terça-feira, 29 de julho de 2014

19° Capitulo (2p) - Cidades de Papel

Na manhã de segunda-feira, depois de três longas horas sozinho com oitocentas palavras de Ovídio, caminhei ao longo dos corredores do colégio me sentindo como se meu cérebro fosse escorrer pelas orelhas. Mas eu havia me saído bem. A gente tinha uma hora e meia de almoço, para dar um tempo a fim de nossas cabeças se firmarem de novo antes de começar o segundo tempo de provas do dia.
Radar me esperava junto a meu armário.
— Acabei de bombar em espanhol — disse ele.
— Tenho certeza de que você foi bem.
Ele ia para Dartmouth com uma superbolsa de estudos. Era bastante inteligente.
— Cara, sei não. Eu fiquei cochilando no meio da prova oral. Mas, escute só, fiquei acordado metade da noite escrevendo um programa. É muito maneiro. Ele permite que alguém entre com uma categoria, pode ser uma área geográfica ou uma família do reino animal, e então a pessoa pode ler as primeiras frases de até cem artigos do Omnictionary sobre o assunto em uma única página. Então, digamos que você esteja tentando encontrar um tipo específico de coelho, por exemplo, mas não consegue se lembrar do nome. Você pode ler a introdução sobre todas as vinte e uma espécies de coelho na mesma página em três minutos.
— E você fez isso na noite anterior às provas finais? — perguntei.
— É, eu sei. Eu mando para você por e-mail. É muito ninja.
E então Ben apareceu:
— Juro por Deus, Q, Lacey e eu ficamos conversando pela internet até as duas da madrugada, brincando naquele site, thelongwayround… E depois de montar todas as viagens que Margo poderia ter feito entre Orlando e aqueles cinco pontos do mapa, cheguei à conclusão de que eu estava errado o tempo todo. Ela não está em Orlando. Radar tem razão. Ela vai voltar no dia da colação de grau.
— Por quê?
— É o tempo certinho. Dirigir de Orlando até Nova York e depois para as montanhas, Chicago, Los Angeles e voltar para Orlando dá uma viagem de vinte e três dias exatos. E mais, é uma piada muito retardada, mas é uma piada no estilo Margo. Você deixa todo mundo pensar que você caiu fora. Envolve tudo numa aura de mistério para chamar a atenção geral. E então, exatamente quando a atenção começa a diminuir, você aparece na colação de grau.
— Não — contestei. — De jeito nenhum. Eu conhecia Margo melhor agora.
Sim, ela queria atenção. Eu concordava com isso. Mas ela não era de brincadeira. Não se contentava com truques bobos.
— Estou dizendo, cara. Procure por ela na colação de grau. Ela vai estar lá.
Apenas sacudi a cabeça. Como todo mundo tinha o mesmo intervalo de almoço, a cantina estava bem lotada, então exercemos nosso direito de alunos do último ano e dirigimos até o Wendy’s.
Tentei me concentrar na prova de cálculo, mas comecei a achar que talvez a teoria fizesse sentido. Se Ben estivesse certo sobre a viagem de vinte e três dias, aquilo era muito interessante, de verdade. Talvez fosse isso que ela planejasse no caderno preto, uma viagem longa e solitária.
Não explicava tudo, mas realmente combinava com o lado planejador de Margo. Não que isso me aproximasse dela. Por mais difícil que seja definir um ponto exato em um pedaço rasgado de mapa, é muito mais difícil quando esse ponto está em movimento.


Depois de um longo dia de provas, voltar para a confortável impenetrabilidade da “Canção de mim mesmo” foi quase um alívio.
Eu tinha chegado a um trecho esquisito do poema — depois de todo aquele tempo escutando e ouvindo as pessoas, e então viajando junto a elas, Whitman para de ouvir e de visitar, e começa a se tornar outras pessoas. Tipo, habitar mesmo dentro delas.
Ele conta a história de um capitão de navio que salvou todo mundo com seu barco, exceto a si.
O poeta é capaz de contar a história, ele argumenta, porque se tornou o capitão. E ele escreve: “Eu sou o homem… eu sofri… eu estava lá.”
Algumas linhas depois, fica ainda mais claro que Whitman não precisa mais escutar para se transformar no outro:
“Não pergunto para o ferido como ele se sente… eu viro o ferido.”
Apoiei o livro na cama e fiquei deitado de lado, fitando a janela que sempre houve entre nós dois. Não é suficiente vê-la e ouvi-la.
Para encontrar Margo Roth Spiegelman, é preciso tornar-se Margo Roth Spiegelman.
E eu tinha feito várias coisas que ela talvez pudesse ter feito: tinha juntado o par mais estranho para o baile de formatura. Tinha acalmado os vilões da luta de classes no colégio. Conseguira me sentir à vontade dentro de uma casa infestada de ratos, o lugar onde ela pensava com mais liberdade. Tinha visto. Tinha escutado. Mas ainda não conseguia me transformar no sujeito ferido.


No dia seguinte, me arrastei pelas provas de física e de ciências políticas, e então fiquei acordado até as duas da manhã na terça-feira, concluindo minha redação de fim de curso sobre Moby Dick para a aula de inglês.
Ahab era um herói, concluí. Eu não tinha nenhum motivo especial para chegar a essa conclusão — especialmente considerando-se que não tinha lido o livro —, mas resolvi que ele era um herói e agi de acordo.
A semana curta de provas significava que quarta-feira era nosso último dia de aulas. E durante todo o dia foi difícil não perambular pelo colégio pensando na finitude daquilo tudo: a última vez que eu ficava de pé em um círculo de amigos diante da sala de ensaios sob a sombra de um carvalho que protegera gerações de integrantes geeks da banda.
A última vez que eu comia pizza na cantina com Ben. A última vez que me sentava na escola, rabiscando uma redação em um caderno azul e sentindo cãibras na mão. A última vez que eu conferia a hora no relógio. A última vez que via Chuck Parson rondando pelos corredores, um sorrisinho no rosto. Meu Deus. Eu estava me tornando nostálgico a respeito de Chuck Parson.
Algo de muito errado estava acontecendo dentro de mim. Deve ter sido assim para Margo também. Com todo aquele planejamento, ela devia saber que estava indo embora, e nem mesmo ela era capaz de ficar completamente imune a essa sensação. Ela vivera bons momentos ali. E no último dia é difícil recordar os momentos ruins, pois, de um jeito ou de outro, ela havia passado uma vida ali dentro, assim como eu.
A cidade era de papel, mas as memórias, não. Todas as coisas que eu tinha feito ali, todo o amor, a pena, a compaixão, a violência e o desprezo estavam aflorando em mim.
Aquelas paredes de tijolo de concreto pintado de branco. Minhas paredes brancas. As paredes brancas de Margo. Fomos prisioneiros delas por muito tempo, presos em sua barriga feito Jonas na baleia.
Ao longo do dia, fiquei pensando se talvez não tivesse sido essa sensação o motivo de ela ter planejado tudo de modo tão intricado e preciso: mesmo que se queira ir embora, é muito difícil. É necessário preparar-se, e talvez ficar sentada naquele centro comercial rabiscando seus planos fosse um exercício tanto intelectual quanto emocional — o jeito de Margo de se imaginar abraçando seu destino.
Ben e Radar tinham ainda uma maratona de ensaios com a banda, para terem certeza de que mandariam bem na hora de tocar “Pompa e circunstância” durante a colação de grau.
Lacey me ofereceu uma carona, mas eu resolvi limpar meu armário, porque realmente não queria ter que voltar ali e sentir meus pulmões se afogando de novo na nostalgia perversa.
Meu armário estava um chiqueiro legítimo — metade lata de lixo, metade depósito de livros. Eu lembrava que no armário dela todos os livros estavam organizadinhos quando Lacey o abriu, como se ela fosse voltar para o colégio no dia seguinte.
Peguei uma lata de lixo, puxei para junto da fileira de armários e abri minha porta. Comecei recolhendo uma foto minha com Radar e Ben fazendo palhaçadas. Guardei na mochila e iniciei o processo desagradável de recordar um ano de porcaria acumulada — chiclete embrulhado em papel, canetas sem tinta, guardanapos engordurados — e jogar tudo no lixo.
O tempo todo, pensei: Nunca mais vou fazer isso de novo, nunca mais vou voltar aqui, este nunca mais vai ser meu armário, Radar e eu nunca mais vamos trocar bilhetes durante a aula de cálculo, nunca mais vou ver Margo neste corredor de novo.
Aquela foi a primeira vez na minha vida em que tantas coisas nunca mais iriam acontecer. E finalmente aquilo foi demais para mim. Eu não era capaz de afastar aquela sensação, e a sensação estava se tornando insuportável.
Enfiei a mão bem fundo no armário e puxei tudo para a lata de lixo — fotos, bilhetes, livros. Deixei o armário aberto e fui embora. Assim que passei diante da sala de ensaios, ouvi o som abafado de “Pompa e circunstância” através da parede.
Continuei caminhando. Estava quente lá fora, porém menos que o habitual. Estava suportável. Tem calçadas em quase todo o caminho até em casa, pensei. Então continuei caminhando. E, por mais paralisantes e perturbadores que fossem os “nunca mais”, o ato de sair pela última vez do colégio foi perfeito. Puro.
A forma mais destilada possível de libertação. Tudo o que mais importava, exceto por uma foto ruim, estava na lata de lixo, mas a sensação era fantástica.
Comecei a correr, querendo me distanciar ainda mais do colégio. É muito difícil ir embora — até você ir embora de fato. E então ir embora se torna simplesmente a coisa mais fácil do mundo. Enquanto corria, sentia que estava me transformando em Margo pela primeira vez. Eu sabia: ela não está em Orlando. Não está na Flórida.
Ir embora é muito bom, uma vez que você vai. Se eu estivesse em um carro, e não a pé, talvez também tivesse seguido viagem. Ela havia partido e não iria voltar para a colação de grau ou para coisa nenhuma. Eu tinha certeza disso agora.
Estou indo embora, e o ato de ir embora é tão empolgante que sei que nunca mais vou voltar. Mas e depois? Você continua simplesmente indo embora dos lugares, abandonando-os, vadiando uma jornada perpétua?
Ben e Radar passaram por mim no PNC a uns quatrocentos metros de Jefferson Park. Ben pisou no freio no meio da Lakemont, apesar do trânsito, e eu corri para dentro do carro. Eles queriam jogar Resurrection lá em casa, mas tive de negar, porque eu estava mais perto do que nunca.

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