sexta-feira, 1 de agosto de 2014

12° Capitulo (3p) - Cidades de Papel

São 2h40. Lacey está dormindo. Radar está dormindo. Eu estou dirigindo. A estrada está deserta. Até os motoristas de caminhão foram dormir. Faz alguns minutos que não vejo faróis vindo no sentido contrário. Ben me mantém acordado, conversando comigo. Estamos falando de Margo.
— Você chegou a pensar em como a gente vai, tipo, achar Agloe? — pergunta ele.
— Hum, tenho uma ideia aproximada de como é o cruzamento — respondo. — E não é nada além de um cruzamento.
— E ela vai simplesmente estar sentada na esquina, em cima do capô do carro, com o queixo apoiado nas mãos, esperando por você?
— Isso certamente ajudaria — respondo.
— Cara, estou meio preocupado que você possa… tipo, se isso não sair do jeito que você está planejando… que você possa ficar muito decepcionado.
— Eu só quero encontrá-la — digo, porque é verdade. Quero que ela esteja viva e bem, que seja encontrada. Não quero perder o fio da meada. Tudo o mais é secundário.
— É, mas… sei lá — diz Ben. Posso sentir o olhar dele em mim, dando uma de Ben, o Sério. — Só… Só tenha em mente que às vezes o jeito como a gente pensa em alguém não é exatamente o jeito como essa pessoa é. Tipo, eu sempre achei Lacey bonita, legal, o máximo, mas agora que estou com ela de verdade… não é exatamente a mesma coisa. As pessoas são diferentes quando você sente o cheiro delas e as vê de perto, entendeu?
— Sei disso — respondo.
Sei exatamente por quanto tempo e com qual intensidade eu a imaginei da maneira errada.
— Só estou dizendo que, para mim, era fácil gostar de Lacey antes. É muito fácil gostar de alguém a distância. Mas, quando ela deixou de ser aquela coisa maravilhosa e inatingível e tal e começou a ser só uma menina que tem uma relação esquisita com a comida, de pavio curto e meio mandona, eu basicamente tive que começar a gostar de uma pessoa completamente diferente.
Dava para sentir minhas bochechas ficando vermelhas.
— Você está dizendo que não gosto da Margo de verdade? Depois de tudo isto, doze horas dentro deste carro, e você não acha que eu me importo com ela porque eu… — Paro de falar. — Você acha que só porque tem namorada pode subir em um pedestal e ficar me dando lição de moral? Você às vezes é tão…


E então paro de falar porque vejo, logo depois do alcance dos faróis, aquilo que muito em breve vai me matar. Duas vacas distraídas no meio da estrada. Elas se tornam visíveis de repente: uma vaca malhada na faixa da esquerda e, na nossa faixa, uma criatura imensa, da largura do nosso carro, absolutamente paralisada, a cabeça virada para trás, nos avaliando com olhos inexpressivos. É inteiramente branca, uma muralha branca de vaca que não se pode escalar ou passar por baixo ou desviar. Só o que se pode fazer é acertá-la em cheio. Eu sei que Ben também está vendo porque prendeu a respiração.
Dizem que a vida passa diante de nossos olhos em momentos como este, mas não é o que acontece comigo. Nada passa diante dos meus olhos exceto a imensidão impossível de pelo branco, a apenas um segundo de nós agora. Não sei o que fazer. Não, esse não é o problema. O problema é que não há nada a fazer, a não ser acertar a parede branca, matando tanto ela quanto nós todos.
Piso no freio, mas só por força do hábito, e não por esperança de que vá dar certo: não tem como fugir. Tiro as mãos do volante. Não sei por que faço isso, mas ergo as mãos como se estivesse me rendendo. E penso na coisa mais banal do mundo: não quero que isso aconteça. Não quero morrer. Não quero que meus amigos morram. E, honestamente, enquanto o tempo desacelera e minhas mãos estão no ar, me dou a chance de pensar em ainda mais uma coisa, e penso nela. Eu a culpo por esta caçada ridícula e fatal — eu a culpo por nos colocar em risco, por me transformar no tipo de imbecil que fica acordado a noite inteira e dirige depressa demais. Eu não estaria aqui morrendo se não fosse por ela. Teria ficado em casa, como sempre fiz, e estaria a salvo, teria feito a única coisa que sempre quis fazer: envelhecer.
Depois de abandonar o controle do veículo, fico surpreso ao ver a mão de alguém no volante. Fazemos uma curva antes que eu perceba que estamos virando, e então me dou conta de que Ben está puxando o volante na própria direção, girando o carro em uma tentativa desesperada de desviar da vaca, e então estamos no acostamento e logo em seguida na grama. Ouço os pneus girando à medida que Ben vira o volante com força na direção oposta. Paro de olhar. Não sei se meus olhos estão fechados ou se simplesmente pararam de enxergar. Meu estômago e meus pulmões colidem dentro de mim e se esmagam. Algo pontudo acerta minha bochecha. Nós paramos. Não sei por quê, mas toco meu rosto.
Tiro a mão e vejo que está suja de sangue. Toco meus braços em uma espécie de abraço, mas estou apenas verificando se estão no lugar, e estão. Olho para minhas pernas. Lá estão elas. Tem um pouco de vidro. Olho ao redor. Garrafas quebradas. Ben está olhando para mim, tocando o próprio rosto. Parece bem. Ele se abraça, exatamente como eu. Seu corpo ainda está funcionando. Ele fica só olhando para mim.
Vejo a vaca pelo retrovisor. E só agora, depois de um tempo, é que Ben começa a gritar. Ele me encara e grita, a boca escancarada, um grito grave, gutural e desesperado. Ele para de gritar. Tem alguma coisa errada comigo. Sinto-me fraco. Meu peito está queimando. E então inspiro. Tinha me esquecido de respirar. Estava prendendo a respiração o tempo todo. E me sinto muito melhor agora. Inspire pelo nariz, expire pela boca.
— Quem se machucou?! — grita Lacey.
Ela solta os cintos de segurança da posição de dormir e se inclina para o porta-malas. Quando me viro, vejo que a porta traseira está aberta e por um instante penso que Radar foi jogado para fora do carro, mas então eu o vejo se levantar. Ele está passando as mãos no rosto e dizendo:
— Eu tô legal, eu tô legal. Todo mundo legal?
Lacey nem responde; ela pula para a frente, entre mim e Ben. Está apoiada na cozinha da casa, olhando para Ben e dizendo:
— Meu amor, você está bem?
Seus olhos estão cheios d’água, como uma piscina em dia de chuva. Ben responde:
— TudobemtudobemQtásangrando.
Ela se vira para mim, e eu não devia chorar mas não consigo evitar, não porque esteja sentindo dor, mas porque estou apavorado, e ergui as mãos, e Ben nos salvou, e agora tem uma menina olhando para mim meio que do mesmo jeito que uma mãe faz, e isso não devia me fazer chorar, mas faz.
Eu sei que o machucado em minha bochecha não é sério, e fico tentando dizer isso, mas só consigo chorar. Lacey aperta o corte com a ponta dos dedos finos e macios e grita para Ben arrumar alguma coisa que sirva de curativo, então surge uma faixa da bandeira da Confederação pressionada na minha bochecha, à direita do meu nariz.
— Segure isso bem apertado — diz ela. — Você está bem? Tem mais alguma coisa doendo?
Respondo que não. Só então percebo que o carro ainda está ligado, com a marcha engrenada, e só está parado porque estou pisando no freio. Coloco em ponto morto e desligo o motor. Assim que giro a chave, ouço um barulho de líquido vazando — não pingando, quase uma cascata.
— É melhor a gente sair do carro — diz Radar.
Mantenho a bandeira da Confederação no rosto. O barulho de líquido escorrendo continua.
— É gasolina! Vai explodir! — grita Ben.
Ele escancara a porta do carona e sai correndo, em pânico. Pula uma cerca de madeira e dispara por um campo de feno. Eu também salto do carro, mas não com a mesma pressa. Radar está do lado de fora, e enquanto Ben pica a mula, ele ri.
— É cerveja — diz ele.
— O quê?
— As cervejas quebraram — explica, apontando para o isopor quebrado e os litros de espuma líquida que escorrem de dentro dele.
Tentamos chamar Ben, mas ele não nos ouve porque está muito ocupado correndo pela plantação, gritando: — VAI EXPLODIR!
A beca sobe, expondo sua bunda ossuda sob a luz cinzenta do amanhecer. Eu me viro para a estrada ao ouvir um carro se aproximando. O monstro branco e sua amiga malhada conseguiram cruzar para o acostamento do outro lado, ainda impassíveis.
Ao me virar para a minivan, percebo que ela está batida na cerca. Avalio os danos, enquanto Ben finalmente decide voltar para o carro. Quando giramos na pista, o carro deve ter se arrastado na cerca, pois tem um arranhão profundo na porta de correr, tão profundo que, olhando bem de perto, dá para ver o interior da minivan. Mas, fora isso, está tudo perfeito. Nenhum outro amassado. Nenhum vidro quebrado. Nenhum pneu furado. Dou a volta até a traseira do carro e examino as duzentas e dez garrafas quebradas de cerveja ainda borbulhando.
Lacey se aproxima e passa o braço ao meu redor. Ficamos os dois encarando o riacho de espuma de cerveja escorrendo até a vala do acostamento.
— O que aconteceu?
Eu conto a ela: estávamos mortos, mas Ben conseguiu girar o carro de um jeito especial, feito uma espécie de bailarina veicular espetacular.
Ben e Radar se enfiam debaixo do carro. Nenhum deles entende absolutamente nada do assunto, mas imagino que o gesto ofereça algum conforto. A bainha da beca de Ben sobe e suas panturrilhas ficam de fora.
— Cara — grita Radar. — Parece que está tudo, tipo, bem.
— Radar — digo —, o carro rodou umas oito vezes. É claro que não está tudo bem.
— Bom, parece que está tudo bem — diz Radar.
— Ei — digo, segurando os tênis de Ben. — Ei, chega aqui. — Ele se arrasta de debaixo do carro, e eu o ajudo a se levantar.
Suas mãos estão sujas de graxa. Eu puxo uma delas e o abraço. Se eu não tivesse largado o volante, e se ele não o tivesse agarrado com tanta determinação, tenho certeza de que estaria morto.
— Obrigado — digo, batendo nas costas dele, provavelmente com força demais. — Você foi o melhor copiloto que já vi.
Com a mão suja de graxa, ele dá uma palmadinha em minha bochecha não machucada.
— Eu fiz aquilo para me salvar, não para salvar você — diz ele. — Pode acreditar, não pensei em você nem por um segundo.
— Nem eu em você — digo, rindo.
Ben me encara, quase sorrindo, e então fala:
— Cara, que vaca gigante. Acho que não era nem uma vaca, estava mais para uma baleia terrestre.
Eu rio. Radar se aproxima:
— Cara, realmente acho que está tudo bem. Quer dizer, a gente só perdeu uns cinco minutos. Não precisamos nem aumentar a velocidade.
Lacey está encarando o arranhão na lateral do carro, os lábios contraídos.
— O que você acha? — pergunto a ela.
— Vambora — responde ela.
— Vambora — Radar dá seu voto.
Ben infla as bochechas e expira.
— Só porque eu sou suscetível a pressão da sociedade: vambora.
— Vambora — acrescento. — Mas eu não dirijo mais de jeito nenhum.
Ben pega as chaves da minha mão. Entramos no carro. Radar o guia pelo terreno acidentado até voltarmos à rodovia interestadual. A oitocentos e setenta e dois quilômetros de Agloe.

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