quarta-feira, 16 de julho de 2014

20° Capitulo - A Garota da Capa Vermelha

Ela ouviu o som de botas pesadas a escada. Depois, alguém bateu à porta. Então vieram mesmo, como disseram que fariam, para demolir e esvaziar as casas. Os inquisidores iriam abrir suas vidas, desenterrando todos os segredos.
“O que temos a esconder?”, perguntou Valerie a si mesma.
Bam! Bam! Bam! As batidas se tornaram mais insistentes.
Sem desprender a corrente, Valerie entreabriu a porta, esperando encontrar o capitão ou o próprio Solomon. Em vez disso, deparou-se com um par de olhos flamejantes, ansiosos... assustadores. Como os que ela vira na travessa escura.
— Peter?
— Valerie, abra a porta.
Ela hesitou. Alguma coisa em seu íntimo lhe dizia para não fazê-lo. Peter empurrou a porta, que rangeu sob a pressão, mas a corrente resistiu.
— Abra a porta.
Por que ele estaria sendo tão brutal?
— Você não deveria estar aqui — ela ouviu a si mesma dizer.
— Estamos todos em perigo — sibilou Peter. — Temos que ir embora.
Pela fresta da porta, suas pupilas pareciam finas como agulhas e brilhavam como se estivessem em chamas. Ela pensou no garoto que ele fora para finalmente reconhecer que ele não era mais aquele garoto.
— Pegue suas coisas. Depressa. Venha comigo.
Valerie pensou no celeiro, no hálito dele sobre seu corpo, em como parecia querer devorá-la.
Venha comigo ou vou matar todos aqueles que você ama. Ele não dissera isso, dissera? Não, fora o Lobo.
Mas lá estavam aqueles olhos ardentes, perigosos, olhando para ela. Empurrando a porta. Agarrando seu coração. Tentando seduzi-la.
Ela se afastou da porta como se afastaria de uma carruagem a toda velocidade.
— Valerie, não há tempo.
Foram apenas dois dias, mas muita coisa mudara desde que ela estivera disposta a acompanhá-lo, desde que confiara nele o bastante para isso. Sua irmã fora assassinada. Sua cidade fora devastada. Sua mãe fora atacada.
Desde que o Lobo aparecera... Desde que Peter aparecera.
— Depressa, Valerie.
Ela abanou a cabeça para clarear as ideias e se forçou a dizer alguma coisa. Qualquer coisa.
— Não posso. Minha mãe está ferida.
— Por que não matei aquela coisa quando tive chance? — rugiu Peter, afastando-se para jogar uma pedra na rua abaixo, como se ela contivesse todos os seus arrependimentos.
Naquele instante, quando as mãos dele estavam longe da porta, ela se lançou para frente e a fechou, trancando a fechadura.
A voz dele ecoou através da porta.
— O que você está fazendo?
— Eu não tenho escolha. Desculpe.
Ela se encostou à porta, esperando ouvi-lo partir. Dúvidas atravessavam sua mente como finos grãos de areia. Teria feito a escolha certa? Ou o medo a fizera voltar-se contra a pessoa que mais amava?
Quando ouviu seus passos se afastando, ela espreitou pelos vidros da janela e viu alguma coisa em seu bolso traseiro. Uma faca.
Peter roubara uma faca.
Eles estavam com sete anos e haviam capturado um coelho em uma armadilha. Olharam um para o outro sombriamente – um olhar que Valerie nunca iria esquecer, de empolgação selvagem, como dois jovens lobos abatendo sua primeira presa...
Um jato de sangue escorreu do pescoço do coelho, uma listra vermelha que se espalhou pela pelagem imaculadamente branca, devagar o bastante para parecer cru. Ela não cortara fundo o bastante. Queria poupar o animal ou prolongar seu sofrimento? Nunca saberia a resposta.
Qual de deles convenceu o outro a matar?
O Lobo sabia que eu matara antes.
O Lobo... Peter. Seria possível?
Os temores dela estavam sendo confirmados. Porém...
Enquanto o vento uivava na chaminé, Valerie viu sua Avó se inclinar sobre Suzette, que ainda gemia, para trocar suas ataduras. A luz bruxuleante do fogo distorcia sombra da velha senhora, transformando-a em algo grotesco e monstruoso que dançava na parede. Valerie aproximou e olhou para as horríveis marcas de garras rosto da mãe. Depois, olhou para as unhas da Avó. Como nunca notara como eram grandes aquelas unhas... e como se pareciam com garras?
Valerie estendeu a mão para a mesinha de cabeceira e se apoderou de uma faca com cabo de osso, ocultou na manga do vestido.
Alguma coisa apertou sua perna, fazendo com prendesse a respiração. Mas era apenas sua pobre mãe, lembrando-se do momento em que o Lobo havia rasgado sua carne com garras afiadas como navalhas.
Usando as duas mãos, a frágil mãe de Valerie levou até a boca a xícara de chá para dormir. A Avó ajudou-a tomar um gole. Valerie observou tudo atentamente. Estranho nunca ter notado que os chás para dormir que a Avó fazia eram na realidade venenos fracos. Venenos que deixavam as pessoas indefesas.
As pálpebras de Suzette estremeceram e se fecharam.
— Descanse, querida — disse a Avó, enquanto gesticulava para que Valerie se afastasse da cama.
Sua voz era como uma canção de ninar.
Ninguém cuidara da casa desde a morte de Lucie. Algumas ameixas apodreciam em uma tigela. Xícaras vazias e pratos sujos entulhavam a pia.
A Avó deu um pedaço de pão a Valerie e começou andar de um lado para outro, limpando tudo. Estava mais sintonizada com as necessidades e desejos de Valerie do que ela mesma. O pão acabara de sair do forno, e tudo o que ela conseguiu saborear foi o calor. Mas ela o comeu mesmo assim, distraidamente. Morder, mastigar, engolir.
— Há alguma coisa errada. O que foi, querida? Você não quer me contar?
A Avó estava tentando extrair informações, abri-la como se abre uma noz recalcitrante, para saber o que tem em seu interior. Ela quer saber tudo. Por quê? Já conhecia todos os segredos de Valerie.
Ela olhou para sua Avó. Os olhos dela. Castanho escuros. Ardentes. Forçando Valerie a responder.
— O Lobo. Ele falou comigo.
A incredulidade faiscou no rosto da Avó.
— E você entendeu?
A Avó inclinou o corpo sobre a mesa da cozinha. Disfarçadamente, sua mão procurou alguma coisa atrás das costas...
— Tão claramente quanto entendo você.
Valerie percebeu um tom de desafio na própria voz.
A Avó encontrou o que estava procurando - uma tesoura. Valerie agarrou uma coisa que estava dentro de sua manga – a faca com cabo de chifre.
Elas se mantinham de pé, encarando-se enquanto um silêncio venenoso as envolvia e asfixiava.
— Você falou com alguém sobre isso?
Os lábios da Avó retesaram-se nos cantos.
As coisas que não eram ditas faziam seus corpos se contraírem.
— Ninguém sabe, a não ser Roxanne. Ela não vai contar a ninguém. Nem comigo ela vai querer falar nisso.
— O Lobo decidiu não matar você...
De repente, ao ouvir o timbre da voz dela, Valerie teve certeza. Não era sua mãe, nem era Peter. Era ela. Valerie sentia isso. O Lobo estava ali, no quarto, no corpo de sua Avó.
— ...mas certamente ele poderia ter matado — Valerie lembrou sem alterar a voz. — Acho que ele me quer viva
Valerie sentiu o ar deixando o aposento. Sentindo-se sufocada, caminhou cautelosamente até a janela e abriu as persianas.
A manhã arroxeada invadiu o ambiente, mesclada a uma brisa que trazia o familiar aroma de pinheiros. E tudo mudou. As duas mulheres perceberam como estavam erradas. A Avó largou a tesoura que segurava atrás das costas e limpou a mão no avental, meio que tentando apagar sua culpa. Valerie também se sentiu envergonhada por duvidar daquela mulher que sempre havia amado. Ambas relaxaram.
— Mas por que você, Valerie?
— Não sei. Ele disse que se eu não fosse com ele, mataria todos aqueles que eu amo. Ele já matou Lucie...
Ela sentiu uma dor na nuca devido à tensão, e repousou a cabeça no ombro da Avó. Ficou assim por alguns momentos, sentindo o peso da própria cabeça. De repente, algo estalou em sua coluna e entrou de novo no lugar.
A mão da Avó procurou a dela. Pensando no que quase fizera, por suspeitar de todos ao redor, Valerie .achou que havia enlouquecido.
— Ele está vindo me buscar — sussurrou. — Antes que a lua vermelha desapareça.
A Avó se afastou dela, profundamente perturbada. Procurando algo para fazer, resolveu preparar um chá. A chaleira tremia em suas mãos quando a retirou da lareira.
— O que aconteceu com Lucie foi minha culpa — declarou Valerie. — O Lobo está aqui por minha causa.
A Avó ficou em silêncio, e Valerie entendeu que não tinha como negar isso.

***

Valerie precisava sair. Ao deixar a cabana, sentiu-se surpresa com o simples fato de ser capaz de fazê-lo, como um caramujo abandonando a antiga concha sendo seu peso agora uma fração do que fora.
O frio a atingiu como um tapa no rosto e a despertou do estupor. Valerie caminhava rapidamente, mas sem objetivo.
Decidiu então ir até o poço, onde se deparou com Roxanne e a mãe, que foram buscar água. Atrás delas, soldados revistavam uma cabana, jogando para fora os escassos bens dos moradores.
— Claude voltou para casa? — perguntou.
Roxanne passou ao seu lado, com um balde em cada mão. Agia como se não visse ou ouvisse Valerie.
— Ninguém o viu — respondeu Marguerite, antes de se afastar.
Valerie ficou magoada. Roxanne sabia que ela gostava de Claude – era a única pessoa que o procurava quando ninguém mais o fazia, além da própria Roxanne. Por que ela havia ignorado sua preocupação? Espreitando as negras profundezas do poço, Valerie repassou as lembranças. Será que Roxanne estava envergonhada por ter demonstrado tanto medo na frente dela? Ou seria porque o Lobo não a escolhera? Valerie sentiu uma vibração maldosa em seu âmago mais profundo. Talvez Roxanne estivesse enciumada. Talvez todas as garotas estivessem com ciúme de seu noivado.
Um cão que pertencia a um dos lenhadores visitantes estava correndo nas proximidades. Era o que ela mais precisava naquele momento – um animal inocente que viesse até ela e lhe oferecesse o dorso para uma carícia. Ela queria que confiassem nela, que lhe dissessem que era boa. Mas o cão a olhou com ar amedrontado e se recusou a chegar perto dela. Valerie permaneceu agachada, esperançosa, mas o cão recuou, erguendo a cabeça para dar alguns latidos antes de se virar e sair correndo com o rabo entre as pernas. Como se ela fosse uma ameaça.
Valerie não era mais quem costumava ser. Sentia uma parte de si mesma desmoronando aos poucos, como uma escarpa despencando no mar.

***

Ela ainda estava ajoelhada ao lado do poço, acionando a velha bomba, quando uma sombra escura se refletiu na água. Seu estômago se contraiu. Era Henry. Estava com um aspecto diferente. Seus olhos eram sombrios e vagos como quartos vazios.
— Estou rompendo o noivado — disse, com voz áspera.
— Rompendo o noivado?
Valerie não sabia como deveria se sentir.
— Sim — disse ele, piscando os olhos lentamente enquanto falava, como se isso pudesse ajudá-lo a aceitar a decisão que tomara. — Eu vi você com Peter.
— Você nos viu?
— No celeiro.
As palavras se infiltraram nela, saturando-a com uma terrível compreensão. Ela via os pensamentos de Henry se agitando por trás de seus olhos.
“Que pilhéria cruel ele sofreu”, pensou Valerie, compreendendo como ele a amava. Amar uma garota por tanto tempo sem pressioná-la, respeitando sua necessidade de independência, e ver aquele amor estilhaçado num instante por Peter – por alguém que surgira de repente, após tantos anos afastado, e que a arrebatara em qualquer consideração pela felicidade dela. Como devia doer ter as esperanças pisoteadas por aquele que Henry culpava por sua perda mais penosa. “Se Lucie estivesse aqui, se ele a amasse, em vez de a mim...”
— Não vou forçar você a se casar comigo — continuou Henry, sem esperar que ela respondesse, cavalheiro até o fim.
Vê-lo de coração partido deixou-a também de coração partido. Valerie pensou em se aninhar no peito dele mais uma vez, na segurança que ele lhe oferecia. Ela estava farta de perigos, traumas e paixões. Estava irritada consigo mesma. Por que não podia amar Henry?
— Sei que você não quer viver comigo.
A sinceridade dele foi um choque. A única coisa que ocorreu a Valerie foi remexer o bracelete até finalmente destravá-lo. Então o devolveu.
— Sinto muito.
Ela se ouviu pronunciando palavras vazias, algo que sempre tentara evitar. Sem melhor opção, acabara recorrendo a elas, sabendo que eram um consolo patético.
Rapidamente, ele desapareceu. O único ruído que se ouvia agora era o chapinhar da água barrenta que escorria do poço. De pé, sob o sol, Valerie ponderou as palavras de Henry. Mas não conseguia pensar nelas por muito tempo; ao fazê-lo, chamas flamejavam em seu interior e ela sentia um ardor vergonhoso.
Acabara de vestir sua capa vermelha, após sacudir a neve que a recobria, quando ouviu gritos na direção do celeiro. Acompanhando a multidão que corria ao local, sentiu-se aliviada por não estar sendo o foco das atenções.
O celeiro era um lugar diferente à luz do dia. O sol se infiltrava pelas frestas das tábuas, iluminando as teias de aranha que se alojavam entre as vigas. Padre Auguste estava com Solomon e seus homens, que mantinham as armas preparadas. Todos olhavam para cima. Ela seguiu os olhares... e viu Claude.
Ele estava vivo. Empoleirado em uma viga, sacudia-se como se estivesse coberto de insetos invisíveis, e parecia extremamente traumatizado. Ou possuído. Um dos arqueiros de Solomon ergueu o arco.
Ouviu-se um grito. Roxanne apareceu correndo e investiu contra o arqueiro, mas foi contida pelos soldados.
— Ne conjugare nobiscum — gritou o arqueiro.
Valerie abriu caminho em meio à multidão e se postou ao lado de Roxanne.
— Eu vi Claude no festival — disse ela, tentando atrair o olhar de Solomon. — Não foi ele. Não poderia ser. Ele não é o Lobo.
— Quero que ele seja interrogado — disse Solomon aos soldados, ignorando Valerie. — Olhem para ele, o jeito como ele está agachado lá...
Solomon tinha certa razão. Claude parecia pequeno visto de onde estavam, mas não tinha um ar inocente. Parecia selvagem, como um jovem abutre deixado à própria sorte em um ninho de gravetos e cabelo humano.
Valerie perguntou a si mesma qual seria a reação apropriada. Ele estava reagindo do modo como todo mundo deveria ter reagido. Por que todos se mostravam complacentes diante da tragédia e da brutalidade que se abatera sobre eles? Que mecanismo permitia que essas coisas fossem dissimuladas?
Mas nem mesmo sua mãe o defenderia. Atordoada, Marguerite sentou-se ao pé de uma pilha de feno. Não conseguia olhar para cima, fitava somente as próprias mãos, conjeturando sobre o que aconteceria ao seu menino doce e estranho. Jamais soubera o que fazer com ele e jamais perguntava por ele. Assim, absolvia-se de qualquer culpa.
— Ele fala de forma estranha — declarou Solomon.— Ele comunga com demônios. Ele pratica magia negra. Ele é um bruxo.
O grande padre Solomon, percebeu Valerie, tinha uma visão simplista da humanidade – a mesma de um garoto de escola. Pensava nas pessoas em termos de predador e presa, bom e mau. Não deixava espaço para ambiguidades. O que não fosse puro deveria ser impuro. Mas ela também cedera a tais idiotices naquele mesmo dia – suspeitando de sua Avó, suspeitando de Peter. Seu rosto ardeu de vergonha.
— Ele não é mau! Eu o conheço! — gritou ela, desafiando Solomon.
— Melhor do que eu conhecia minha própria esposa?
Solomon finalmente se virou para encará-la. Valerie ficou sem resposta.
Solomon apresentou uma desgastada carta de tarô: O Louco, um mendigo descalço.
— Olhe. Isto foi encontrado perto do corpo de sua irmã.
— Ele fazia mágicas — interpôs Madame Lazar, materializando-se na multidão. — Eu sabia que era trabalho do Diabo!
Valerie olhou com incredulidade para Madame Lazar. “Se havia alguém com cara de bruxa...”
— Ele é diferente — disse Valerie, olhando para o garoto. Os olhos dele tremeluziam como água. — Isso não faz com que ele seja culpado.
— Pessoas inocentes não fogem. Ele deve estar fugindo de alguma coisa — replicou a velha bruxa.
— Se os inocentes são injustos, prefiro estar entre os culpados.
Madame Lazar voltou-se para Valerie, franzindo a testa, subitamente desconfiada. Solomon olhou para o besteiro mascarado.
— Tire-o de lá.
Roxanne se atirou contra Solomon, mas o besteiro mascarado a afastou como se ela fosse uma mosca.
Dobrando para baixo as esporas das botas e largando suas foices de guerra, dois soldados começaram a escalar o celeiro como se fossem insetos, enfiando os dedos entre as frestas da madeira.
— Não o assustem! — gritou Roxanne.
A queda seria longa.
Ao vê-los se aproximar, Claude enfiou-se sob a calha coletora. Por um momento, deu a impressão de que ele iria cair, mas se aprumou – apenas para se ver encurralado na plataforma superior.
Enquanto os soldados o agarravam, Roxanne segurou o braço de padre Auguste, que parecia nervoso e indeciso como uma criança a quem são oferecidas muitas opções. Já não sabia mais de que lado estava.
— Faça alguma coisa, por favor — suplicou Roxanne.
Mas padre Auguste continuou olhando para a frente e não respondeu. Os soldados passaram por eles arrastando Claude, que não parava de se contorcer. Ao que tudo indicava, padre Augiste já escolhera seu lado.
Roxanne desmoronou no chão, chorando.
Valerie sentiu algo que não sentia desde os sete anos de idade.
Um completo desamparo.

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