Vamos para os fundos do prédio e encontramos quatro portas de ferro trancadas e mais capinzal, com algumas pequenas palmeiras pontilhando o enorme gramado seco. O fedor é ainda pior aqui, e tenho medo de continuar caminhando.
Ben e Radar estão logo atrás de mim, me flanqueando. Juntos, formamos um triângulo, andando devagar, os olhos vasculhando a área.
— É um texugo! — grita Ben. — Ah, graças a Deus! É um texugo. Caramba.
Radar e eu nos afastamos do prédio para nos juntar a Ben diante de uma vala rasa. Um texugo enorme, inchado e emaranhado jaz morto, sem nenhum trauma visível, com tufos de pelo soltos e uma das costelas exposta. Radar se afasta com ânsia de vômito, mas consegue segurar. Eu me agacho ao lado dele e coloco um braço em suas costas.
— Nunca fiquei tão feliz em ver a porra de um texugo morto — diz ele assim que recupera o fôlego.
Mas, de qualquer modo, não consigo imaginar Margo viva neste lugar. E então percebo que talvez o livro de Whitman tenha sido um bilhete suicida. Penso nas palavras que ela grifou: “Morrer é diferente do que se imaginava, bem mais afortunado.” “Me entrego à terra pra crescer da relva que amo, / Se me quiser de novo me procure sob a sola de suas botas.”
Por um instante sinto um espasmo de alívio ao lembrar do último verso do poema: “Em algum lugar eu paro e espero você.” Mas aí penso que quem “espera” não precisa estar necessariamente vivo. Pode ser um corpo.
Radar se afastou do texugo morto e está forçando a maçaneta de uma das quatro portas de ferro. Tenho vontade de rezar pelo bicho — de recitar o kadish em sua homenagem —, mas nem sei como fazer isso. Tenho muita pena dele, tenho pena pela felicidade que senti ao vê-lo morto.
— Está cedendo — grita Radar para nós. — Ajudem aqui.
Ben e eu o seguramos pela cintura e o puxamos. Radar apoia um pé na parede para dar impulso e de repente os dois estão em cima de mim, a camiseta suada de Radar bem na minha cara. Por um momento, fico animado, pensando que conseguimos. Mas então vejo Radar segurando a maçaneta.
Fico de pé e olho a porta. Ainda está trancada.
— Que merda de maçaneta velha do inferno — diz Radar.
Eu nunca o tinha visto xingar assim.
— Tudo bem — falei. — Tem um jeito. Tem que ter.
Voltamos para a frente do prédio. Nenhuma porta, nenhum buraco, nenhuma passagem visível. Mas preciso entrar. Ben e Radar tentam arrancar as folhas de compensado das vitrines, mas estão todas pregadas. Radar chuta uma delas, mas não cede. Ben olha para mim.
— Uma dessas folhas não tem vidro atrás — diz ele, correndo para longe do prédio, os tênis levantando areia a cada passada. Lanço um olhar confuso para ele, que me explica:
— Vou me atirar contra o compensado.
— Você não pode fazer isso.
Ele é o menor de nós três. E, se alguém tiver que se jogar nas vitrines, esse alguém deve ser eu. Ben cerra as mãos e em seguida estica os dedos. À medida que caminho em direção a ele, ele começa a falar comigo:
— Quando minha mãe quis evitar que eu apanhasse no terceiro ano do fundamental, ela me matriculou no tae kwon do. Só fui a três aulas, e só aprendi uma coisa, mas até que veio a calhar: a gente assistiu ao mestre socando um bloco grosso de madeira até ele quebrar, e todo mundo ficou embasbacado, se perguntando como ele conseguia fazer aquilo, e ele falou que, se você agir como se sua mão fosse atravessar o bloco, se você acreditar que sua mão vai atravessar o bloco, então você consegue.
Estou prestes a refutar essa lógica idiota quando ele desata a correr, passando por mim em um borrão. E continua a acelerar à medida que vai se aproximando da folha de madeira, e então, sem nem um pingo de medo, dá um salto no último instante, vira o corpo de lado — golpeando com o ombro para aumentar o impacto — e acerta a madeira. Eu meio que espero que ele atravesse o compensado, deixando um buraco com seu formato como em um desenho animado. Em vez disso, ele quica de volta e cai de bunda em um pedaço de grama resplandecente em meio a um mar de areia. Então se contorce no chão, esfregando o ombro.
— Quebrou — anuncia ele.
Achando que ele está falando do ombro, corro em sua direção, mas Ben se levanta e vejo uma rachadura do tamanho dele no compensado. Começo a chutar a madeira, e a rachadura aumenta. Radar e eu enfiamos os dedos na fenda e começamos a puxar.
Estreito os olhos, para evitar que o suor caia neles, e sacudo o compensado com todas as minhas forças, até que a rachadura começa a se expandir, cheia de farpas. Prosseguimos em silêncio até que Radar se cansa e é substituído por Ben. Enfim conseguimos abrir um buraco grande no compensado.
Passo os pés para dentro e caio às cegas no que parece ser uma pilha de papéis. O buraco deixa um pouco de luz passar, mas não consigo descobrir o tamanho do cômodo ou se existe um teto. O ar está tão parado e quente que inspirar e expirar parecem a mesma coisa.
Viro o corpo e meu queixo bate na testa de Ben. Eu me flagro sussurrando, embora não haja motivos para tal:
— Você tem uma…
— Não — sussurra ele de volta antes de eu terminar a pergunta.
— Radar, você trouxe uma lanterna?
Ouço Radar passando pelo buraco.
— Tem uma em meu chaveiro. Mas não é grande coisa.
Ele acende a luz e, mesmo sem dar para ver nada direito ainda, percebo que estamos em uma sala grande que é praticamente um labirinto de estantes de metal. As folhas no chão são de um velho calendário, os dias estão espalhados pelo cômodo, amarelados e mordiscados por ratos. Pergunto-me se um dia este lugar foi uma pequena livraria, embora há décadas as prateleiras não guardem nada além de poeira. Seguimos em fila, Radar na frente.
Ouço um rangido acima de nós e paramos de nos mexer. Tento conter o pânico. Ouço tanto a respiração de Radar quanto a de Ben, além do barulho dos pés deles sobre os papéis. Quero sair dali, mas até onde sei o rangido pode vir de Margo. Ou de viciados em crack.
— É só o prédio se assentando — sussurra Radar, soando menos convicto do que de costume.
Fico ali, incapaz de me mexer. Depois de um instante, ouço a voz de Ben:
— Na última vez que senti tanto medo, mijei nas calças.
— Na última vez que senti tanto medo — diz Radar —, foi porque tive que enfrentar o Lorde das Trevas para tornar o mundo um local seguro para os bruxos.
Fiz uma tentativa meio caída:
— Na última vez que senti tanto medo, tive que dormir no quarto de minha mãe.
Ben solta uma risada.
— Q, se eu fosse você, ficaria com medo assim Todas. As. Noites.
Não estou no clima para rir, mas a gargalhada deles acaba tornando aquele lugar mais seguro, e assim iniciamos a exploração.
Caminhamos entre todas as fileiras de estantes e não encontramos nada além de algumas edições da Reader’s Digest da década de 1970 jogadas no chão. Depois de um tempo, meus olhos se habituam à escuridão e, sob a luz parda, começamos a caminhar em direções e velocidades diferentes.
— Ninguém sai até todo mundo sair — sussurro, e eles sussurram “beleza” como resposta.
Eu me aproximo de uma parede lateral e encontro a primeira prova de que alguém esteve ali depois que o lugar foi abandonado. Um túnel em semicírculo foi recortado na parede, mais ou menos na altura de minha cintura. As palavras caverna do troll estavam pichadas com spray laranja bem acima do buraco, com uma setinha prestativa apontando para o centro.
— Gente — diz Radar, tão alto que chega a quebrar o clima por um instante.
Sigo a voz dele e o vejo de pé diante da parede oposta, a lanterna iluminando mais uma Caverna do Troll.
A pichação não tem muito a cara de Margo, mas é difícil dizer ao certo. Só a vi usar tinta spray para pichar uma única letra. Radar ilumina o buraco enquanto eu me abaixo e o atravesso antes de todo mundo. A sala seguinte está completamente vazia, exceto por um carpete enrolado em um canto.
À medida que a luz da lanterna vai varrendo o chão, vejo no concreto as marcas de cola de onde o carpete ficava. Percebo que, do outro lado da sala, há outro buraco na parede, dessa vez sem pichação. Atravesso mais essa Caverna do Troll e chego a uma sala cheia de cabides de roupa, os postes de aço ainda presos às paredes manchadas pela infiltração.
Este cômodo é mais iluminado do que os anteriores, e levo um tempo para perceber que isto se deve aos inúmeros buracos no telhado: o papel de alcatrão pende lá do alto e eu noto os pontos nos quais dá para ver o teto vergando contra as vigas de aço.
— Uma loja de suvenires — sussurra Ben na minha frente, e de cara eu sei que ele está certo.
No centro da loja, cinco mostruários formam um pentágono. O vidro que um dia separou os turistas das porcarias que eles compram está quase todo estilhaçado e jaz em cacos pelo chão. A tinta cinzenta está descascando da parede em padrões estranhos e bonitos, cada polígono de tinta rachada como se fosse um floco de neve da deterioração.
No entanto, estranhamente, ainda existem alguns produtos: um telefone do Mickey que reconheço de algum recôndito da infância. Camisetas SUNNY ORLANDO comidas por traças, mas ainda dobradas e dispostas na vitrine, cobertas de cacos de vidro.
Sob os mostruários, Radar encontra uma caixa repleta de mapas e panfletos turísticos antigos com propagandas do Gator World, do Crystal Gardens e de outros parques que não existem mais. Ben acena para mim e, em silêncio, aponta um brinquedinho de jacaré feito de vidro verde, sozinho no mostruário, quase totalmente coberto de poeira. Este é o valor dos nossos suvenires: não se pode dar essa porcaria de presente.
Voltamos à sala vazia e à sala das estantes e rastejamos até a última Caverna do Troll. O lugar se assemelha a um escritório, só que sem os computadores, e parece ter sido abandonado às pressas, como se os funcionários tivessem sido abduzidos ou algo assim. Vinte mesas dispostas em quatro fileiras. Ainda há canetas em algumas, e todas têm folhas de calendário imensas repousando sobre o tampo. Em todos os calendários o tempo está parado para sempre em fevereiro de 1986.
Ben empurra uma cadeira forrada de tecido e ela gira, rangendo de forma rítmica. Há milhares de post-its com a logo da Martin-Gale Mortgage Corp. amontoados em uma pirâmide instável. Caixas abertas contêm pilhas de papel de velhas impressoras matriciais, detalhando as despesas e o lucro da Martin-Gale Mortgage Corp. Em uma das mesas, alguém montou um castelo de cartas de um único andar com panfletos de empreendimentos imobiliários.
Espalho os panfletos, imaginando que talvez haja ali alguma pista, mas não. Radar dá uma olhada nos papéis e sussurra:
— Nada após 1986.
Começo a revirar as gavetas e encontro cotonetes e broches. Canetas e lápis embrulhados em dúzias em caixinhas vagabundas de papelão com letras e design retrô. Guardanapos. Um par de luvas de golfe.
— Alguma coisa que indique que alguém esteve aqui nos últimos, digamos, vinte anos? — pergunto.
— Nada além das Cavernas de Troll — responde Ben.
O lugar parece uma tumba, tudo coberto de poeira.
— Então por que ela fez a gente vir até aqui? — pergunta Radar.
Voltamos a falar em nosso tom de voz normal.
— Sei lá — digo. Obviamente Margo não está aqui.
— Alguns pontos estão menos empoeirados — diz Radar. — A sala vazia tem um retângulo inteiro sem poeira, como se algo tivesse sido mudado de lugar. Mas não sei.
— E tem aquela parte pintada — diz Ben.
Ele está apontando, e a lanterna de Radar mostra um pedaço da parede no outro extremo do escritório com uma demão de tinta branca, como se alguém tivesse pensado em reformar o lugar, mas tivesse mudado de ideia meia hora depois.
Caminho até a parede e, de perto, vejo que a tinta está cobrindo uma pichação vermelha. Mas só dá para ver uns filetes escapando por baixo da tinta branca — não o suficiente para entender o que é.
No chão, junto à parede, há uma lata de tinta aberta. Eu me ajoelho e enfio o dedo nela. A superfície está endurecida, porém se rompe facilmente, e meu dedo volta coberto de branco. Deixo a tinta escorrer pelo dedo em silêncio, pois todos nós chegamos à mesma conclusão: alguém esteve ali há pouco tempo; e então o prédio range de novo e Radar deixa a lanterna cair no chão e resmunga:
— Que sinistro.
— Gente — diz Ben.
A lanterna ainda está no chão, e eu dou um passo para trás a fim de pegá-la, mas então vejo Ben apontando. Apontando para a parede. De algum modo, a luz indireta fez a pichação aflorar sob a camada de tinta branca, revelando letras bastão sombreadas que reconheço imediatamente como as de Margo.
VOCÊ VAI PARA AS CIDADES DE PAPEL E NUNCA MAIS VOLTARÁ
Pego a lanterna e direciono o foco de luz para a faixa de tinta; a mensagem desaparece. Mas, quando ilumino outro pedaço da parede, ela aparece de novo.
— Merda — sussurra Radar.
— Cara, a gente pode ir embora agora? — pergunta Ben. — Porque na última vez que senti tanto medo… foda-se. Estou pirando aqui. Não tem nada de engraçado nesta merda.
'Não tem nada de engraçado nesta merda' deve ser o mais perto que Ben é capaz de chegar do terror que estou sentindo. E, para mim, é perto o suficiente.
Caminho depressa em direção à Caverna do Troll. Parece que as paredes estão se fechando sobre nós.
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