Valerie esperou até que as vozes dos homens diminuíssem, enfraquecessem e desaparecessem totalmente. Só então se apoiou sobre os pés e saiu furtivamente pela porta lateral para voltar para a comemoração, contente por ir embora.
Não viu nenhum sinal de Peter. Uma fileira de pessoas era iluminada pelas chamas altas e rosadas que pulsavam no ritmo da música. Parecia que ninguém havia notado sua ausência – até mesmo Roxanne estava ocupada, assistindo admirada as pessoas que caminhavam sobre o fogo, girando, dando piruetas, andando sobre as palmas das mãos sobre as brasas e chutando os pés no ar. De repente, tudo ficou tão belo...
Carregada de ferocidade animal, Valerie sentiu que poderia fazer qualquer coisa. O dono da taberna andava com dificuldade, com um par de chifres de bode amarrado sob o queixo. Afastando o cabelo do rosto, ela rapidamente o prendeu em uma trança frouxa, as mãos trabalhando instintivamente. Em seguida, agarrou os chifres direto cabeça dele e prendeu-os na sua própria cabeça.
Taças de metal estavam espalhadas sobre os fardos de feno empilhados; a cerveja escoava lentamente atrás dos feixes bem embalados e gotejava no fundo. Ao ouvir risos acima dela, Valerie ergueu o olhar. Alguns homens sentados sobre uma árvore despejavam suas bebidas pelos espaços entre os galhos nas pessoas que passavam. Uma das vítimas pensou em mostrar sua irritação, mas em vez disso decidiu rir. Alguém se embrenhou pelos arbustos e uma alma corajosa foi atrás dele. Alguns camponeses bêbados golpeavam os galhos, e de vez em quando um desabava. As pessoas ouviam; no rumor da noite, contudo, sequer se preocupavam em olhar.
De repente, as brasas ardentes da fogueira representavam tudo pelo que Valerie passara: as perdas, os fracassos, os arrependimentos. A música martelava enquanto ela corria, passando por Roxanne e sobre as brasas vermelho no chão. Enquanto dançava sobre as brasas, Valerie não tinha peso – existia apenas como movimento. Essa sensação terminou assim que ela tomou consciência do que havia começado a fazer; fugiu do carvão no chão e olhou par trás para o lugar onde ela havia estado.
Roxanne, seguindo-a, lançou-se na sua direção, gargalhando. Logo depois estavam nos braços uma da outra, girando e girando. Valerie não conseguia ver nada; sua visão revolta do mundo era condensada em um borrão. O que estava lá não era real. O que havia sido real fora a sensação das mãos de Peter, o peso de seu corpo e o toque de sua respiração.
Mas uma coisa rompeu tudo. Uma dupla de garotas que havia se inspirado em segui-las sobre as brasas era uma massa vertiginosa de cor; seus corpos dançavam por elas, revelando algo no beco que cortou o efeito borrado e prendeu a atenção de Valerie.
— Onde você estava, afinal? — Roxanne perguntou, absorta, engolindo ar.
Um par de olhos.
Valerie parou, empurrando Roxanne.
— Que é isso? Você sabe que eu estava te procurando.
Elas não se falaram por um momento, permitindo que o mundo parasse de girar. Roxanne esperava ansiosa por uma resposta. Mas Valerie estava em outro lugar, bem longe no tempo.
Ela tinha sete anos; uma menininha na floresta negra, paralisada de horror, presa por um par de olhos selvagens.
Olhos que a viram.
Não um tipo comum de olhar, mas um olhar de forma que ninguém nunca vira antes. Olhava através dela. Reconhecia-a.
O Lobo.
Ela sempre soube que esse dia chegaria. Sabia enquanto andava pela mediocridade de sua vida cotidiana, porém nunca se permitira pensar nisso. Mas sabia. E aqui estava.
Primeiro veio um rosnado baixo, inaudível em meio ao tumulto da festividade. Mas foi como a d’água que dá início a um maremoto.
Com um rosnado e um salto de longo alcance, Lobo já havia passado por Valerie e estava no centro da praça. O oficial de justiça, exibindo-se na mesa de honra, olhou de soslaio para a monstruosa forma escura diante dele; seu rosto franzia em uma tentativa de entendimento. Sua mente inundada pelo álcool lutava para reconhecer. Havia visto uma forma como aquela ontem mesmo, na caverna, mas este não poderia ser um lobo; a besta que o havia transformado em herói era um mero cãozinho comparada com esta... coisa.
Mas os olhos – os olhos amarelos incandescentes... sua negritude gigantesca... seu pelo esculpido pelo músculos por baixo... Horrível.
O oficial de justiça se levantou cambaleando; a mão buscava a faca em seu cinto de modo desajeitado, sabendo que todos estavam vendo.
A grande sombra preta correu na direção dele, rápida como uma flecha, e em um instante passou por ele. Mas um instante foi suficiente. O oficial de justiça ficou imóvel enquanto uma linha escura se ampliava em sua garganta, e então caiu no chão. Em um momento ele estava sorrindo, exibindo-se em toda a sua glória; no seguinte, estava morto.
— Estamos sob ataque! — alguém pensou em gritar.
O pânico atravessou o vilarejo como uma tesoura cortando uma seda fina quando o Lobo passou pela praça. Correndo para fora do tablado, os aldeões desabaram dentro do poço. Garrafas foram atiradas, baldes de maçãs foram chutados e instrumentos foram abandonados e deixados balançando de lado com suas cordas ainda tremendo. Os homens não pararam para ajudar as mulheres que haviam caído na lama barrenta; logo, elas saíam de lá por conta própria, com as saias respingando presas nas mãos que estavam chocadas demais até mesmo para tremer.
Claude estava sozinho embaralhando suas cartas, ainda esperando que William lhe devolvesse o seu chapéu. Ao captar o terror, correu disparadamente em pânico, fazendo as cartas voarem de suas mãos. Elas caíram lentamente, como pétalas, brilhando no chão de terra, e ele caiu de quatro, lutando por seu tesouro espalhado. Tinha de se levantar, ele sabia, mas também tinha consciência de que, se deixasse para trás até mesmo uma única carta, tudo que desse errado nunca seria corrigido, e que o erro se alastraria como um fungo até tomar conta do mundo inteiro.
Enquanto se arrastava para alcançar A Torre por baixo de uma carroça, ele congelou. Do outro lado da carroça, um homem era arrastado; a cabeça e os braços batiam contra o chão aos trancos, como um saco de maçãs, enquanto o Lobo o arrastava pela neve. Assim que eles se foram, Claude pôde ver o que ocultavam: uma das costureiras da aldeia, que apenas dois meses atrás havia vencido o concurso de bordado com uma imagem de “O retorno do amante após caçada” que sua agulha ágil havia recriado em um lenço de bolso feminino. Agora, ela estava caída na terra forma lamentável; seu sangue vital jorrava quente, negro com ímpeto.
Percebeu ali, de quatro como um cachorro, que nunca poderia conter a escuridão que se alastrava; sua vida era infinitamente pequena e, não importava o que fizesse, o baralho brilhante das cartas da vida estaria sempre espalhado e enterrado na sujeira de um mundo de sofrimento. Claude se agachou; seu corpo foi sufocado por um soluço.
Valerie estava no meio da loucura, em uma além do medo.
Por que todo mundo está correndo? O que a vida já lhes deu? De qualquer modo, eles pertenciam ao Lobo. E agora ele voltou para recolher o que sempre foi seu. Mas então quatro aldeões passaram caminhando por ela escondidos em suas capas, estranhamente destemidos.
O motivo ficou claro quando tiraram seus disfarces e sacaram as armas – uma espada de prata que reluzia de modo perverso, um par de machados de batalha assassinos e chicotes tão pesados quanto cabos de aço. Eram os soldados do padre Solomon. Eles estavam simplesmente à espera nos bastidores para o verdadeiro espetáculo começar.
Um deles, o capitão, lançou-lhe um sorriso duro.
— Corra e se esconda, menina — sussurrou.
Eles entraram na carnificina. Dos outros cantos da praça, os outros homens do padre Solomon fecharam o cerco.
Valerie olhou ao redor, acompanhando a criatura.
O Lobo plantara as garras nas costas do açougueiro da aldeia, mas suas orelhas se ergueram com o som de um feroz grito de guerra e ele olhou ao redor. Um braço ainda se contorcia cerrado em suas mandíbulas enormes. Ele observou um par de machados de batalha descendo, cada qual girando em uma das mãos de um enorme viking. O Lobo pareceu paralisado pela tempestade de metal, mas quando os machados desceram para entregar a morte dupla, houve um borrão de movimento e rosnados, rápido demais para qualquer olho ver, e o impressionante grito e guerra transformou-se em um grito horrível. Os machados voaram pelo ar, um fendendo o solo nevado e o outro encontrando o rosto de um aldeão fugitivo desafortunado, fazendo seu sangue jorrar.
Com um grande salto, o Lobo estava imediatamente a vinte metros de distância, perseguindo outro homem de Solomon e deixando o viking caído sobre o corpo do açougueiro, com apenas um braço.
Flutuando no pesadelo, Valerie deu de cara com uma visão impossível: o escriba, diligentemente desenhando o caos, colocara-se perto o suficiente para ver os detalhes. Sua mão se movia rapidamente, os olhos mais ainda, vendo a fera em fragmentos: ancas, pelo, dentes, língua. Ele não olhava para o seu pergaminho. Gastou um segundo para observar Valerie, lançou-lhe um sorriso triste, sugerindo que o artista estava horrorizado com o que via, mas era impulsionado por alguma perversa necessidade humana para registrá-la.
Valerie o observou se aproximar do Lobo, perto o suficiente para ver a eletricidade arrepiar o pelo de suas costas e a baba escorrer de sua mandíbula. Sua pena riscava a página, a tinta marrom manchava a folha de papiro. Ele bateu a pena para soltar a tinta, e aquele pequeno movimento foi suficiente para atrair os olhos do Lobo para cima dele. Valerie finalmente cobriu a boca com horror, enquanto observava o escriba erguer a pena – fora em legítima defesa? Ou fora para dizer: “Olha, sou apenas um artista”?
Não importava. Foi o último gesto de sua vida.
Valerie foi até o seu corpo e recuperou seu último trabalho do chão de modo que não fosse apagado pelo sangue e imundície. Um imponente garanhão passou por ela, relinchando enquanto o vento açoitava a crina em seus olhos. Padre Solomon estava montado nele e gritava.
— Vão para a igreja — falou, acima do pânico. — O Lobo não pode pisar em solo sagrado!
Quando ele sacou a espada e passou sobre o corpo do oficial de justiça, Valerie sentiu que ele saboreava a vingança. Ele os alertara; eles optaram por não ouvir, e agora pagavam o preço. Valerie sabia que era bom estar certo, mesmo a respeito de coisas que você preferiria estar errado.
— Sua hora chegou, besta!
A armadura de prata brilhou a luz do fogo enquanto o caçador seguia na direção da batalha. Valerie se perguntou se a espada de Solomon se perderia no pelo emaranhado e espesso do lobo. Será que alguma arma era grande o suficiente para derrubar essa criatura?
A efígie altaneira do Lobo havia se tornado uma mancha laranja contra o céu.
Os homens de Solomon singraram na direção do Lobo, mantendo-se rentes ao chão. Nenhum medo ou raiva se estampava no rosto do animal. Pelo contrário; Valerie imaginou que era um olhar de ligeiro aborrecimento. Quase de diversão.
Um soldado aproximou-se do Lobo, balançando uma corrente com uma bola de espinhos em cada extremidade. A arma parecia violenta por sua simplicidade. E, com a mesma simplicidade, o Lobo a derrubou.
Em seguida, outro soldado moreno correu para frente com um sabre curvo, duro e belo em sua ira. Ele pareceu atordoado quando as garras do Lobo encontraram o seu alvo, e sua pele estalou ao ser perfurada, deixando escapar um longo jato de sangue da fenda entre seu peitoral superior e inferior.
Os soldados ainda atacavam, um após o outro, sem dar nenhuma trégua ao Lobo.
Finalmente, o capitão veio correndo e sacou o seu chicote como expressão de sua ferocidade. Seu corpo era firme e definido; ele se parecia mais com uma bela escultura que com uma pessoa. Empertigando-se para frente, seu irmão vinha com ele, alçando seu próprio chicote que estava enrolado bem apertado. Ele soltou-o em preparação.
Os dois homens rodearam o Lobo. Um terceiro soldado ficou atrás deles, respirando com dificuldade, com a lança em riste. Os dois homens se moviam como golfinhos, arqueando e sacudindo à medida que açoitavam as tiras. A maioria dos aldeões já ouvira naquele momento o alerta de Solomon e fugira para a igreja. Mas Valerie ficou observando, sentindo suas entranhas tão tesas quanto os chicotes de couro.
Eles achavam que o haviam pegado.
Mas, encurralado, o Lobo cravou suas pernas e começou a recuar, puxando os soldados por suas duas correias tensas.
Os homens enormes deslizaram adiante no chão, tentando manter o equilíbrio, com cuidado para não se inclinar muito para frente ou para trás.
Suas pernas tremiam enquanto lutavam com a besta. O peso deles combinado não era, para o Lobo, um grande fardo.
Então algo se rompeu. Alguma tensão inevitável foi liberada, e Valerie sentiu seu coração afundar como uma pedra quando o capitão foi arrastado para um lado através da neve marcada de sangue, e o Lobo atirou o irmão para o outro lado da praça, o seu corpo achatado brilhando pelo ar como uma estrela.
O irmão do capitão se esforçou para levantar, mas o Lobo puxou-o de volta para a terra.
Valerie olhou para o padre Solomon montado em seu cavalo forte e, em seu rosto, ela viu o que nunca teria imaginado.
Incerteza.
O homem que viera preparado para tudo havia sido pego de surpresa. O soldado com a lança se virou e caminhou com passos largos até Solomon, que mantinha os olhos duros de águia na cena.
— É forte – mais forte que qualquer um que já enfrentamos antes!
— Tenham fé. Deus é mais forte — Solomon retrucou, olhando para a frente e estimulando a sua montaria com o punho da sua espada aninhado firmemente na sua mão.
Do outro lado da praça, o Lobo reagiu ao nome da divindade. Virou-se para enfrentar o padre Solomon, deixando escapar um rosnado baixo. Solomon encontrou o olhar do monstro. Estendeu a mão e, pegando o crucifixo pendurado por uma corrente no pescoço, beijou-o.
Valerie percebeu que tudo aquilo que o havia tomado – dúvida, medo – já o deixara, e o homem da certeza retornou com vingança.
— Deus é mais forte!
Com isso, agarrou as rédeas e fincou as esporas nos flancos de sua montaria. Enquanto o cavalo arremetia, Solomon ergueu sua espada – a espada da ira de Deus. Mas o Lobo manteve sua posição. Sem medo, desafiador.
Suas mandíbulas abriram, deixando sair um rosnado sobrenatural que sacudiu o chão onde Valerie estava. O cavalo de Solomon se assustou; empinou, cruzando as patas sobre as outras e tropeçando nas próprias pernas, fazendo seu cavaleiro voar para trás no ar. Ele aterrissou no chão, batendo entre os carvões em chamas da fogueira, lançando um gêiser de faíscas. Os cascos do cavalo tamborilaram no chão enquanto ele galopava para longe.
O grito de agonia e raiva de Solomon parecia divertir o Lobo. Valerie pôde sentir o prazer em cada ondulação de seus músculos quando ele arremeteu na direção das brasas para acabar com seu inimigo indefeso, lutando para sair do fogo e com a espada perdida, Solomon sabia que o seu fim havia chegado.
Zzzzzziiiissssss!
Sombras inclinadas se arremeteram pela praça de lugar nenhum.
Não, não era de lugar nenhum – o arqueiro mascarado sentado no parapeito da sacada da taberna manuseava uma besta de fogo que cuspia flechas prateadas repetidamente. Elas voavam na direção do Lobo, que soltou um grunhido de raiva e, com um salto poderoso, subia no telhado de uma cabana. O arqueiro lançou flecha após flecha na direção da sombra que pulava sobre os telhados.
Com um salto final, o animal desapareceu na noite.
Mas o espetáculo não havia acabado. Valerie observou uma figura emergir das brasas ardentes e da fumaça, removendo as cinzas quentes de seu rosto. Ele estava queimado, marcado para o resto vida. Mas, estimulado pela dor e pelo ódio, pela ira amarga e pela sede de vingança, padre Solomon se ergueu. Ressuscitado.
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