Quando entrei de carro no estacionamento, reparei que alguém tinha tapado o buraco que havíamos feito no compensado com fita crepe. Quem será que esteve ali depois de nós?
Dirigi até os fundos e parei ao lado de uma caçamba de lixo enferrujada que havia décadas não via um caminhão de coleta.
Imaginei que poderia arrancar a fita caso precisasse entrar de novo na área das lojas e comecei a andar até a frente do prédio até que reparei que nenhuma dobradiça das portas de ferro dos fundos estava visível. Graças a Margo, aprendi uma coisinha ou outra a respeito de dobradiças e me dei conta do motivo pelo qual a gente não tinha conseguido abrir aquelas portas: elas abriam para dentro.
Caminhei até a entrada da empresa de financiamento imobiliário e empurrei. A porta abriu sem qualquer resistência.
Meu Deus, como somos burros!
Na certa, quem tomava conta do prédio sabia que as portas não estavam trancadas, o que tornava aquela fita tampando o buraco mais estranha ainda.
Vasculhei a mochila que havia arrumado pela manhã, peguei a lanterna superpotente de meu pai e iluminei o cômodo. Algo de tamanho considerável fugiu correndo pelas vigas. Senti um arrepio. Pequenas lagartixas percorriam o caminho iluminado. Um único feixe de luz vindo do teto iluminava a parte da frente, e, embora a folha de compensado deixasse entrar um pouco da luz do sol, eu basicamente dependia da lanterna.
Caminhei por entre as mesas, examinando os objetos que havíamos encontrado nas gavetas e deixado para trás. Era muito bizarro ver uma mesa depois da outra com o mesmo calendário sem nenhuma anotação: Fevereiro de 1986. Fevereiro de 1986. Fevereiro de 1986. Junho de 1986. Fevereiro de 1986.
Voltei e iluminei a mesa no centro da sala. O calendário havia sido alterado para junho. Eu me aproximei e analisei o papel, esperando ver a borda serrilhada dos meses arrancados ou alguma indicação de que a força de uma caneta pudesse ter marcado as páginas, mas não havia nada diferente dos outros calendários, exceto a data.
Com a lanterna encaixada entre o pescoço e o ombro, voltei a examinar as gavetas, olhando com cuidado especial as da mesa junho de 1986: guardanapos, lápis bem apontados, documentos sobre financiamentos endereçados a Dennis McMahon, um maço vazio de Marlboro Gold e um vidro de esmalte vermelho quase cheio.
Com a lanterna em uma das mãos e o esmalte na outra, examinei o vidro bem de perto. Era tão vermelho que chegava a ser quase preto. Já tinha visto aquela cor. No painel do carro de minha mãe, naquela noite. De repente, os barulhos de movimento nas vigas e os rangidos do prédio se tornaram irrelevantes — fui dominado por uma euforia louca.
Claro que eu não tinha como saber se era o mesmo vidrinho de esmalte, mas definitivamente era a mesma cor. Girei o vidro e vi em seu exterior, sem sombra de dúvida, uma manchinha azul. Dos dedos dela, sujos de tinta spray azul.
E então tive certeza. Ela esteve ali depois de nos despedirmos naquela manhã. Talvez ainda estivesse ali. Talvez só fosse aparecer tarde da noite. Talvez tivesse sido ela quem tapara o buraco com fita para manter a privacidade.
Naquele instante, resolvi ficar ali até o dia seguinte. Se Margo tinha dormido ali, eu também podia. E assim começou um curto diálogo de mim comigo mesmo: Eu: Mas e os ratos? Eu: É, mas parece que eles ficam lá no teto. Eu: E as lagartixas? Eu: Ah, fala sério. Você costumava arrancar o rabo delas quando era criança. Você não tem medo de lagartixa. Eu: Mas e os ratos? Eu: Ratos não machucam ninguém. Eles têm mais medo de você do que você deles. Eu: Ok, mas e os ratos? Eu: Cale a boca.
No final das contas, os ratos não importavam, porque eu estava em um lugar onde Margo estivera ainda em vida. Eu estava em um lugar que a vira depois de mim, e o calor desse pensamento tornava aquele centro comercial quase confortável.
Quer dizer, eu não me sentia como uma criancinha abraçada pela mãe nem nada assim, mas minha respiração cessava a cada ruído. E, ao me sentir à vontade, achei mais fácil vasculhar o ambiente.
Eu sabia que havia mais a encontrar, e naquele instante eu me sentia pronto para isso.
Deixei o escritório e me enfiei por uma Caverna do Troll até a sala com as estantes labirínticas. Percorri os corredores por um tempo. No final do cômodo, atravessei a Caverna do Troll seguinte até a sala vazia. Sentei-me no carpete enrolado, que estava encostado na parede mais distante. A tinta branca esmigalhou em minhas costas. Permaneci ali por um instante, o suficiente para o facho de luz que entrava pelo buraco no teto se arrastar uns dois centímetros ao longo do chão, enquanto eu me habituava aos barulhos.
Depois de um tempo, fiquei entediado e rastejei pela última Caverna do Troll, entrando na loja de suvenires. Dei uma olhada nas camisetas. Tirei do mostruário a caixa com os panfletos turísticos e avaliei cada um deles, à procura de alguma mensagem rabiscada com a letra de Margo, mas não encontrei nada.
Voltei para a sala que agora eu chamava de biblioteca. Repassei os exemplares das Reader’s Digest e achei uma pilha de revistas National Geographic da década de 1960; a caixa, no entanto, estava coberta por tanta poeira que eu sabia que Margo não estivera ali.
Só encontrei provas de que uma pessoa havia morado ali quando voltei para a sala vazia. Na mesma parede que servia de apoio para o carpete enrolado, descobri nove buracos de tachinha em meio à tinta descascada. Quatro deles formavam mais ou menos um quadrado, dentro do qual estavam os outros cinco. Pensei que talvez Margo tivesse passado tempo suficiente ali para pendurar pôsteres, muito embora não faltasse nada tão óbvio no quarto dela quando investigamos ali.
Desenrolei um pouco o carpete e imediatamente descobri mais: uma caixa vazia e achatada que um dia contivera vinte e quatro barrinhas de cereal. E fiquei imaginando Margo recostada na parede, usando o carpete bolorento como assento, comendo uma barrinha de cereal.
Está completamente sozinha, e isso é tudo que tem para comer. Talvez dirija uma vez por dia até uma loja de conveniência para comprar um sanduíche ou um Mountain Dew, mas ela passa a maior parte do dia ali, em cima ou perto do carpete. É uma imagem triste demais para ser verdade: tudo isso me parece tão solitário e tão diferente dela. Mas todos os indícios dos últimos dez dias levavam a uma conclusão surpreendente: Margo era — pelo menos parte do tempo — muito pouco como ela própria.
Desenrolei um pouco mais o carpete e encontrei uma manta azul de tricô, quase tão fina quanto uma folha de jornal. Segurei e a levei até o rosto, e, meu Deus. O cheiro dela. O xampu de lilás e o hidratante de amêndoas dela, e por trás daquilo tudo o leve toque adocicado da pele em si. E consegui imaginá-la uma vez mais: todas as noites ela desenrola metade do carpete para que o osso do quadril não bata no concreto duro quando ela deita de lado. Ela engatinha para debaixo da coberta, usa o restante do carpete como travesseiro e dorme.
Mas por que ali? Como isso pode ser melhor do que a casa dela? E, se é tão legal assim, por que ir embora? São essas coisas que eu não consigo entender, e me dou conta de que é porque eu não conhecia Margo.
Eu conhecia o cheiro dela, e sabia como ela se comportava diante de mim, e diante dos outros, e eu sabia que ela gostava de Mountain Dew e de aventuras e de gestos teatrais, que era engraçada e inteligente e simplesmente mais do que o restante de nós, em geral. Mas eu não sabia o que a havia trazido até aquele lugar, ou o que a havia mantido nele, ou o que a levara a ir embora. Eu não sabia por que ela possuía milhares de vinis mas nunca sequer falou para ninguém que ao menos gostava de música. Eu não sabia o que ela fazia à noite, com as persianas fechadas, a porta trancada, na privacidade selada de seu quarto. E talvez fosse isso que eu precisasse fazer, acima de qualquer coisa. Eu precisava descobrir como Margo era quando não estava sendo Margo.
Fiquei deitado ali por um tempo, sentindo o cheiro suave da manta, olhando para o teto. Através do buraco eu via uma faixa de céu no fim de tarde, como uma tela azul rasgada nas beiradas. Era o lugar perfeito para dormir: dava para ver as estrelas sem se molhar, caso chovesse.
Liguei para meus pais, só para dar notícias. Meu pai atendeu e eu disse que estávamos no carro, indo encontrar Radar e Angela, e que eu ia passar a noite na casa de Ben. Ele me disse para não beber, e eu respondi que não beberia; ele falou que estava orgulhoso de mim por eu estar indo à formatura, e me perguntei se ele ficaria orgulhoso de mim por eu estar fazendo o que de fato estava fazendo.
O lugar era um tédio. Tipo, se fosse possível superar os roedores e os rangidos estranhos do prédio caindo aos pedaços, não havia mais nada a se fazer. Nada de internet, tevê, música. Eu estava entediado, então mais uma vez fiquei meio confuso com o fato de Margo ter escolhido aquele lugar, afinal, ela sempre me pareceu uma pessoa com tolerância muito limitada para o tédio.
Talvez ela gostasse da ideia de pobreza? Improvável. Margo usava calça de marca para invadir o SeaWorld.
Foi a falta de estímulos alternativos que me levou de volta à “Canção de mim mesmo”, o único presente óbvio que ela me deixara. Caminhei até uma parte do piso manchada pela água e que ficava bem embaixo do buraco no teto, sentei de pernas cruzadas e inclinei o corpo para que o feixe de luz iluminasse o livro. E, por alguma razão, finalmente consegui ler o poema.
O problema é que o início é muito lento: é só uma espécie de introdução gigante, e só lá pelo nonagésimo verso Whitman enfim começa a contar uma história, e foi então que consegui engrenar na leitura.
Whitman está sentado por aí (o que ele chama de “vadiar”) na relva, e então:
Uma criança disse, O que é a relva? trazendo um tufo em suas mãos; O que dizer a ela?… sei tanto quanto ela o que é a relva.
Vai ver é a bandeira do meu estado de espírito, tecida de uma substância de esperança verde.
Lá estava a esperança sobre a qual a Dra. Holden havia falado: a relva como metáfora para a esperança dele. Mas não é só isso. Ele continua:
Vai ver é o lenço do Senhor, Um presente perfumado e o lembrete derrubado por querer
A relva é uma metáfora para a grandiosidade de Deus ou algo assim…
Vai ver a relva é a própria criança…
E então logo depois:
Vai ver é um hieróglifo uniforme, E quer dizer, Germino tanto em zonas amplas quanto estreitas, Grassando em meio a gente negra e branca
Então talvez a relva fosse uma metáfora para nossa igualdade e nossa interconectividade fundamental, como falara a Dra. Holden. E enfim ele conclui a respeito da relva:
E agora a relva parece a cabeleira comprida e bonita dos túmulos.
Então a relva também é a morte: ela germina de nossos corpos enterrados. A relva era tantas coisas ao mesmo tempo que chegava a ser desconcertante. Então a relva é uma metáfora para a vida, para a morte, para a igualdade, para a conectividade, para as crianças, para Deus e para a esperança.
Eu não conseguia concluir qual dessas ideias era o cerne do poema, se é que alguma delas era. Mas pensar sobre a relva e sobre todas as diferentes maneiras de enxergá-la me fez pensar em todas as maneiras com que eu enxergava e deixava de enxergar Margo. E não eram poucas.
Até então eu vinha me concentrando no que ela havia se tornado, mas agora, com a cabeça tentando entender a multiplicidade contida na relva e com o cheiro dela na manta ainda em minha garganta, eu percebia que a questão mais importante era quem eu estava procurando.
Se “O que é a relva?” era uma pergunta tão complicada, pensei, então “Quem é Margo Roth Spiegelman?” devia ser tão complicada quanto. Como uma metáfora que é fonte de incompreensão por sua onipresença, em tudo o que ela deixara para mim havia espaço suficiente para criar cenários infinitos em potencial, para suscitar configurações incalculáveis de Margos.
Eu precisava estreitar as possibilidades, e desconfiava de que havia detalhes ali que eu estava visualizando da forma errada, ou que simplesmente não estava enxergando. Eu queria arrancar o telhado e iluminar o lugar todo, para assim ver tudo por inteiro, em vez de apenas um facho de luz por vez.
Joguei o cobertor de Margo e gritei, alto o suficiente para todos os ratos me escutarem:
— EU VOU ENCONTRAR ALGUMA COISA AQUI!
Vasculhei cada uma das mesas de novo, mas estava cada vez mais óbvio que Margo só tinha usado a mesa que tinha o esmalte na gaveta e o calendário com a página no mês de junho. Passei de novo pela Caverna do Troll e retornei à biblioteca, caminhando mais uma vez por entre as estantes de metal abandonadas. Em cada uma, eu procurava por trechos sem poeira que me indicassem que Margo tinha usado aquele espaço para alguma coisa, porém não encontrei nada.
Mas aí minha lanterna iluminou algo no alto da prateleira no canto da sala, bem perto da vitrine coberta de compensado. Era a lombada de um livro.
Chamava-se Estradas americanas: seu guia de viagens e tinha sido publicado em 1998, depois de aquele local ter sido abandonado.
Folheei as páginas com a lanterna encaixada entre o pescoço e o ombro. O livro listava centenas de atrações a visitar, desde a maior bola de barbante do mundo, em Darwin, Minnesota, até a maior bola de selos do mundo, em Omaha, Nebraska.
Alguém havia feito orelhas em diversas páginas aparentemente aleatórias. O guia não estava muito empoeirado. Talvez o SeaWorld fosse apenas a primeira parada de algum tipo de aventura turbulenta. Sim. Isso fazia mais sentido. Isso era a cara de Margo.
De algum modo, ela encontrou este lugar, veio até aqui para juntar alguns utensílios, passou uma noite ou duas e pegou a estrada. Consigo imaginá-la vasculhando as bugigangas de turista.
À medida que a luz foi diminuindo através dos buracos no teto, encontrei mais livros no topo de outras prateleiras: Guia do aventureiro para o Nepal; Grandes atrações do Canadá; Estados Unidos de carro; Guia Fodor das Bahamas; Vamos para o Butão.
Não parecia haver qualquer conexão entre eles, exceto o fato de serem todos guias de viagem e de terem sido publicados depois de o centro comercial ter sido abandonado. Encaixei a lanterna no queixo, arrumei os livros em uma pilha que ia da minha barriga até o peito, e os carreguei para a sala vazia que eu agora visualizava como quarto.
E assim, no final das contas, acabei passando a noite de formatura com Margo, só que não exatamente do jeito como eu havia sonhado. Em vez de invadirmos a festa juntos, eu me sentei no carpete com a manta esfarrapada dela sobre os joelhos, lendo um a um os guias de viagem sob a luz da lanterna e sentado no escuro enquanto as cigarras cantarolavam acima e ao redor.
Talvez ela tivesse sentado ali na escuridão cacofônica e sentido uma espécie de desespero tomar conta de si, e talvez tenha achado impossível despensar o pensamento sobre a morte. Pelo menos era o que eu imaginava, é claro.
Mas também imagino outra coisa: Margo pegando os livros em vários bazares de fundo de quintal, comprando todos os guias de viagem que conseguisse encontrar por vinte e cinco centavos ou menos. E então vindo até aqui — antes mesmo de desaparecer — para ler os livros longe de olhares bisbilhoteiros. Lendo os guias, tentando escolher um destino. Isso. Ela cairia na estrada, fugindo, um balão voando pelo céu, percorrendo centenas de quilômetros por dia com a ajuda perpétua do vento em popa. E nesse cenário ela estava viva.
Será que ela havia me levado até ali para me dar as pistas que me indicariam seu roteiro? Talvez. É claro que eu não estava nem um pouco perto desse roteiro. A julgar pelos livros, ela poderia estar na Jamaica ou na Namíbia, em Topeka ou Pequim. Mas eu estava apenas começando a procurar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Por favor evite xingamentos