quinta-feira, 17 de julho de 2014

27° Capitulo - A Garota da Capa Vermelha


No outro lado da praça, Solomon mantinha-se em pé no topo da torre do celeiro, cercado por armas, cordas e aljavas. Abaixo, os soldados se ocultavam nas ruelas, vigiavam os cavalos, afiavam setas com pontas de prata e aguardavam às janelas.
Tudo estava preparado. Ele não tinha mais o que fazer, exceto limpar as unhas com a ponta da faca e jogar a sujeira no piso. Sua pele, que melhorara um pouco, estava rompendo os pontos como uma maçã assada. Padre Auguste juntou-se a ele.
— Sabe como se mata um tigre, padre Auguste? — sussurrou Padre Solomon, impassível, olhando para a praça onde a patética figura de Valerie, como uma boneca de pano, estava acorrentada ao altar. — Você amarra seu melhor bode e espera.

 

Perto do arruinado muro da cidade, um vulto negro se agachou procurando alguma coisa na neve com a ajuda de um archote. Encontrando o que procurava, abaixou a chama da tocha. Nada aconteceu durante alguns momentos. Subitamente, o chão pegou fogo. Uma linha flamejante se desenhou na praça, ganhou velocidade e seguiu a trilha de óleo até o silo abandonado, atingindo a pilha de gravetos que a esperava lá. Peter manteve-se abaixado, com o rosto iluminado pelas chamas do archote, observando com satisfação os resultados do trabalho que realizara com Cesaire.

 

De seu posto de comando no topo da torre, Solomon semicerrou os olhos para protegê-los do súbito clarão enquanto observava as chamas e a fumaça invadirem a praça abaixo. Soltou uma praga. Não havia tempo para aquilo – não naquela noite. Fez então um sinal para o capitão. Em poucos segundos, seus homens, pendurados em cordas, desceram pelas paredes do celeiro e dirigiram-se à praça.

 

O apertado espaço interno da máscara se encheu de luz; Valerie olhou pelos buracos, espantada com as chamas e a fumaça que o vento fazia revolutear. Ao ouvir uma voz atrás dela, bem perto, tentou arrancar as correntes.
— Eu vou tirar você daqui.
Mesmo em meio ao caos, ela sabia que era Henry. Mas ele estava diferente. Sua determinação poderosa e sua concentração febril a amedrontavam.
— O que está acontecendo? — perguntou ela, confusa.
— Faz parte do plano. Eu vou tirar você daqui — repetiu.
Henry gostava de ouvir o som da própria voz. Era ele, e não Peter, quem se encarregaria da libertação propriamente dita. Suas mãos já estavam trabalhando com as estranhas chaves que confeccionara de manhã – chaves mestras. Ele tinha prática: seus dedos faziam a chave ranger na fechadura, procurando os pinos internos.
Quando ele entrou em seu campo de visão, tudo o que Valerie conseguiu ver pelos buracos foram seus olhos castanhos, luzindo à luz das chamas. Olhos inteligentes e penetrantes. Ardentes.
Exatamente como os olhos do Lobo.
Valerie pensou no que sua avó começara a lhe sugerir. Pensou no bilhete encontrado nas mãos de Lucie. Alguém deveria tê-lo escrito. Depois, pensou na faca de cabo de chifre.
Clique. Uma fechadura se abriu. Restavam duas.

 

Agachado próximo ao muro, Peter avistou os soldados pisoteando as chamas, chutando neve sobre elas. Perscrutando através da fumaça, pôde divisar as duas figuras no altar. Henry ainda não havia libertado Valerie. “Por que está demorando tanto?”
Coube a Henry a parte principal da operação. Valerie se acharia sempre em dívida com ele por ter lhe salvado a vida. Iria considerá-lo como o idealizador do plano, assim como alguém que sai do teatro achando que o ator criou as próprias falas – não o dramaturgo.
Henry, o herói. Droga.
“Nós estamos do mesmo lado”, lembrou a si mesmo. Estudou então a base do celeiro, sabendo que precisava ganhar mais tempo para Henry.

 

Clique. A segunda fechadura se abriu. As mãos de Valerie estavam livres. Faltava mais uma.
Os dedos de Henry trabalhavam automaticamente, como os dedos de um músico em um instrumento que toca com frequência. Porém, embora tateasse desesperadamente, ele não conseguia abrir o fecho da máscara. Furioso, começou a resmungar. A mão livre de Valerie desceu furtivamente até a faca. Seria bem coisa do Lobo surgir disfarçado de salvador. Não seria?

 

Zás!
Com um golpe por trás, usando o cabo do machado, Peter abateu o soldado de guarda à porta do celeiro e, sem hesitar, encostou a tocha no madeirame da porta. Mas, antes que pudesse verificar se as chamas haviam atingido o alvo, suas pernas vergaram.
Olhando para baixo, surpreso, viu que fora apanhado por uma corrente com uma bola de ferro na ponta que alguém lançara contra suas pernas. No instante seguinte, o soldado que segurava a corrente já estava pulando sobre ele.
 

Com seus olhos de lince, Solomon não desviava seu olhar da fumaça, tentando distinguir alguma movimentação no altar. A garota ainda estava lá, ele podia vê-la, mas ainda não havia sinal do lobo. Seria possível que aqueles aldeões idiotas o estivessem fazendo de bobo?
Então ouviu um estalido. Um som baixo, mas de qualquer forma um som. Depois, ouviu outro estalido.
Farejando o ar, logo compreendeu: o celeiro também estava em chamas. Alguém iria pagar caro por ter relaxado na guarda.
— Evacuar! — ordenou aos soldados.
Ele comandou a descida pelas escadas espiraladas da torre, respirando o ar enfumaçado e sufocante; isso o tornou impetuoso. Porém, ao fazer uma curva, deteve-se. Por uma janela, viu uma movimentação no altar, algo bem leve.
Exatamente o que temia.
O celeiro tremia à sua volta, e as paredes começaram a ceder. Colunas em chamas desabavam, e as chamas se projetavam na noite.
— Lá — indicou ao besteiro atrás dele.
O besteiro e padre Auguste olharam para onde Solomon estava apontando. A fumaça se dissipara o bastante para revelar um homem de capa agachado ao lado de Valerie, removendo a máscara de lobo.
O besteiro ergueu sua besta, mas hesitou quando uma viga desabou no chão.
— Espere! Pare! — gritou padre Auguste, juntando as mãos, como se estivesse segurando algo precioso.
— Faça o serviço — ordenou Solomon.
O besteiro mirou em Henry através da janela. Um alvo estacionário, um tiro fácil... Mas quando já estava apertando o gatilho, um vulto turvou seu campo de visão, próximo o bastante para fazê-lo vacilar e disparar a seta para longe do alvo.
Era padre Auguste, que enfim se cansara de tantas barbaridades e se interpusera na linha de tiro, atrapalhando o disparo.
— Corra! — gritou Padre Auguste na direção do altar, brandindo sua Bíblia.
A palavra ressoou no ar como uma badalada, e Solomon não perdeu tempo. Erguendo o braço, mergulhou sua adaga no peito de Auguste.
Os dois homens se encararam. Os olhos de padre Auguste arregalaram-se com o choque e a dor, enquanto a vida se escoava deles. Por fim, desabou no chão. A Bíblia caiu ao seu lado, com a capa virada para baixo.
Os olhos de Solomon voltaram-se novamente para o altar, onde a máscara de lobo jazia abandonada. Ele sabia que a oportunidade fora perdida. Mais uma viga caiu.
— Vamos embora — disse calmamente.
No lado de fora, ele descobriu que seus soldados haviam feito um prisioneiro.
— Foi esse aqui quem ateou o fogo.
O mais forte dos dois soldados empurrou Peter, que estava algemado. Eles o haviam tratado com dureza. Não gostavam de ser ridicularizados por um moleque de rua.
— Nossos homens encontraram esse sujeito lutando com um soldado — disse seu parceiro.
— Tranquem-no no elefante. Acenderemos a fogueira mais tarde — ordenou Solomon, dirigindo-se à praça incendiada.
Sua voz era como um cristal lapidado em desgosto.

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