Peter levantou os olhos. Ficou feliz ao ver Cesaire empurrando o carrinho de mão em torno da praça e Henry ocupado na ferraria. O plano estava em ação.
Gotas translúcidas de óleo de lamparina pingavam do carrinho de mão e caíam sobre a neve suja. Cesaire parou um momento para dar um gole em seu cantil, aproveitando a oportunidade para olhar ao redor. Ao notar que o capitão estava montando guarda na praça, estremeceu. Tentando manter uma expressão despreocupada, continuou a empurrar o carrinho. Mas o capitão se encaminhou em sua direção, acompanhado por dois soldados.
O corpo de Cesaire tomou a decisão por ele. Correr.
Correndo sobre a lama formada pela neve, ele derrubou algumas gaiolas de faisões e pulou por cima de um cocho de ração.
O capitão puxou um longo chicote e o estalou sua direção. O chicote mal encostou em Cesaire, mas ele caiu com o rosto em um monte de neve. Tentou se arrastar para longe, mas só conseguiu dar alguns passos antes de ser alcançado e agarrado por mãos anônimas.
— Só por precaução — vociferou um dos soldados — nós não queremos problemas com a família da bruxa.
Valerie ouviu um som de passos, e a voz áspera de Padre Solomon ecoou na escuridão.
— Ponha seu manto de prostituta.
Ele aguardou que o postigo fosse aberto, seguida, jogou a capa vermelha na direção de Valerie, que se envolveu no lindo tecido cuja textura era lisa e macia.
Um soldado apareceu e lhe colocou algemas ferro, que ficaram folgadas em seus finos pulsos. Valerie percebeu alguém se aproximando: era seu pai, que o teto baixo obrigava a se curvar.
— Valerie! — ele parou à sua frente. — Eu tentei proteger você... Você e Lucie...
Lucie. Agora, ela parecia uma criatura imagina quase mítica. Inventada.
— Tudo bem, papai — ela falou, engasgando com as palavras. — Você nos ensinou a ser fortes.
Valerie percebeu quanto ele se sentiria só quando ela estivesse morta.
— Você é minha boa menina. Continue forte.
Ela sentiu seu aperto de mão, firme como sempre, e soube que seria o último. Seu coração pareceu entalar na garganta. O que poderia dizer?
Sentiu-se quase grata quando o soldado afastou Cesaire para o lado e a empurrou em direção a Solomon.
A máscara de ferro era tão pesada que tornava quase impossível manter a cabeça erguida. Tinha pequenas aberturas para os olhos. A projeção afunilada em frente ao nariz representava inquestionavelmente o focinho de um lobo ostentando um sorriso de dentes afiados, feitos com incrustações de marfim. Aquela máscara de lobo fora projetada para maximizar a humilhação pública. Era uma obra-prima da crueldade humana. Valerie pôde perceber a satisfação no rosto de padre Solomon quando o capitão a encaixou sobre sua cabeça.
Depois, tudo o que ela viu foi a escuridão, e tudo o que sentiu foi o peso do metal que oscilava de um lado para outro enquanto era fixado com fivelas e trincos.
No início, Valerie lutou contra o cruel abraço das algemas e da corrente, tentando se livrar delas, mas acabaram esfolando seus pulsos. Então, mesmo cambaleante, tentou andar o mais rápido possível para não dar aos aldeões a satisfação de a verem cair enquanto era puxada por um cavalo pelas ruas do vilarejo.
Acompanhando seus tropeços no chão lamacento, a máscara deslizava e oscilava. Estava quente em seu interior. A testa de Valerie estava oleosa no lugar em que tocava o metal.
Os aldeões haviam se reunido sob a luz minguante para assistir ao macabro desfile que avançava lentamente pela rua principal. Sentiam-se incapazes de desviar os olhos. A última noite da lua de sangue estava se aproximando.
Um ou dois dos espectadores murmuraram audivelmente:
— Bruxa.
Outros, distraidamente, faziam o sinal da cruz.
Uma voz que ela reconheceu como sendo a da Madame Lazar gritou:
— Não está mais tão bonita agora, está?
Mais adiante, foi a vez de Rose, que a chamou da bruxa e coisas piores, para mostrar a Madame Lazar que seu neto encontraria uma esposa adequada. Parecia que nunca conhecera Valerie.
Valerie sentiu que alguém puxava seus cabelos e tentou não gritar. Mas suas madeixas louras foram desprendidas por um soldado, impaciente para manter em movimento o trem da vergonha.
Acorrentada a um poste, ajoelhada no altar do sacrifício, Valerie ouviu a voz de padre Auguste, que a abençoava ao folhear as páginas da Bíblia. Pouco mais tarde, ouviu uma voz familiar soltar um grito pouco familiar.
— Ela é o meu bebê!
Com algum esforço, sob o peso do ferro, Valerie conseguiu erguer a cabeça. Pelas pequenas frestas da máscara, viu sua mãe, descalça, agitando-se freneticamente como uma mariposa moribunda. Seu rosto cortado, intumescido nos locais onde não havia ferimentos, parecia estar coberto de geleia. Estava cicatrizando em algumas partes, mas não em outras, onde as feridas eram profundas.
Ela parou diante de Solomon.
— Solte-a, seu canalha!
Os cabelos de Suzette estavam desgrenhados, e ela cheirava mal.
— Solte-a! — tornou a berrar.
Levantou então o braço para bater em Solomon, mas este segurou seu pulso com facilidade.
Os aldeões fizeram silêncio. Não estavam gostando de vê-la daquela maneira louca e fora de controle. Outra vítima. O próprio padre Solomon não disse nada por alguns momentos, deixando-a extravasar a raiva.
Valerie não conseguiu olhar por mais tempo, e pousou o focinho de ferro no peito.
— É melhor você ir para casa — ouviu Solomon dizer, como um pai desapontado. — É melhor todos vocês irem para casa.
Aldeões amedrontados seguraram a mãe de Valerie, que já perdera as forças, e a puxaram para trás. Enquanto era levada para casa, Suzette cobriu o rosto com as mãos. Era muita coisa para suportar.
As horas se passaram. A noite caiu.
Valerie olhou para a lua de sangue. Era a última noite. Ouvira as portas do vilarejo sendo trancadas e as janelas se fechando. Aturdida, desejou poder se deitar e dormir durante horas, mas as correntes a mantinham ereta.
Uma sombra fez vulto sobre ela. Ela soltou um gemido, que ecoou na máscara de metal. Fechando os olhos, esperou pelo fim.
— Valerie — disse uma voz feminina.
Abrindo os olhos, ela se esforçou para enxergar pelos buracos. A sombra se colocou em seu campo de visão.
— Prudence?
— Roxanne quer que você saiba que ela está arrependida. Ela só disse aquelas coisas para salvar o irmão dela — Prudence sussurrou.
— Eu sei disso. — Valerie estremeceu com o frio, fazendo as correntes tilintarem. — Você poderia dizer a ela que eu a perdoo?
— É claro. Mas eu queria dizer... Eu não sei o que...
Havia uma cadência irregular na entonação de Prudence.
— Você não precisa dizer nada.
— Não, eu quero.
Valerie tentou se inclinar para frente, esticando as correntes em seu esforço. Prudence se abaixou e se aproximou mais. Seus cabelos castanhos emolduravam seu rosto como uma cortina.
— Eu quero que você saiba que pode enganar Roxanne, mas não pode me enganar — disse ela. Suas palavras sibilavam como fogo. — Você sempre se achou melhor do que nós; boa demais até para Henry! Sua derrota é a nossa vitória. Agora, você vai ter o que merece.
— Prudence — Valerie já não conseguia se lembrar de seus sentimentos na época em que ela era sua amiga. Tentou então ser forte — acho melhor você ir embora.
Seus olhos estavam secos como uma fruta descascada que passou a noite ao relento.
Prudence olhou para cima. As nuvens haviam se dispersado, revelando a lua vermelha.
— Sim, você tem razão. Agora não vai demorar. O Lobo vem buscar você.
Sentindo-se quase grata por estar com a máscara que não traía seus sentimentos para sua torturadora, Valerie fechou os olhos. Quando os reabriu, Prudence já desaparecera.
Um vento de inverno começou a soprar. Os tremores de Valerie fizeram as correntes retinirem.
Nada havia a fazer, exceto esperar. O Lobo viria buscá-la. Mas o que aconteceria depois?
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