesse errado — não errado do tipo “meu namorado é um babaca”, mas realmente errado. E eu devia ter dito algo. Claro. Eu devia ter começado a falar sem parar. Mas tudo o que falei foi:
— Posso saber por que você me trouxe até o Aspargão?
Ela se virou para mim e sorriu. Margo era tão bonita que até seus sorrisos falsos eram convincentes.
— A gente precisa verificar o nosso progresso. E o melhor lugar para fazer isso é do topo do prédio do SunTrust.
Revirei os olhos.
— Não. Não mesmo. De jeito nenhum. Você falou que não haveria arrombamentos nem invasão de domicílios.
— E desde quando isso aqui é um domicílio? Além do mais, é só entrar, porque a porta não fica trancada.
— Margo, isso é ridículo. É cla… — Eu admito que ao longo da noite cometemos tanto arrombamento quanto invasão de domicílio. Invadimos a casa de Becca. Arrombamos a casa de Jase. E vamos invadir aqui também. Mas em nenhum momento cometemos arrombamento e invasão ao mesmo tempo. Teoricamente, a polícia poderia nos acusar de arrombamento e poderia nos acusar de invasão, mas não de arrombamento e invasão. Então mantive minha palavra. — Na certa o SunTrust tem, sei lá, um segurança ou qualquer coisa assim.
— Eles têm — disse ela, soltando o cinto de segurança. — É claro que eles têm. Ele se chama Gus.


Entramos pela porta da frente. Sentado atrás de um imenso balcão semicircular, estava um rapaz com cavanhaque ralo e vestindo uniforme da companhia Regents Security.
— Qual é a boa, Margo? — disse ele.
— E aí, Gus? — respondeu ela.
— Quem é a criança?
A GENTE TEM A MESMA IDADE!, eu queria gritar, mas deixei Margo responder por mim.
— É o meu amigo Q. Q, este é Gus.
— Qual é a boa, Q? — perguntou Gus.
Ah, a gente só está largando uns peixes mortos pela cidade, quebrando janelas, fotografando uns caras pelados e curtindo no saguão de entrada de arranha-céus às 3h15 da manhã. Esse tipo de coisa.
— Nada de mais — respondi.
— Os elevadores passam a noite desligados — disse Gus. — Tive que desligar às três. Mas vocês podem usar a escada.
— Legal. Até mais, Gus!
— Até, Margo.


— Como assim você conhece o segurança do SunTrust? — perguntei assim que chegamos às escadas e não podíamos mais ser ouvidos.
— Ele estava no último ano quando a gente estava no primeiro — respondeu ela. — Você precisa vir mais rápido, ok? Estamos perdendo tempo.
Margo começou a subir os degraus de dois em dois, voando, uma das mãos no corrimão, e eu tentava acompanhá-la, sem sucesso.
Margo não praticava esportes, mas gostava de correr — às vezes eu a via correndo sozinha em Jefferson Park, ouvindo música. Eu, ao contrário, não gostava de correr. Aliás, eu não gostava de nada que envolvesse esforço físico. Mas naquele momento eu tentava manter o ritmo, limpando o suor da testa e ignorando a queimação nas pernas. Quando cheguei ao vigésimo quinto andar, Margo estava de pé no patamar ao final do lance de escada, à minha espera.
— Dê uma olhada — disse ela.
Ela abriu uma porta e de repente estávamos em uma sala enorme com uma mesa de carvalho do comprimento de dois carros, mais uma longa fileira de janelas que iam do chão ao teto.
— Sala de reuniões. A melhor vista do prédio inteiro. — Eu a segui enquanto ela caminhava de janela em janela. — Certo, ali fica Jefferson Park — disse ela, apontando. — Está vendo nossas casas? As luzes ainda estão apagadas, bom sinal. — Ela deu mais alguns passos. — Ali é a casa de Jase. Luzes apagadas, nada de carros de polícia. Excelente, embora talvez signifique que ele conseguiu chegar, o que é uma pena.
A casa de Becca ficava longe demais para ser vista, mesmo lá do alto. Margo ficou quieta por um instante, depois caminhou até o vidro e apoiou a testa ali.
Fiquei afastado, mas então ela agarrou minha camiseta e me puxou para perto da janela. Eu não queria o peso de nós dois sendo sustentado por uma única folha de vidro, mas ela continuou me puxando, e eu sentia seu punho na lateral do meu corpo, até que apoiei a testa no vidro o mais leve possível e dei uma olhada ao redor.
Do alto, Orlando era bem iluminada. Abaixo de nós dava para ver os sinais de pedestre vermelhos nos cruzamentos, e as luzes da rua subindo e descendo ao longo da cidade em uma grade perfeita até os limites do centro, e então começavam as ruas retorcidas e sem saída dos subúrbios infinitos de Orlando.
— É lindo — comentei.
Margo bufou com desdém.
— Sério? Você acha mesmo?
— Quer dizer, bem, talvez não — falei, embora fosse lindo. Quando eu via Orlando de um avião, a cidade se assemelhava a um cenário de LEGO mergulhado em um oceano de verde. Ali, à noite, parecia um lugar de verdade, mas pela primeira vez um lugar que eu enxergava.
Ao caminhar pela sala de reuniões e os outros escritórios naquele andar, consegui ver tudo: ali estava a escola. A Jefferson Park. E lá, a distância, a Disney. O Wet’n Wild. Ali, o estacionamento da lojinha vinte e quatro horas onde Margo pintara as unhas e eu lutara para recuperar o fôlego. Estava tudo ali: meu mundo inteiro, e eu conseguia vê-lo só de andar ao longo de um prédio.
— É mais impressionante — disse eu, em voz alta. — Assim, ao longe. Não dá para ver o desgaste das coisas, entende? Não dá para ver a poeira ou as ervas daninhas ou a tinta rachando. A gente enxerga o lugar da forma como alguém um dia o imaginou.
— De perto tudo é mais feio — disse ela.
— Não você — respondi sem pensar.
Mantendo a testa apoiada no vidro, ela se virou para mim e sorriu.
— Uma dica: você fica bonitinho quando está seguro de si. E menos quando não está. — Antes que eu pudesse dizer qualquer palavra, seus olhos se voltaram para a vista e ela começou a falar: — Eis o que não é bonito em tudo isso: daqui não se vê a poeira ou a tinta rachando ou sei lá o quê, mas dá para ver o que este lugar é de verdade. Dá para ver o quanto é falso. Não é nem consistente o suficiente para ser feito de plástico. É uma cidade de papel. Quer dizer, olhe só para ela, Q: olhe para todas aquelas ruas sem saída, aquelas ruas que dão a volta em si mesmas, todas aquelas casas construídas para virem abaixo. Todas aquelas pessoas de papel vivendo suas vidas em casas de papel, queimando o futuro para se manterem aquecidas. Todas as crianças de papel bebendo a cerveja que algum vagabundo comprou para elas na loja de papel da esquina. Todos idiotizados com a obsessão por possuir coisas. Todas as coisas finas e frágeis como  papel. E todas as pessoas também. Vivi aqui durante dezoito anos e nunca encontrei ninguém que se importasse realmente com qualquer coisa.
— Vou tentar não levar isso para o lado pessoal — comentei.
Estávamos os dois encarando a escuridão longínqua, as ruas sem saída e os lotes de um metro quadrado. Mas o ombro dela estava encostado em meu braço, e as costas de nossas mãos estavam se tocando, e embora eu não estivesse olhando para Margo, me apoiar naquele vidro era quase como me apoiar nela.
— Foi mal — disse ela. — Talvez as coisas tivessem sido diferentes para mim se eu tivesse passado mais tempo com você em vez de… ah. É só que… Deus! Eu me odeio tanto por me importar com meus, abre aspas, amigos. Quer dizer, só para constar, não é que eu esteja tão chateada com Jason. Ou com Becca. Ou até com Lacey, embora eu gostasse dela de verdade. Mas é que estava por um fio. Era um fio tênue, sim, mas era o que restava. E toda garota de papel precisa de pelo menos um fio, não é? E eis o que eu disse.
Eu disse:
— Você pode almoçar com a gente amanhã.
— É muito gentil — respondeu ela, a voz ficando mais baixa. Ela se virou para mim e assentiu ligeiramente. Eu sorri. Ela sorriu. Acreditei naquele sorriso.
Caminhamos até a escada e descemos correndo. Ao final de cada lance, eu pulava os últimos degraus e batia os calcanhares a fim de fazê-la rir, e ela ria. Eu achei que estivesse colocando Margo para cima. Achei que ela pudesse ser colocada para cima. Achei que talvez, se eu parecesse confiante, algo poderia acontecer entre nós. Eu estava enganado.

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