sexta-feira, 4 de julho de 2014

14° Capitulo - A Garota da Capa Vermelha

— Calma! — resmungou o cocheiro para os cavalos, enquanto a carruagem negra freava aos poucos.
Valerie ouviu cascos ressoando no chão nevado quando uma dúzia de soldados, com rostos determinados e montando garanhões poderosos, chegou. As armas cintilavam ao sol da tarde. Um arqueiro mascarado era conduzido por um majestoso corcel branco. O homem usava um elmo pesado e tinha ao ombro uma besta enorme. O temível grupo de homens transportava atrás de si um enorme elefante de ferro e carroças repletas de seus materiais: armas, livros, instrumentos e equipamentos científicos. O elefante, rebocado com brutalidade, era enorme e parecia um bloco com a tromba curvada como uma serpente e os olhos ameaçadores. Valerie viu que os outros aldeões se perguntavam sobre a sua utilidade; não parecia correto que aqueles homens grandes trouxessem um brinquedo. Ela notou uma porta articulada em seu ventre de ferro e estremeceu.
Viu suas amigas na praça, mas antes que pudesse chegar até lá, a caravana havia parado no local. Ela acenou para Roxanne, mas Rose e Prudence não a viram. Ou isso, ou elas queriam manter distância por causa de seu noivado.
O cocheiro parecia um pouco enjoado por causa da estrada irregular. Havia sido uma jornada longa e rápida, evidentemente, e os cavalos orgulhosos, com os olhos cansados do mundo, deixavam transparecer sua frustração. Seus freios tilintando eram os únicos sons quando a multidão já se dispersava pela praça e, silenciosa, aguardava os acontecimentos.
As mulheres olhavam das varandas e por trás das cortinas, tentando enxergar pelas barras de ferro das janelas da carruagem, moldadas em forma de cruz. A taberna havia se esvaziado, e os homens esperavam para ver se o recém-chegado honraria a sua reputação. Daggorhorn era uma cidade acostumada com a decepção.
Peter estava longe de Valerie. Eles não se olharam. Era bom ter muito mais coisas para olhar.
Ela percebeu, porém, que o risco talvez não valesse a pena. Sabendo da aflição do segredo de sua mãe e do trauma provocado pelo amor, não queria sofrer daquele jeito. Amor, desejo – era tudo tão horrível. Esqueceria Peter, decidiu, e esqueceria Henry. Viveria uma vida em reclusão, morando na floresta, como a Avó; sozinha, virando-se sozinha. Chega de amor.
Um burro maltratado da aldeia trotou com desânimo para fora do caminho, provavelmente pensando que preferiria ter sido um cavalo. As crianças depositavam pequenos objetos, bolotas e bonecas de palha, nos sulcos gêmeos que as rodas da carruagem escavaram na neve. Elas se dispersaram, porém, quando levantaram o olhar e viram o exército que havia se reunido.
Alguns homens grandalhões descarregaram a carruagem, desamarrando baús de madeira e empilhando-os ao lado da rua. O resto dos soldados ficou imóvel, à espera de ordens. Até mesmo o macaco, empoleirado nos ombros de um lanceiro, parecia estar esperando uma ordem.
— Apresentando Sua Eminência... — um soldado começou.
Era um mouro magnífico, diferente de todos que Valerie já havia visto. Seu cabelo fora cortado rente, tão rente que parecia ter sido puxado de seu crânio; ele tinha um tom de cinza em vez de preto. Portava urna espada de dois gumes, pendurada de modo elegante em seus ombros. Suas mãos eram enormes e pareciam capazes de estrangular alguém com facilidade. Ele manteve uma delas ao lado enquanto caminhava, descansando-a tranquilamente sobre o cabo de um chicote preto. Era o capitão.
— ... Padre Solomon — completou um soldado que só podia ser o irmão do mouro.
Os dois homens falavam com uma suave voz de veludo.
A cidade ficou maravilhada com a chegada de padre Solomon. Era tão impressionante quanto a realeza. As mulheres se arrumavam; as saias estavam sujas e o cabelos esvoaçantes.
Os espectadores prenderam a respiração, esperando a porta abrir. Quando aconteceu, os aldeões ficaram surpresos ao verem duas meninas pequenas nos bancos voltados para frente. Eram tão impressionantes que os moradores quase esqueceram quem era que estavam esperando. Ninguém jamais vira duas meninas com tamanha tristeza estampada tão claramente em seus rostos.
Solomon dirigia-se para dentro, com suas costas eretas voltadas para a multidão.
— Por favor, não chorem — ele se inclinou para elas. — Veem todas estas crianças? Veem como elas estão com medo? — Fez um sinal para os que se aglomeravam na praça. Uma das menininhas segurou uma barra da janela ao olhar para fora; seus dedos se fecharam em um pequeno punho. — Elas têm medo porque há algo mau aqui. Um Lobo. E alguém tem de detê-lo.
Valerie gostou da maneira como Solomon falava, acentuando cada sílaba, como se cada som fosse uma lembrança.
— É o monstro que matou a nossa mãe? — perguntou a menina mais velha, com a entonação de uma mulher adulta.
As meninas pareciam desalinhadas por causa da viagem, por serem sacudidas naqueles grandes bancos de couro até ficarem ombro a ombro. Solomon, entretanto, não parecia maltrapilho ou cansado. Quando se virou, a multidão viu que ele estava com uma impecável armadura brilhante prateada; seus cabelos ao vento eram bem prateados para combinar. Ele tinha a aparência exata que um matador de Lobos deveria ter.
— Pode ser — Solomon respondeu, sério; uma sombra atravessava seu rosto.
As meninas estremeceram. O pensamento do monstro superou qualquer tentativa infantil de chamar a atenção do pai.
Ele abriu os braços. Elas o abraçaram, e ele inclinou-se rigidamente para beijar a cabeça de cada menina. Ele abrandou ao tocar o dorso da mão nos cabelos da menina mais nova.
— Está na hora — acenou com a cabeça para o capitão.
Uma figura obscura se inclinou para puxar as garotas, que ainda soluçavam, para o interior escuro da carruagem. Seu guardião.
— Comportem-se — disse ele, fechando a porta com uma firmeza paternal.
Elas estariam seguras lá. Valerie descobriu que, de uma forma perversa, estava enciumada das duas meninas de Solomon, seguras por trás de suas grades de ferro.
Padre Solomon observou a partida delas enquanto a carruagem rodava para fora da praça e, em seguida, para fora da aldeia, transportando as meninas para um lugar mais seguro. Os aldeões as invejaram, desejando também poder fugir, receber um carinho na cabeça ou sob o queixo.
Padre Solomon parou por um momento, empertigando-se para se mostrar em serviço, antes de se virar para a multidão, que começara a sentir que estava na presença de um grande líder. Com suas elegantes luvas pretas e a capa de veludo roxa como a do rei, era majestoso e imponente. O público sabia pelo seu rosto que ele havia visto um mundo que eles nunca conheceriam.
Percebendo que era a vez deles receberem a valiosa atenção, Padre Auguste deu um passo adiante para falar em nome de Daggorhorn.
— É realmente uma honra, Eminência.
Curvou-se ele diante do homem mais velho, tão magnânimo ao se postar diante deles em sua humildade. Valerie queria correr seus dedos pelo tecido macio de sua capa, que capturava a luz que batia sobre seus ombros.
Solomon meneou a cabeça ligeiramente. Seus movimentos eram contidos e plenos.
— Felizmente nós já estávamos viajando por esta região e pudemos chegar rapidamente. Fiquei sabendo que vocês perderam uma moça da aldeia — andou na frente da multidão. — Quem aqui pertence à família da garota?
Suzette não se mexeu, e Valerie não viu o pai – ele provavelmente ainda estava dentro da taberna. Os aldeões se esquivaram. Olhando para Peter, que não parecia estar indiferente do outro lado da multidão, Valerie levantou a mão resignadamente.
Solomon caminhou até ela e abaixou sua mão para descansar na dele. Ele cheirava à metal azeitado e à segurança.
— Não se preocupe — disse humildemente, com a cabeça baixa. — Muitos horrores foram testemunhados, e muito sofrimento foi suportado. Vamos encontrar o animal que matou sua irmã. Lamento pela sua perda.
Mesmo sabendo que era tudo encenação, havia certo conforto naquilo, em um pedido público de desculpas – em um reconhecimento de que ela, Valerie, era quem havia sofrido.
Ele inclinou-se ligeiramente, com seu rosto gentil se endurecendo quando se virou para os homens e mulheres que ainda não haviam perdido ninguém.
Valerie observou o oficial de justiça andar de modo arrogante até eles, incapaz de se conter por mais tempo. Ela ficou revoltada com ele e com os outros homens; eles pareciam crianças com sua violência e sua vaidade.
— Você e seus homens estão atrasados — ele colocou a mão enorme no ombro do Padre Solomon. — mas chegaram a tempo de participar do nosso festival.
O dono da taverna murmurou em apoio quando o oficial de justiça apontou para a cabeça peluda na lança, com os olhos vidrados, brancos e opacos.
— Como o senhor pode ver, já demos conta do Lobo.
Padre Solomon olhou para a mão do oficial de justiça e para suas unhas repletas de sujeira. Ele se livrou de seu aperto que o prendia.
— Isso não é um lobisomem — Padre Solomon murmurou, de forma misteriosa, sacudindo a cabeça.
Valerie viu Roxanne e Prudence se entreolharem e, em seguida, olharem para ela. Ela encolheu os ombros em resposta. Rose não notou a troca de olhares, ainda observando a cena a sua frente.
— Agora não é mais — disse o oficial de justiça, encontrando a aprovação da multidão. — Talvez ele não se pareça com um lobisomem agora, mas você não o viu quando estava vivo.
Os homens de Daggorhorn concordaram com cabeça.
— Você não está ouvindo — padre Solomon disse baixinho, de um modo que fez todo mundo ouvir. — Essa não é a cabeça de um lobisomem.
Houve um clamor enquanto a multidão tentava ver o sentido disso. Será que ele estava brincando, usando um tipo de humor de classe alta que eles não entendiam?
— Sem querer desrespeitar, padre, mas convivemos com essa fera há duas gerações. Toda lua cheia ele leva o nosso sacrifício — o sorriso largo do oficial de justiça estava escondido em sua barba espessa. — Sabemos com o que estamos lidando.
— Sem querer desrespeitar — padre Solomon respondeu, inabalável — vocês não fazem ideia de com o que estão lidando.
Valerie estava intrigada. Alguém se atrevia a questionar o oficial de justiça. Isso era novidade.
— Vejo a sua negação. Eu era do mesmo jeito no passado — admitiu padre Solomon, hesitando. — Deixe- me contar uma história: meu primeiro encontro com um lobisomem. Vou relembrar novamente a noite a qual eu faria qualquer coisa para esquecer.
Valerie sentiu a multidão prender a respiração.
— O nome da minha esposa era Penélope. Ela me deu duas filhas lindas, como vocês viram. Éramos uma família feliz, vivíamos em uma aldeia muito parecida com esta. E como Daggorhorn, a nossa também foi atormentada por um lobisomem.
Solomon andou na frente de seu público; pisando firme com as botas.
— Foi há seis outonos. A noite estava calma, quase morta. A lua cheia pairava lá em cima, lançando seu brilho em tudo. Meus amigos e eu deixamos a taberna tarde da noite após um pouco de... folia.
Valerie o viu sorrir para si mesmo ao se recordar – um sorriso que sugeria outras histórias, não contadas.
— Decidimos caçar o Lobo. A ideia de que poderíamos realmente encontrá-lo nunca nos ocorreu. Mas nós o encontramos. E isso veio a ser fatal — disse com uma franqueza exagerada. — Fiquei cara a cara com a fera. Ela respirava. Dava para senti-la. Ela piscou. Eu podia ouvi-la. A energia corria por mim. Eu tremia com ela.
Valerie se sentiu, assim como todos os outros, envolvida pela história. Até mesmo sua mãe ouvia atentamente ao seu lado.
— No entanto, o Lobo poupou a minha vida; voltou-se, em vez disso, contra o meu amigo e me fez assistir enquanto ele era rasgado ao meio. Rapidamente. Mas não tão rápido que eu não ouvisse a sua coluna sendo partida.
Valerie sentiu-se mal, pensando em Lucie e no que ela poderia ter ouvido se estivesse lá.
— Eu gritei como uma mulher, e então ele estava sobre mim. Tudo o que eu vi foram os dentes amarelos. Eu o golpeei com meu machado; em um instante, ele havia ido embora. Cortei-lhe uma de suas patas dianteiras. Pensando que seria um suvenir inteligente, eu a levei para casa — falava com ar de intimidade, como se não tivesse contado nada disso antes. — Cheguei em casa bêbado e cambaleante, triunfante e orgulhoso. Quando entrei no corredor de entrada, segui gotas de sangue como uma trilha até uma forma preta deitada na nossa mesa da cozinha, O líquido escuro pingava da borda e empoçava sobre as tábuas do piso.
As palavras exerciam um efeito físico sobre Solomon; seus olhos brilhavam.
— Quando cheguei mais perto, percebi horrorizado que era a minha esposa. Um trapo sangrento estava amarrado em volta do pulso esquerdo. Sua mão fora decepada. E quando abri o meu saco, isso estava em seu lugar.
Fez uma pausa, fortalecendo o suspense.
O capitão puxou uma caixa que estava atrás dele; ele havia previsto esse momento. Marchou até o oficial de justiça, chegando demasiadamente perto; do nada, abriu a caixa lentamente, para aumentar ainda mais o suspense. Os outros aldeões se aglomeraram para ver mais de perto.
A caixa forrada de veludo continha a mão mumificada de uma mulher, com a aliança de casamento brilhando, repousada sobre uma camada de pétalas. As crianças engasgaram e fugiram; em seguida, voltaram correndo para dar outra olhada.
— Rosas... — Solomon interrompeu — eram as favoritas de Penélope.
Os aldeões observavam ansiosamente, alguns até dando um passo à frente.
— Eu disse às minhas meninas que o lobisomem havia matado a mãe delas. Mas isso foi uma mentira — ele prosseguiu, com uma voz fantasmagoricamente tranquila. — Eu a matei. — As palavras do Padre Solomon pairaram no ar. — Porque ela era o Lobo. Algum de vocês sabe o que é matar a pessoa que mais ama?
Ele encarou um mar de rostos sem expressão.
— Logo vocês saberão. Quando um lobisomem morre — Solomon prosseguiu — ele retorna à sua forma humana.
Olhou para a cabeça do lobo, que certamente havia perdido um pouco de seu brilho desde que ele começara a sua história.
— Este é apenas um lobo cinzento comum. Seu lobisomem ainda está vivo. — Ele se benzeu. O primeiro ato terminara. — Venham agora para a taberna.



Quando todos que couberam entraram, Solomon estendeu uma espada de prata que ele portava, incrustada com pedras preciosas e gravada com uma imagem de Cristo na cruz.
Ao vê-la, os olhos de padre Auguste se iluminaram.
— Esta... — ele se firmou. — Esta é uma das três únicas espadas de prata abençoadas pela Santa Sé. Posso tocar...?
Solomon lançou-lhes um olhar reprovador.
Padre Auguste recuou, penalizado.
— Este é um período muito perigoso — falou Solomon para as pessoas de Daggorhorn, que se mantinham em transe.
Claude estava deitado de bruços nas vigas do telhado, assistindo a cena de lá de cima. Valerie sorriu brevemente para ele de onde estava, apertada, mal conseguindo ver. Ela desejou ter pensado em subir lá em cima.
— Claro, vocês sabem o que a lua de sangue significa.
Eles sabiam? Todos olharam ao redor, esperando alguém mais velho falar.
— Vejo que vocês não têm ideia do que significa — seus lábios estavam tensos.
Os moradores sentiram os rostos corarem de vergonha; não gostavam daquilo.
— O planetário... — Solomon estendeu a mão.
Era tudo o que tinha de fazer.
O capitão colocou sobre a mesa um instrumento de bronze equipado com lâmpadas de vidro redondas.
— Foram os persas que inventaram isso, mas este eu mesmo fiz, cada pequena engrenagem — disse, girando um globo com um dedo cuidadoso e ajustando a posição do outro. Acendeu uma vela, que lançou um brilho escarlate no modelo. — Veja, o planeta vermelho converge com a lua uma vez a cada treze anos. Este é o único momento em que um novo lobisomem pode ser criado.
Com um golpe de seu pulso, a lâmpada explodiu. Todos pestanejaram ao som. Solomon sorriu aquele seu risinho forçado.
— Durante a semana da lua de sangue, o lobisomem pode passar sua maldição com uma única mordida. Mesmo durante o dia...
— Perdoe-me, mas o senhor está errado — o oficial de justiça parecia satisfeito. — A luz solar faz um lobisomem virar humano...
— Não, é você que está errado — Solomon respondeu, encontrando os olhares dos homens que haviam arriscado suas vidas nas cavernas.
Os olhos de padre Auguste brilhavam. O oficial de justiça mudou sua postura.
— Um lobisomem nunca é verdadeiramente humano, não importa a sua aparência. Durante a lua cheia normal, uma mordida de Lobo vai te matar. Mas durante os dias da lua de sangue, suas almas correm perigo.
A sala gelou.
— Por quanto tempo, exatamente?
— Quatro dias.
“Faltam duas noites”, Valerie pensou. “Amanhã será o último dia”.
— Como eu disse — o oficial de justiça interrompeu autoritariamente, sorrindo, com seu rosto largo repuxando para os lados — nada disso importa. Estamos seguros agora. O Lobo está morto. Eu mesmo o matei no seu covil, a caverna no monte Grimmoor.
Ele começou a se virar, na esperança de que aquilo seria o fim.
Solomon olhou para ele como se ele fosse uma criança. Os aldeões não tinham certeza de qual patriarca deveria receber o seu apoio.
— Vocês foram enganados por essa besta — Solomon estalava os dedos sistematicamente desde o inicio. — Muito provavelmente atraiu um lobo faminto até caverna e o prendeu lá para vocês o encontrarem. Ele enganou, fazendo vocês pensarem que ele habitava monte Grimmoor para que não fossem procurá-lo no lugar mais óbvio.
Ele fez uma pausa, deixando-os compreender sua própria tolice.
— O Lobo vive bem aqui. Nesta aldeia — ele olhou para os aldeões. — Entre vocês. É um de vocês.
A partir de uma das extremidades da multidão, ele encontrou os olhares de cada aldeão do grupo. O arqueiro mascarado esquadrinhou a multidão ao lado dele, com sua besta pendurada nas costas.
— O verdadeiro assassino poderia ser seu vizinho, seu melhor amigo. Até mesmo sua mulher.
Seus olhos eram como gemas preciosas lapidadas.
Valerie viu os homens se lembrarem da caverna. Quem estava faltando? Era impossível saber em meio ao caos da escuridão.
Seus olhos cruzaram com os da senhora Lazar, de Peter, de seus pais. Ela começou a repetir, em sua mente, as histórias de seus amigos sobre o que acontecera no acampamento. Como era possível que elas tivessem perdido Lucie de vista? Algum deles a agarrara pelas costas e a arrastara para longe no escuro... ou escrevera um bilhete para atraí-la.
Seu olhar desconfiado pousou sobre as pessoas que ela conhecera a vida inteira. Então percebeu que eles estavam olhando diretamente para ela.
— Bloqueiem a aldeia — ordenou padre Solomon.
Coloquem homens em cada portão ao longo da muralha da cidade. Ninguém sai até matarmos o Lobo.
O oficial de justiça esfregou os dentes com a língua.
— O Lobo está morto — ele rosnou. — Hoje nós comemoramos.
Solomon o encarou com os olhos acesos como fogo.
— Vá em frente e comemore — ele disse, erguendo, as mãos como só um homem que estava acostumado a ser ouvido poderia fazer. — Vamos ver quem está certo.
Ele se virou e saiu da taberna a passos largos.



Padre Solomon caminhava rápido, e Valerie teve de correr para alcançá-lo. Ela parou, porém, quando as costas dele se enrijeceram e sua mão buscou a espada. Não era possível se aproximar daquele homem assim, de repente.
Ele se virou, e a ameaça escoou-se de seus olhos.
— Sinto muito — ela falou.
— Não, não. O que é, filha?
— Eu preciso saber... a minha irmã...
— Sim?
— Por quê? Por que o Lobo esperou até agora para atacar? E por que ela?
— Só o diabo sabe.
Ele pôde ver que ela não estava satisfeita, e não era uma menina simplória de aldeia que poderia ser impedida por lugares-comuns religiosos.
— Vá falar com o meu escriba. Ele pode mostrar coisas que a ajudarão a compreender o incompreensível.
Ela ficou para trás quando ele retomou caminhada.
— O incompreensível, sim. — Uma voz desconhecida chegou até ela. — Compreender, provavelmente não.
Ela se virou. O escriba, que vinha acompanhando Solomon, parou e estendeu um volume encadernado em couro. Seu maxilar inferior era bem saliente, e o rosto, amável. Valerie examinou o fecho do livro. Parecia que era feito de cascos de cavalo – e talvez fosse. Ela não perguntou.
Abriu o livro com um ruído. As imagens eram belos desenhos a lápis das criaturas que padre Solomon e os seus homens haviam matado. O escriba colocou os óculos sobre o nariz. Uma caligrafia habilidosa atravessava constantemente as páginas.
— Este é Obour; ele sobrevive se alimentando de sangue e leite e despedaça os úberes das vacas no meio da noite — o escriba tinha uma voz sussurrada, sibilante. — Você não vai querer encontrar um desses na sua despensa.
Ela folheou, observando as linhas cuidadosas e elegantes, as superfícies das páginas manchadas de grafite por terem sido tocadas e viradas muitas vezes. Correu seus próprios dedos com cautela sobre as imagens e fantásticas.
— Que lindo, não?
— Sim.
— São coisas que assombram seus sonhos.
As páginas eram de pergaminho, com iluminuras vermelhas e azuis cercadas por ouro florido, e descreviam criaturas estranhas com cabeças de corvo, monstros marinhos com corpos de lagartos e rostos de homens empoleirados em letras enormes, soltando fumaça vermelha. Não conseguia acreditar que fossem reais.
Seu coração, porém, travou quando seus olhos caíram sobre uma imagem enorme de um lobisomem bípede. Pensou na doce Lucie e fechou o livro, incapaz de continuar olhando.

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