sexta-feira, 1 de agosto de 2014

6° Capitulo (3p) - Cidades de Papel

Por algum motivo, aquele trecho da I-95 ao sul de Florence, na Carolina do Sul, parecia ser um point para motoristas na sexta-feira à noite. Ficamos presos em um engarrafamento por vários quilômetros, e, embora Radar esteja desesperado para ultrapassar o limite de velocidade, ele tem sorte quando consegue ir a mais de cinquenta por hora. Estou no banco do carona, e tentamos não nos preocupar brincando de “Aquele cara é um gigolô”, um jogo que inventamos.
A ideia é imaginar a vida das pessoas nos carros em volta. Estamos dirigindo ao lado de uma mulher latina em um Toyota Corolla bem ferrado. Eu a observo na penumbra.
— Largou a família para vir para cá — digo. — Imigrante ilegal. Manda dinheiro para casa na última terça-feira do mês. Tem dois filhos pequenos… o marido viaja muito a trabalho. Ele está em Ohio agora… só passa três ou quatro meses por ano em casa, mas eles ainda se dão muito bem.
Radar se inclina para a frente e dá uma olhada nela por meio segundo.
— Caramba, Q, não seja tão melodramático assim. Ela é secretária de um escritório de advocacia… veja só a roupa dela. Levou cinco anos, mas já está quase terminando o curso de direito que bancou sozinha. E não tem filhos, nem é casada. Mas tem um namorado. Ele é meio irresponsável. Tem medo de compromisso. Branco, um pouco bolado com essa questão meio Febre da Selva.
— Ela está de aliança — o corrijo.
Diferente de Radar, tive bastante tempo para analisá-la. Ela está à minha direita, um pouco abaixo de mim. Consigo vê-la pelo insulfilme, e a observo enquanto ela cantarola alguma música do rádio, os olhos fixos na pista. São tantas pessoas. É tão fácil se esquecer de como o mundo é cheio de pessoas, lotado, e cada uma delas é imaginável e sistematicamente mal interpretada. Acho que esse é um pensamento importante, uma daquelas ideias que o cérebro precisa cozinhar lentamente, na mesma velocidade que as pítons digerem o alimento. Mas, antes que eu possa elaborar um pouco mais, Radar fala:
— Ela só está de aliança para que nenhum pervertido dê em cima dela — explica ele.
— Talvez.
Sorrio, pego o resto da barrinha de cereal no meu colo e dou uma mordida. Permanecemos em silêncio por um tempo, e fico pensando no jeito como você pode enxergar ou deixar de enxergar as pessoas, pensando na janela escura entre mim e essa mulher que ainda está dirigindo bem ao nosso lado, nós dois dentro de carros com janelas e espelhos para todos os lados, enquanto ela se arrasta conosco pela rodovia engarrafada.
Quando Radar volta a falar, percebo que ele também estava pensando:
— O lance do “Aquele cara é um gigolô” é que, no final das contas, ele revela mais sobre a pessoa que está imaginando do que sobre a que está sendo imaginada.
— É — concordo. — Eu estava pensando exatamente nisso. E não consigo deixar de pensar que Whitman, com toda aquela beleza exagerada, talvez estivesse sendo otimista demais. Conseguimos escutar os outros e podemos viajar até eles sem sair do lugar, imaginá-los, e estamos todos interligados por um sistema radicular meio doido, como o das folhas de relva — mas o jogo me faz imaginar se somos realmente capazes de nos tornar os outros.

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