O homem dentro da fantasia de lobo abalou os nervos já maltratados de Valerie. Ela quase esquecera que a “comemoração” do oficial de justiça ainda acontecia.
Vagando pela praça com os sentidos aguçados, sentiu olhos a observando. Atemorizada, olhou para a esquerda e viu que eles pertenciam a uma cabeça de javali transportada sobre uma travessa de estanho. Ele tinha uma maçã corada em sua boca e uvas no lugar dos olhos, o que lhe dava um olhar distante.
A efígie altaneira do Lobo havia sido construída a partir de uma pirâmide de raízes, galhos afiados e detritos. Ela queimava na outra extremidade da praça, vomitando fagulhas de sua boca enegrecida. A lua de sangue pendia madura no céu vazio.
Um palco fora montado a partir de algumas tábuas, sobre o qual o pastor de cabras e alguns lenhadores giravam a manivela de realejos e dedilhavam alaúdes. Simon, o alfaiate, tinha as mãos sobre uma gaita que chiava estridente e alto como um animal moribundo. Os músicos sopravam suas cornetas o mais forte que conseguiam, ficando sem fôlego e tragando mais ar antes de começarem novamente.
Apesar de toda a comida de aparência deliciosa, o cheiro de lixo podre e o suor dos homens ainda enchia a praça. Valerie sentiu o estômago revirar.
Procurou Solomon e os seus homens, mas não os viu. Havia notado o seu acampamento montado no celeiro expandido atrás do armazém e imaginou que eles deveriam estar enfurnados lá naquela hora, recusando-se a participar.
Todo mundo parecia estar comemorando o máximo possível para se convencer de que deviam mesmo estar celebrando. Eles dançavam, frenéticos e selvagens, para se esquecer de tudo durante o momento de agitação. Alguns homens, respeitáveis durante o dia, movimentavam-se de quatro com dificuldade, arruinando as calças na neve. Uma mulher tropeçou na lama diante de Valerie, mas antes que pudesse ajudá-la a se levantar, ela já havia sido puxada para uma dança. Homens de rostos afogueados balançavam suas esposas corpulentas, admirando suas curvas a distância de um braço, com as mãos unidas sobre a cabeça. Irmãs dançavam com seus irmãos mais novos, mas mantinham seu olhar fixo nos garotos do outro lado do tablado. As vozes ricocheteavam pela praça, fazendo parecer que havia mais centenas de pessoas por lá.
Cercada por todos que conhecia, Valerie se sentiu completamente sozinha.
Suzette manteve os olhos baixos e se misturou na multidão sem uma palavra. Valerie viu o oficial de justiça, com sua careca reluzente de suor, dominando a cena em uma mesa comprida montada diante da taberna. Ele acenou para ela se juntar a eles, mas ela o ignorou com puro desprezo. Foi difícil, no entanto, manter seu senso de indignação amargurada. Havia muitas pessoas tomadas pelo delírio da comemoração para jogar a culpa em uma pessoa em particular. Era cansativo manter-se de luto. Valerie desistiu.
Seu pai, já pendurado de forma descuidada em um galho, soprou rápido e forte um chifre de boi, sinalizando inutilmente o início do festival que as pessoas já iniciaram. A cometa soou longa e grave, como alguém assoando o nariz.
— Ei! Ei! Todo mundo!
Valerie e as pessoas próximas se viraram para a voz estridente. Marguerite havia virado um balde enferrujado de cabeça para baixo a fim de aumentar sua própria altura e gritava para atrair a atenção, erguendo os braços acima da cabeça:
— Silêncio, todos!
O pretenso pódio repousava sobre uma inclinação e começou a ceder para trás. Henry o segurou para estabilizar a garçonete antes que ela caísse.
Aqueles que se encontravam nas extremidades da mesa continuaram a conversar – porque não a ouviram ou porque não se preocupavam em ouvir. Marguerite ergueu uma caneca de estanho.
— Para o oficial de justiça! — então, ao notar que havia conseguido a atenção de todos, ela acrescentou: — Por, ahn, sua bravura, coragem e destemor!
Valerie perguntou-se se ela diria algo mais. Parecia que a própria Marguerite não tinha certeza do que diria em primeiro lugar.
— E por... ter matado aquele Lobo bem morto, deixado ele inerte como os pregos que o pequeno Henry faz tão bem.
Henry sorriu, tentando manter seu semblante polido.
— Embora ele não seja mais tão pequeno — Marguerite piscou para ele, balançando os quadris para dar ênfase.
Embora os dois estivessem mais que ruborizados, Claude e Roxanne, parados graciosamente juntos em um canto, não disseram nada. Aquela não era a primeira vez que sua mãe os envergonhava. Valerie lançou a Roxanne um olhar solidário.
Valerie ficou atrás na multidão. Sentimentos de dor e medo inundavam os aldeões e, misturados com a raiva, faziam com que eles se sentissem invencíveis e selvagens.
O cair da noite sempre os fazia se sentirem imunes à lei.
Um fabricante de velas, sentado na borda do poço, chutava a água com os pés, encharcando os músicos. O tocador de alaúde deu uma espiada no seu buraco de seu instrumento.
Prudence caminhou até Valerie com a barra da saia cinza presa nas mãos enquanto dançava.
— Estou tão feliz por você ter vindo! — gritou acima do barulho, deixando os cabelos castanhos balançarem de um lado para o outro.
Valerie esperava que isso significasse que estava perdoada por estar comprometida com Henry. Decidiu confidenciar sua preocupação com a amiga.
— Prudence, o Lobo não se foi, não é? — Valerie perguntou; a voz soava oca em seus ouvidos ao fazer a pergunta que queimava e morria na garganta de todos como um fogo de artifício já usado.
Prudence parou de dançar e soltou a saia.
— Por que você está dizendo isso? — ela fez uma careta. — Você ouviu o oficial de justiça.
— Mas o Padre Solomon...
— Os homens sabem o que estão fazendo. Agora, vem cá!
Valerie viu o cabelo vermelho de Claude destacando-se na turba rodopiante. Desejava que ele pudesse se divertir um pouco após os acontecimentos do dia anterior.
Vendo que Valerie o observava, tentou uma dança animada, chutando com as pernas em ângulos estranhos para fazê-la rir. Ela forçou um sorriso para ele. No entanto, sem perceber seu próprio tamanho, a dança o lançou contra um grupo de mulheres rabugentas, que tiveram de se afastar de seu caminho com relutância. Claude sorria alegremente para elas quando um adolescente, William, correu até ele e lhe apanhou o chapéu da cabeça.
— Quem tem medo do lobo mau? — William gritou em zombaria inocente.
— Pare! — Valerie gritou; mas o garoto já corria bem longe, na direção contrária.
Claude correu atrás dele, perseguindo-o em volta do poço; ele escorregou na lama ao tentar segui-lo. Roxanne, que nunca o perdia de vista por muito tempo, correu até ele, encolhendo delicadamente os ombros para Valerie enquanto consolava o irmão.
“Para quem todos fingiam?” Valerie se perguntou. Próximo à efígie do Lobo, uma dupla de idiotas atirava móveis quebrados na fogueira. A multidão gritou de alegria quando alguém levantou o sinal de lua cheia do altar do Lobo acima da cabeça e o atirou contra o fogo.
Ela viu que Henry Lazar vinha na sua direção pela borda da praça. Pensou no conforto que havia sentido com ele mais cedo e, estranhamente, não sentiu nenhuma vontade de evitá-lo.
— Henry — ela disse, sentindo o vínculo do luto.
— Isso tudo parece tão errado. Eles mal foram colocados em seus túmulos — Henry falou.
Inspecionando a multidão barulhenta, Valerie ficou horrorizada ao ver Rose rebolando para Peter, girando seus largos quadris de forma sedutora. Ele a mantinha perto de si, segurando-a contra o seu peito enquanto juntos balançavam os ombros harmonicamente.
— Não — respondeu Valerie de repente, discordando de Henry; a compaixão que sentia por ele inexplicavelmente atingia o seu limite. — Deixe que eles comemorem.
— Não parece ser a hora agora — ele balançou a cabeça.
De repente, ao sentir a profundidade da sua própria dor, ela quis magoá-lo.
— Você ouviu o oficial de justiça. O Lobo está morto. Vamos todos retomar nossas vidas.
Naquele exato momento, ela se odiou. Ele havia manifestado exatamente o que ela sentia, e ela o atacara por isso. Valerie não se sentia em seu juízo perfeito. Virou-se para pedir desculpas, mas ele já havia desaparecido.
William passou correndo, usando o chapéu de Claude. Valerie viu que Claude hesitava mais uma vez ao redor da praça, ainda envergonhado e sem saber o que fazer. Havia sido uma noite difícil para ele. Ela foi até ele.
— William é um idiota. Vamos conseguir o seu chapéu de volta.
Esforçando-se para não parecer infantil, não conseguiu deixar de gaguejar:
— Foi m-minha irmã que fez.
Valerie deu um tapinha em seu braço e tentou localizar William por toda parte – menos por onde Peter estava. Ela dirigiu os olhos para o fogo. Quanto mais alta a música, mais alto as chamas se erguiam no céu noturno. Em seguida, Valerie viu que seu pai havia escorregado na lama e não conseguia se levantar. Uma menina pulou por cima dele, e as fitas de suas botas esfolaram rudemente seu rosto.
— Desculpe, Claude.
Quando ela se aproximou, viu que um homem com uma fantasia esfarrapada de lobo estava sobre Cesaire batendo nele com sua cauda achatada e soprando em seu, rosto.
— Eu vou soprar e soprar e...
— Deixe-o em paz! — Valerie gritou.
Visto que ele nada fez, Valerie correu, pegou um feixe de lenha e golpeou-o ferozmente. Algumas mulheres calaram seus insultos e recuaram impressionadas.
— Eu disse saia! — gritou muito alto, sobrepondo a música.
O homem saiu em disparada de volta para a multidão barulhenta.
— Você arrebentou os meus tímpanos! — Cesaire riu do chão, com o rosto recostado na lama e aparentemente sem saber o que havia acontecido.
Ele claramente encarara a noite como uma ocasião para beber o que pudesse tanto quanto pudesse até ficar embriagado demais para colocar as mãos em qualquer outra coisa.
— Eu estou falando sério!
Normalmente, Valerie aturava sua farra. Mas hoje não conseguia fazê-lo. Com toda a atenção dirigida para a sua família, queria deixá-lo seguro em casa. Naquele momento, Valerie sentiu mais que nunca a perda de Lucie; ela teria ajudado a cuidar de seu pai.
Valerie viu, envergonhada, que ele estava deitado na poça de seu próprio vômito.
— Papai...
— Já vou indo, já estou me levantando.
Ele conseguiu se sentar, mas não pôde ir além disso.
— Acho que lasquei um pedaço de dente — Cesaire observou de seu assento, esfregando o rosto.
Valerie ajudou-o a se erguer sobre os pés instáveis. Ele estava bêbado e tentava com esforço. Ela segurou suas mãos enquanto ele oscilava para trás e para frente, tentando equilibrar o seu peso.
— As coisas que parecem tão fáceis de dia...
Valerie o deixou se apoiar nela enquanto o arrastava para longe da multidão e o guiava na direção de casa. Ele olhou para a camisa, para o vômito.
— É só limpar isso e estarei pronto para ver o rei — ele murmurou, tentando bater de leve na camisa.
Passaram por um grupo de adolescentes.
— A mulher barbada desmaiou? — um adolescente gritou com a voz alegre.
— Donzela em apuros! — cantou outra.
Valerie contraiu os dentes. Ela sentiu o peso de seu pai como uma pedra em volta do pescoço.
— Não ligue para eles, Valerie — Cesaire murmurou.
Enquanto ele oscilava ao lado dela, Valerie se sentiu constrangida por sentir vergonha dele. Sabia que ele tinha consciência disso e que isso o magoava.
— Você é minha boa menina — ele revelou, com os olhos marejados, frágil em seu estado de embriaguez.
Ele se virou, e desta vez conseguiu encontrar cabeça de Valerie. Ela sabia que ele precisava ficar longe da confusão infernal do festival, uma celebração que ocorria apesar da morte de sua filha.
Ele olhou em volta, se perguntando onde estava casa, encontrando-a. Livrou-se dela.
— Volte lá e se divirta — ordenou.
Era toda a sabedoria paterna que ele conseguiu reunir. E sem nada mais além de um olhar na direção dela, seguiu adiante aos tropeços, como se talvez tivesse de descansar na frente da casa antes de tentar subir a escada.
Tomando o caminho de volta para a praça, Valerie viu duas menininhas de braços dados, cautelosas para não se perderem uma da outra no meio da multidão. Pensou em um festival em que sua família havia ido quando ela e Lucie eram pequenas, rodopiando nos braços de seu pai e em, mais tarde, sua mãe se agachando para dar pedacinhos de carne do tamanho exato em suas bocas, como se elas fossem bebês de passarinho.
— Eu gostaria de conseguir me sentir tão livre quanto Rose — Prudence veio dançando até ela, gritando acima da música, mantendo a postura perfeita mesmo enquanto dançava.
Já sabendo ao que ela se referia, Valerie se virou apreensiva para ver Peter e Rose. Ela estava perto dele e envolvia o seu pescoço com as mãos. Ele ergueu as mãos em seu rosto e enfiou a mão no cabelo escuro, semelhante ao seu – o que, de algum modo, era mais íntimo, uma traição mais profunda, do que seja lá o que seus corpos estivessem fazendo.
A banda tocava, gritando e zombando de vez em quando do par, o que era apenas combustível para Rose rebolar ainda mais. Peter mantinha a cabeça baixa. Ela sentia que Rose estava a punindo por Henry – por algo que sequer havia tido escolha. Valerie desejou que os dois morressem. Não conseguia decidir qual deles odiava mais, Peter ou Rose. Sua visão se turvou enquanto os observava.
— Você está bem? — Prudence perguntou, com a mão nas costas de Valerie.
— Estou.
— Eu me pergunto se não deveríamos impedi-la. Ela está arruinando o que resta de sua reputação ao dançar com ele — Prudence empurrou uma mecha de cabelo castanho para trás da orelha.
Valerie percebeu que a fogueira aumentara. As chamas subiam alto e projetavam sombras alongadas que dançavam pelo chão.
— Não! — ela respondeu, com tristeza. — Deixe que ela faça o que quer.
Então, um vidraceiro passou bebendo cerveja, quase irreconhecível sob o monte de folhas coladas em seu rosto. Tentou dar tapinhas nela com o braço livre, mas não conseguiu.
Valerie pegou o copo do homem e, inclinando-se para trás, deixou o líquido ardente encontrar a ponta da sua língua como uma onda. Deixou todo o conteúdo queimar o fundo de sua garganta. Erguendo os olhos, Valerie sentiu que nadava pelo ar. Agarrou Prudence e a puxou para uma dança selvagem; as duas garotas eram iluminadas pelas chamas, em êxtase.
Elas se inclinaram para frente, mantendo as suas pernas afastadas. De frente uma para a outra, mergulharam por baixo, deixando seus longos cabelos girarem e torno delas quando voltaram para cima. Dois passos para a frente, um passo para trás. Então, três passos adiante de modo que elas ficaram olhos nos olhos, peito a peito Sem nunca ter dado muita atenção ao seu corpo, Valerie era mais livre que Prudence e as outras meninas, e se sacudia como se estivesse possuída por um espírito poderoso.
Valerie e Prudence não pensaram sobre o lado para o qual deveriam girar, ou sobre o lado que a outra giraria. Elas apenas agiam, e funcionava. Com os membros soltos, giravam em círculos arrebatadores, levantavam as saias, e suas mãos flutuavam ao encontro, olharam uma para a outra, e seus olhos brilhavam com segredos. Valerie sentiu-se empolgada com a comunhão que ela e sua amiga compartilhavam.
Enquanto isso, Peter pairava sobre Rose, seu corpo repousando no dela; enquanto ela balançava sua saia, mostrava suas pernas. Embora Valerie e Peter estivessem dançando de forma diferente e seus corpos se movimentassem de maneira diversa, ambos executavam a mesma dança. Era uma dança de ciúmes antiga como a raça humana.
Capturando olhares que passavam em meio aos corpos em movimento de um casal que dançava entre eles, Valerie notou que Peter a olhava, embora ambos fingissem que não. A energia fluía entre eles, carregada pelas linhas de visão que asseguravam que nunca se encontrasse.
Bam!
Sem Valerie perceber, Henry veio cambaleando em direção a ela com a cerveja derramando para fora da sua caneca – obviamente a mais recente de uma longa sequência de bebidas. Peter movimentou-se de forma protetora para bloquear a passagem de Henry.
Ela sentiu um pouco de satisfação por Peter estar tão ligado nela quanto ela esteve nele.
Tentando muito entender o sentido das coisas através de sua falta de clareza decorrente da embriaguez, Henry finalmente percebeu que havia sido Peter. Ele se virou, respirando pesado e avançando direto para o seu rival, empurrando para fora do caminho um trio de bêbados mascarados de porcos.
Ao ver o olhar selvagem nos olhos de Henry enquanto ele arremetia, Rose afastou-se para o lado para se agarrar a Prudence. Henry empurrou Peter forte o suficiente para que ele cambaleasse para trás.
— Calma, amigo — Peter falou, recuperando o equilíbrio e entendendo rapidamente a condição em que Henry estava.
— Amigo? Você nos deixou nas cavernas — os músculos de Henry se enrijeceram.
— Parece que alguém não consegue lidar com bebida — Peter observou, porém não prosseguiu, sentindo que Valerie poderia estar pensando em seu pai.
— E agora — Henry continuou no seu próprio rumo, aproximando-se para encontrá-lo, com o cheiro álcool no hálito — meu pai também está morto.
Valerie aproximou-se de Henry.
— Por favor, não faça isso — disse ela, interferindo — Não vale a pena.
Henry a empurrou, sem perceber a própria força, o que a derrubou. Peter agarrou o braço de Henry e o torceu. Excedendo-se, Henry recuou o punho e acertou um soco no olho de Peter. A multidão riu ao ver Peter estatelar com força no chão.
Henry subiu em cima dele, segurou-o pelo colarinho e forçou Peter a encará-lo como ele nunca havia feito. Olhou nos olhos do homem que queria culpar pela morte de seus pais; isso era um refúgio do terrível pensamento de que tudo poderia estar perdido por um simples capricho do destino.
— Você é imundo — ele cuspiu.
Isso realmente fez os aldeões rirem. Mas Peter não riu. Ele puxou uma faca da bota e saltou, empurrando-a maldosamente na direção do rosto de Henry.
— Tire suas mãos de mim ou eu vou cortá-las.
A faca tremeu diante de Henry; a centímetros de seu rosto, Peter parecia ser capaz de cortá-las de qualquer maneira.
Henry, pronto para enfrentá-lo, não parecia ter medo.
— Peter, por favor... — Valerie disse suavemente.
Henry estava em busca de uma briga de moleques, mas Peter, ela sabia, queria sangue.
A voz de Valerie travou quando tomou consciência da beleza feroz daquilo, de ser tão amada. Ela vibrou de culpa e orgulho, da ideia de seu próprio poder, da ideia de que era amada tão impetuosamente.
Ao ouvir sua voz, Peter se afastou lentamente, mas parou para apontar a faca para Henry mais uma vez.
— Você vai se arrepender por isso.
Então ele desapareceu da praça.
Henry emudeceu quando Valerie olhou para ele com decepção, por um momento, antes de se virar e correr atrás de Peter.
Ela o seguiu até o abrigo escuro de um beco. O espaço fechado amortecia o barulho do festival a um murmúrio. Peter esperava recostado numa parede, com o peito arfante e os olhos selvagens e perigosos.
— Me deixe em paz!
Mas ela se sentia muito poderosa para isso. Não faria o que mandavam.
— Você está sangrando — estendeu a mão para tocar carinhosamente o seu olho.
— E daí? — ele respondeu, empurrando a mão dela com aspereza. — Meu Deus, Valerie. Qual é sua? O que eu tenho que fazer para você parar?
Valerie não aceitaria um não como resposta por que sabia como um sim seria maravilhoso. Embora anteriormente Valerie tivesse prometido negar seus sentimentos por ele, não podia negar que o que sentia agora era tão real. Tomou consciência da bebida correndo dentro dela, carregando-a em sua maré.
— Peter — ela começou. Ele olhou para ela, e ela pôde ver a dor em seus olhos — eu te amo — disse de própria vontade.
Com Peter, ela estava despida; ele conseguia tirar tudo dela. Ele não sabia o que dizer. Seus olhos cintilavam, brilhantes e ardentes. Apenas a deixou vê-los por um instante antes de se afastar. Ele soltou um suspiro entrecortado.
— O que você estava fazendo com a Rose, afinal? — ela perguntou, exigindo demais dele.
Peter ficou sombrio novamente. Virou as costas para ela, deu um passo adiante para dentro do beco e disse com voz mortificada:
— Eu não tenho que gostar dela para conseguir o que quero.
— Não acredito em você — Valerie respondeu, alcançando o rosto dele de novo. Peter afastou-se dela. — Você está mentindo.
Valerie queria tanto tocá-lo, sentir a batida do seu coração, saber que estava lá, que este era o seu Peter. Antes que pudesse desistir, ela colocou rapidamente o braço ao redor dele por trás e colocou a mão em seu peito. Então disse:
— Seu coração bate tão rápido... Eu sei que você sente da mesma maneira.
Virando-se, ele segurou o bracelete que Henry havia lhe dado. Ela não o deixou pegá-lo.
— Valerie, você sabe que eu não posso te dar algo assim. Não posso agora e nunca poderei.
— Você acha que eu me preocupo com dinheiro?
— Valerie — ele disse, dando-lhe outra chance para voltar atrás — eu sou a pessoa errada para você.
— E daí?
Ele finalmente se virou para encará-la, sem ousar acreditar; de repente, ela se viu beijando-o rapidamente nos lábios macios e grossos. Ele hesitou, lutando contra a sua promessa para a mãe dela, mas quando Valerie colocou seus braços frios ao redor dele, com seus dedos se enroscando nos cabelos dele, não conseguiu reagir. Permaneceu trêmulo, como uma árvore sendo derrubada em seu ponto de ruptura. Aquele beijo era o último golpe, o impacto final, e finalmente ele cedeu, derrotado.
Seus dedos, ásperos pelo trabalho, acariciaram o rosto dela enquanto eles respiravam juntos.
— Eu estive faminto por você por tanto tempo.
Ele cheirou os seus longos cabelos de seda de milho, penteando-os com os dedos.
Porém, logo em seguida Valerie sentiu aquele mesmo olhar que observara no festival: os olhos de uva, o peso de estar sendo observada. Ela ouviu algo se movimentar na boca do beco. Desta vez, não era a cabeça de um javali.
— Peter, você ouviu isso?
Ele nem se incomodou em responder. Movimentou suas mãos quentes para erguê-la, levá-la para o celeiro próximo, subir as escadas e depois pressioná-la contra a aspereza da parede, e Valerie se esqueceu de tudo...
— Melhor assim? — ele conseguiu dizer.
Valerie não conseguia responder. Ela sentia centímetro do corpo dele pressionando o dela enquanto ele passava levemente as mãos por sua cintura. Suas mãos procuravam os laços do corpete. Encontrando-os, ele os puxou até se soltarem.
O rosto de Peter não era liso, e suas mãos não eram macias.
— Peter...
Sua mão perambulava, e então descansou no alto da coxa dele. Ela estava lá e ele estava lá, seu corpo pressionava o dela com força. Queria carimbar o seu corpo no dele para sempre, para sentir a impressão. As roupas dele, as dela, tudo o que estava entre eles de repente pareceu insuportável; ela ansiava por tocá-lo, realmente tocá-lo com suas mãos e seu ser e tudo o mais.
Peter a fez deitar no forro de palha do sótão do celeiro. Valerie olhou para o interior alto e sombrio do domo. Era vertiginoso como estar dentro das câmaras painéis de um caleidoscópio de carvalho.
A respiração dele era irregular e desigual contra o pescoço dela. O calor reverberava pelo corpo dela como uma inundação solta. Valerie teve de se lembrar de respirar.
Ele abriu a blusa dela, que havia se soltado de dentro da saia. Dedos ásperos atravessaram sua pele quando as mãos dele abriram caminho para dentro. Era demais, percebeu. Suspirou, pensando que tinha de escapar daquilo, despreparada para a intensidade do desejo dele, quando um barulho soou lá embaixo.
Eles se separaram.
— Rápido! — Peter falou, levantando-a e conduzindo-a para trás de um pilar, de modo que somente ele era visível para o intruso.
— Peter! — alguém chamou.
Ele olhou para baixo: dois lenhadores carregavam um barril em um carrinho de mão.
— Peter, você pode ajudar aqui, por favor?
Peter lançou um olhar desesperado para Valerie. Logo ela fez um sinal, incentivando para que ele fosse. Peter se inclinou e fingiu soltar uma pedrinha da bota enquanto Valerie sussurrava:
— A única vida que eu quero é com você.
Puxou-o para si e deu-lhe beijos explosivos, ardentes, um após o outro. Peter cambaleou, tocou seu rosto quente e saiu.
Reclinada contra o pilar, Valerie ainda sentia a marca quente e persistente da pele dele contra a sua. Havia sido esmagador, e ainda assim ela queria manter o momento aprisionado para sempre.
Sentiu novamente a sensação de estar sendo vigiada. Instintivamente, olhou para cima. Um corvo de olhos redondos e brilhantes, empoleirado no topo da torre, baixou seu olhar negro curioso, desdobrou as asas e alçou voo.
De trás de seu pilar, Henry Lazar viu Valerie sentir sua presença e olhar para cima. A vergonha o inundou como se fosse um líquido. Seus sentimentos foram cortados, picotados como um pedaço de fita. Ao observar Peter e ela, ele tentara sair, mas não conseguiu desviar o olhar. Em vez disso, ficou congelado, horrorizado, paralisado pela intensidade da cena infeliz e bela.
Manteve-se parado mais um pouco, retesou seus músculos do queixo e se arrastou para longe.
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