sexta-feira, 4 de julho de 2014

13° Capitulo - A Garota da Capa Vermelha

Bam!
Valerie acordou de um pesadelo, com os cabelos suados e emaranhados, embora a sala estivesse fria. A primeira luz da manhã era cinza-azulada, da cor da ardósia.
Tentou se orientar. Não estava em sua própria cama; estava na casa da Avó – e sua irmã estava morta. O barulho vinha do quarto da Avó.
— Vovó?
Andou descalça pela casa, sentindo o ar fresco soprar por entre as tábuas do assoalho.
— Vovó...?
Ela ainda estava na cama, de costas para Valerie, com os cobertores puxados firmemente sobre seu corpo esbelto. As bordas da colcha de seda cor de pêssego em tremulavam com a brisa em torno dela. Uma veneziana chocou-se contra o batente. Uma janela fora deixada aberta, e o vento entrava.
Ou alguém havia entrado?
Valerie se movimentou para fechá-la. Lá fora, a floresta parecia inclinada e triste; as árvores pesavam com a neve.
Voltou-se para a Avó, cuja forma parecia estranhamente alongada, esticada, quase como se seus membros tivessem sido arrancados do lugar.
Valerie aproximou-se. A figura se mexeu; em seguida, começou a se levantar. Valerie recuou, apavorada, pronta para correr... Mas era apenas a Avó, a velha mulher que oferecia um sorriso enquanto piscava desperta.



Depois de engolir um café da manhã frio, Valerie correu para casa através do bosque, envolta em suas duas capas – a antiga e a nova – para afastar o ar frio.
— Mãe? — chamou ao entrar na cabana.
Suzette olhou para cima. Estava sentada em uma cadeira, com o olhar fixo sobre a lareira apagada, desolada e angustiada
O coração de Valerie parou. Ela deveria ter ficado e esperado com a mãe.
— O papai está...?
Não queria terminar a pergunta, porque não queria saber.
— Ele está bem — Suzette respondeu, olhando para suas mãos. — Os homens voltaram e estão na taberna.
Valerie assentiu, incapaz de perguntar sobre Peter.
— Você está linda — Suzette falou, notando a capa vermelha, com lágrimas nos olhos.
Quando ela se virou para subir até o sótão, sua mãe levantou e segurou seu braço.
— Valerie, o que é isso no seu pulso? — ela perguntou, virando-o para ver.
— Não é nada. É um presente do Henry.
Valerie tentou escondê-lo, descobriu que estava envergonhada. Ainda não queria ser considerada uma mulher. Não estava preparada para ser uma moça que recebe joias de homens. Também não queria que notassem que estava usando o presente de Henry.
Mas era quase mais constrangedor estar constrangida, por isso ela o mostrou. Sua mãe estudou-o por um longo tempo.
— Valerie, me escute — Suzette disse depois de um momento. — Use este bracelete. Não o tire. Você é uma mulher comprometida, agora.
Valerie assentiu com a cabeça, inquieta, e subiu a escada do sótão. Na segurança de seu próprio espaço, trocou de roupa. Ficou maravilhada com a nova capa vermelha, surpreendida novamente por sua beleza vibrante.
A maioria das capas era antiquada e de lã, feita de couro duro. Esta capa, no entanto, não era engomada nem pinicava. Era incrivelmente fina e quase fluida, como se fosse tecida de pétalas de rosa. Era fria ao toque.
Sentindo-a contra os braços nus e por entre os dedos, Valerie se sentiu mais poderosa que nunca. Havia algo muito natural nela, como uma segunda pele que lhe pertencesse o tempo todo. Sentia-se forte e furtiva, e a capa a fez desejar saltar de seu sótão, agachados como uma pantera, e correr rapidamente pela aldeia, pela floresta onde chovia e nos campos onde isso não acontecia.
Passando em silêncio por sua mãe, saiu para ir à taberna.



Os homens, tendo retornado de monte Grimmoor sem antes parar em casa, exalavam um cheiro acre de terra e suor. Valerie ainda conseguia observar a energia pulsando através de seus corpos. Caminhou ao redor dos limites da multidão e recostou-se à parede para escutar.
Como sempre, em encontros como estes, ficava distante, isolada. Alguns aldeões repararam nela a capa vermelha se destacava, mas ela gostava disso. Sentia- se segura em sua cor vermelha, de agora em diante, sempre a usaria.
A taberna era um sítio arqueológico que continha em sua sujeira a história da aldeia. Suas paredes de madeira vinham sendo entalhadas pelos homens desde o dia em que foram levantadas – com iniciais, naturalmente, mas também com espirais, rostos, setas, coelhos, serpentes, trevos, círculos entrelaçados, cruzes que lançavam raios. As almofadas sobre os bancos estavam sujas, tendo proporcionado conforto a muitos homens diferentes. Das enormes velas de cera de abelha escorriam grandes gotas sobre as mesas, que esfriavam em coágulos endurecidos de lava cor-de-abóbora que, muitas vezes, permaneciam lá por meses até que, por acaso, um bêbado ansioso os retirasse com as unhas sujas. Os crânios de veado, pendurados ao longo da parede mais distante, pareciam estar sorrindo na morte, como se houvessem levado um torturante segredo com eles.
Ela esquadrinhou o salão: viu seu pai, e em seguida Peter, belo em seu retorno heroico, embora ele não tenha levantado a cabeça. O alívio tomou conta dela, seguido de raiva. Odiava se importar tanto, e odiava ainda mais amar alguém que não lhe retribuiria esse amor... então ela percebeu que Henry não estava lá.
O oficial de justiça estava sentado à cabeceira da mesa, cercado por admiradores; a cabeça do Lobo estava espetada em uma lança ao lado dele. Os homens que haviam estado nas cavernas – mesmo os muitos que fugiram – sentiam que tinham o direito de compartilhar de sua glória, e que haviam sido necessários para o seu sucesso. O oficial de justiça contava toda a história, representando novamente seu andar nas pontas dos pés; em seguida, batendo a caneca no momento de clímax. As mulheres se animavam, admiradas, enquanto a cerveja espumante pingava pela sua barba espessa. Vendo seu sorriso de satisfação, Valerie se encheu de desprezo. As mulheres penduravam-se em seu pescoço, elogiando-o pela sua abnegação e por vingar a morte da pobre moça – quando, na verdade, aquilo não tinha nada a ver com isso.
O dono da taverna, um homem careca com uma marca que corria de orelha a orelha pela parte de trás de sua cabeça nua, ouvia com muita atenção. Sua mulher servia no balcão enquanto ele estava sentado, em transe. Certa vez, ela havia engravidado e nunca se recuperara. O dono da taberna, porém, não tinha essa desculpa.
O oficial de justiça terminou sua apresentação lamentando a perda que eles sofreram, revelando a verdade que estava suspensa no ar, além da compreensão de Valerie... Adrien morrera por esta glória. Valerie fechou os olhos. Agora entendia porque Henry não estava ali. Houve certo alívio por ter sido o pai dele, mas também compaixão pelo filho que agora era órfão.
Olhou para Peter novamente, mas ele ainda encarava o chão.
Todos foram para a taberna porque ninguém queria ir para casa. Enquanto o oficial de justiça recontava seu triunfo, a aldeia parecia se alegrar. Um marido e sua esposa compartilhavam uma bebida na mesma caneca enorme. Dois aldeões se sentaram juntos em um banco baixo junto à lareira, curtindo o conforto do calor.
Alguém destripava o Lobo diante da taberna. As crianças observavam com uma alegria horrorizada, chocadas com a sua boa sorte; seus pais se sentiam complacentes demais para lembrá-los de manter distância.
O sol subiu alto e brilhou radiante, mesmo quando flocos de neve continuavam a cair, e as mortes de Adrien e Lucie pareciam quase justificadas pela liberdade que os aldeões sentiam agora. Não parecia uma troca tão justa; foram apenas dois aldeões ao longo dos últimos vinte anos, e agora não haveria mais nenhum outro sacrifício. Era compensador pensar que eles próprios poderiam comer a sua galinha mais gorda, que poderiam trabalhar fora até escurecer, que nada havia além dos limites e que suas vidas lhes pertenceriam novamente.
Também ficaram contentes ao saber que dinheiro não significava isenção, agora que o homem mais rico havia se ido. Haviam sido poupados; talvez fosse porque merecessem.
Parecia um preço pequeno a pagar, aquelas duas mortes.
“Mas o preço não era pequeno”, pensou Valerie.
Claude apareceu na janela, embaçando o vidro azul ao fazer uma careta. Porém, ele ficou desfocado quando Valerie viu, atrás dele, algo que estava sendo transportado.
Adrien. Seu corpo, morto, descansando sobre o carro funerário.
Apenas sua cabeça estava exposta, com os olhos fechados em sono eterno para nunca mais abrirem novamente. O sangue vazara lentamente de seu corpo, como xarope, e se transformado em uma mancha no tecido.
A senhora Lazar se arrastava atrás dele, lamentando a sua dor. Seus olhos atravessaram a janela para encontrar os de Valerie, e as duas mantiveram o olhar até a senhora ter passado pelo quadro.
Os homens estenderam as mãos sujas, levando ao peito o chapéu, em respeito, enquanto o corpo passava.
— Por Adrien — Cesaire ergueu sua caneca, ao perceber que talvez a farra deles fosse de mau gosto. — Pelo seu sacrifício.
— Por Adrien! — O resto dos aldeões ergueu copos.
Valerie olhou primeiro para ver se Peter notaria, e depois saiu da taberna. Henry havia oferecido suas condolências, e agora ela também retribuiria. Não sabia o que diria, mas sabia onde encontrá-lo.
Ela entrou na loja do ferreiro. A porta da forja estava aberta; uma caverna de fogo e suas entranhas brilhavam, vermelhas, através da fumaça. Por um longo tempo, Henry, seminu enquanto fazia surgir faíscas indóceis, não percebeu que ela estava lá. Valerie sentiu-se triste, porque o torso pálido e poderoso lembrou-lhe o peito nu de Peter do dia anterior, e de como ele era tão quente.
Valerie pensou no noivado que Suzette combinara. Estava ainda mais presa que antes; agora não havia nenhum modo de fugir, de abandonar Henry em sua dor. Ela também se sentiu culpada até mesmo por pensar nisso.
Sabia que o corpo de Adrien havia sido levado, que ele devia estar deitado, frio, no sótão. Ele não olhou para cima.
— Henry... seu pai era um homem corajoso.
Ele continuou atacando o metal com uma marreta, golpeando brutalmente a bigorna. Não estava certa de que ele a havia ouvido falar. Então, ele parou de repente, com o martelo pesado suspenso no ar e o fogo estalando diante dele.
— Eu estava perto o suficiente para sentir seu cheiro — ele fervilhava. Não se virou — mas fiquei com medo. Eu me escondi dele.
Clenc!
— Eu deveria ter feito algo.
Clenc!
— Eu deveria tê-lo salvo.
Valerie viu que ele estava destruindo todos os seus projetos inacabados. Ele continuaria daquela maneira para sempre.
— Também perdi alguém, Henry. Eu sei como é. Por favor, venha para longe do fogo.
Ele não foi.
Clenc!
— Henry, por favor.
Uma das faíscas ardentes foi cuspida da forja e aterrissou no braço de Henry, queimando sua carne. Punindo-se, ele não parou para retirá-la até que, finalmente, com um movimento rápido, ele gesticulou com violência na direção da porta, sacudindo-a.
— Valerie, vá embora — rosnou. — Não quero que você me veja assim.
Como sabia o que era querer ficar sozinha, ela saiu; entretanto, foi incapaz de dissipar a imagem dele, escurecido pela fuligem e furioso sob a luz vermelha da forja.



Saindo da forja, ela se surpreendeu ao encontrar a mãe sentada em um tronco. Com os olhos turvos, Suzette olhava para o piso superior da loja, onde o corpo de Adrien, envolto na mortalha, jazia. Valerie assustou-a ao surgir ao seu lado para pegar a sua mão. Foi então que viu que Suzette segurava alguma coisa meio escondida, algo que brilhava à luz.
Um belo bracelete forjado... Idêntico ao que Henry havia feito para Valerie.
Confusa, Valerie procurou pelo seu. Estava intacto em seu pulso. Ela estendeu a mão para tocar o metal da pulseira de sua mãe.
Apanhada desprevenida, Suzette se afastou.
— Eu estava pensando em uma dobradiça — murmurou, ao dar meia-volta e correr para longe.
Mas ela a seguiu.
Suzette começou a falar, mas parou quando as palavras não vieram. Foi então que Valerie entendeu.
— Mãe, você me disse que amou outra pessoa antes de se casar.
Suzette não respondeu; seu silêncio transmitia as palavras que ela não conseguia pronunciar.
Ela caminhou mais rápido pela praça, e Valerie seguiu seu próprio ritmo. Passaram por dois carpinteiros que construíam uma pirâmide de galhos sobre a qual queimariam o corpo do Lobo e pelos aldeões que se esparramavam para fora da taberna, carregando a cabeça do Lobo em sua lança.
— Diga-me quem era.
Suzette diminuiu o passo, virando-se. As palavras ficaram presas na garganta, não querendo vir à tona.
— Acho que você já sabe.
— Diga-me. Eu quero que você confirme.
Valerie não conseguia evitar, do mesmo modo que não conseguia resistir a puxar um pedaço de fio solto até que o tecido inteiro fosse desfiado.
Suzette estava chorosa; ela mordeu os lábios.
— Eu sou sua filha — Valerie cuspiu as palavras. — Você deveria ser a minha mãe. O mínimo que você deve fazer é dizer o nome.
— O homem que eu amava era Adrien Lazar.
Ao ouvir aquilo dito em voz alta, Valerie estremeceu. Pensou nas imagens de Adrien que a mãe devia guardar, nas coisas que ele deve ter dito, nas palavras que teriam reverberado em sua mente desde então. Com que frequência ela pensava nele? Pois ela devia pensar nele.
Quando os olhos de Suzette tremulavam durante o sono, estaria sonhando com ele entregando-lhe o bracelete forjado, ajudando-a com o fecho, tocando-a? Ao lavar a roupa na bacia, com as mãos arrastando um pano para cima e para baixo na madeira sulcada da tábua, sentiria as mãos dele nas dela? Do jeito labiríntico que a mente funciona, algo misterioso que ela ou Lucie fizeram certamente gerou uma imagem cristalina de Adrien. Valerie tentou imaginar as lembranças que sua mãe tinha de seu amante, aquelas que guardava numa caixa privada da qual só ela tinha a chave. Coisas que só ela e Adrien saberiam. Mas a metade de Adrien havia desaparecido nas cavernas do monte Grimmoor.
Ela sentiu o sangue parar de fluir. Não podia ser. E ao mesmo tempo podia. Fazia sentido. A prova esteve ali à vista de todos, escondida apenas por uma falta de escrutínio. E, como um fio se desenrolando, surgiu outra suspeita.
— O papai sabe? — Valerie perguntou; sua própria voz soava como se fosse a de outra pessoa.
— Não. — Olhou, suplicante, para a filha. — Prometa que não vai contar para ele.
Suzette viu o rosto de Valerie e se acalmou. Ela conseguiu ver o tanto que sua filha faria para proteger o pai.
— Mas saiba disso — prosseguiu, ficando muito séria. — Não é que eu não pudesse amar o seu pai. Era só que eu já amava Adrien.
Valerie foi tomada por uma sensação de tristeza por sua mãe. Viu-se subitamente mais velha, com a sua infância perdida. Sentia que tinha uma vista aérea da vida de sua mãe, que ela podia ser mapeada, e que conseguia ver onde o percurso se perdera. Não pôde deixar de pensar que sua mãe havia feito uma má escolha ao se casar com seu pai.
As lágrimas ardiam nos olhos de Valerie; tristeza por seu pai, tristeza por sua mãe. Antes que pudesse reagir, uma carruagem escura e resplandecente passou apressada. Era sinistra e elegante; vinha do mundo exterior.
Padre Auguste correu para fora da igreja e para a rua, gritando.
— Ele chegou!

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