sábado, 19 de julho de 2014

29° Capitulo - A Garota da Capa Vermelha



Valerie inseriu-se novamente no mundo, vinda de um lugar escuro. Ao olhar em volta, reconheceu o cobertor. Estava na casa da Avó. Mas o cobertor não era branco? Agora estava vermelho – o mesmo vermelho de sua capa. Vibrante, como algo vivo.
Uma neve macia recomeçara a cair, como nunca antes, formando enormes depósitos que lembravam travesseiros. Devia ter nevado durante toda a noite. O céu era de uma brancura uniforme, como um sonho. Valerie olhou para a forma que estava ao seu lado. A Avó. Deveria ser Lucie. Onde estava Lucie? Desaparecera. Desaparecera para sempre, como se nunca tivesse existido.
O despertar de Valerie pareceu despertar a Avó também, que rolou para o lado e encarou a neta. Seus olhos eram úmidos, redondos como bolas de gude, e suas pupilas estavam dilatadas.
— Que olhos grandes você tem, vovó — Valerie observou calmamente.
Ela notou que todos os traços do rosto da Avó estavam bem definidos e acentuados. E teve as mesmas sensações que tinha quando bebia água depressa demais: enjoo e tontura.
— É para ver você melhor, querida — disse a Avó, com voz abafada.
Suas orelhas despontavam entre seus cabelos desgrenhados, estranhamente afiladas.
— Que orelhas grandes você tem, vovó.
— É para ouvir você melhor, querida.
Ao dizer isso, a Avó exibiu seus dentes. Ah, seus dentes. Pareciam maiores e mais aguçados que o normal.
— Que dentes grandes você tem, vovó.
— É para devorar você melhor, querida... — a Avó replicou.
E pulou sobre ela.



Valerie acordou com um grito sufocado. Ao se orientar, percebeu que estava em sua própria cama. Viu Roxanne deitada ao seu lado, dormindo, com a luz da manhã sobre o rosto. Prendendo a respiração, observou para a amiga. Roxanne não era Lucie, também.
Suzette, que estava ao lado da cama observando a filha dormir, inclinou-se sobre ela.
— Querida — disse com uma voz doce que soou estranha a Valerie.
Sua mãe tinha um olhar distante. Estaria infectada? Valerie olhou ao redor, e tudo lhe pareceu estranho; não era como deveria ser. Os objetos pareciam oníricos, grandes demais, pequenos demais.
— Fiz um pouco de mingau para você, o seu favorito — continuou Suzette na mesma voz doce.
O aroma de melaço era irresistível. Ela mordeu o lábio. “Será que estou acordada?” Era difícil dizer.
Sua mãe tinha um sorriso fixo, pouco natural. Pulando da cama, Valerie desviou dela e desceu a escada descalça, dois degraus de uma vez.
— Valerie? — chamou Suzette, com a cabeça inclinada para o lado, como uma garotinha contando uma mentira.
— Estou saindo — respondeu Valerie, calçando as botas, pegando um lenço e algumas frutas que colocou em uma cesta. Depois, envolveu os ombros com a capa vermelha. Roxanne se mexeu na cama, abrindo os olhos e fungando o nariz.
— Saindo? — perguntou Suzette, divertida, descendo também a escada. — Para onde, querida?
— Para a casa da vovó. Eu tive... Acho que ela pode estar em perigo.
Ela também precisava encontrar Peter – se Peter pudesse ser encontrado. E Henry.
— Ah, Valerie! Você não tem que tomar conta de todo mundo. Eu fiz seu mingau favorito — repetiu Suzette, pousando a mão no rosto dela.
Sua mão estava fria e pegajosa. Reptiliana. Valerie olhou para a mãe, que sussurrou:
— Você está segura conosco.
Roxanne olhou para elas da cama, com as cobertas puxadas até o pescoço, piscando os olhos, sem saber o que estava acontecendo.
— Até logo, mãe. Até logo, Roxanne.
Valerie sentia-se sozinha, entregue a si mesma. Não precisava de ninguém.
Ao sair, foi recebida por um frio cortante. De certa forma, isso foi bom. Ela precisava de um choque. Precisava saber que estava viva. Apertando-se na capa, enfiou o capuz na cabeça. O vento zunia através de seu corpo, penetrando na capa que inflava com ar gelado. Ela segurou a cesta à sua frente, com os dedos agarrados à alça. Cristais de gelo trazidos pelo vento se alojavam entre as tiras de vime.
Valerie começou a atravessar o vilarejo. Não havia ninguém por perto.
A neve não mantinha registro de sua passagem, apagando suas pegadas com novos flocos, que formavam um grosso cobertor. Passou pelo elefante de bronze, que estava caído de lado, com a barriga aberta. “Alguém mais estivera ali dentro?” Valerie tremeu ao pensar em Claude. Aprendera como a humanidade pode ser cruel. Sentia-se desgostosa; talvez fosse melhor ser um bicho que um ser humano.
O mundo invernal mantinha as pessoas dentro de casa. Quando uma tempestade como aquela ocorria, era impossível saber o que havia após cada curva, o que se mantinha oculto atrás ou à frente.
O capitão fez um sinal para os soldados que estavam por perto, e estes recuaram quando ela se aproximou. Talvez por respeito à sua privacidade; talvez por desconfiança.
— Valerie.
O cavalo pateava, soltando vapor pelas narinas, que se condensava no ar frio da manhã, ansioso para prosseguir, como se estivesse na presença de algo maléfico.
— Quieto — disse Henry para acalmá-lo.
Parecia orgulhoso. Zeloso. Encontrara uma nova vocação. Iria perseguir o Lobo. O bem substituiria o mal, esperava Valerie.
— Você é um guerreiro — disse ela, com os olhos verdes elétricos.
— Você também — respondeu ele.
Valerie o envolveu com os braços e, ficando na ponta dos pés, alcançou seu rosto com os lábios. Gentilmente, as peles se encontraram em um beijo cálido e macio. Era como algo que se derreteria se fosse exposto ao sol. Algo que a deixou empolgada.
Ela sentiu a mão de Henry tocar suavemente seu rosto. De repente, seus corpos se separaram, em uma nítida ruptura.
Henry hesitou, passando a mão pelos cabelos castanhos.
— O que houve? — perguntou ela.
— Ninguém viu Peter, Valerie — respondeu ele, montando na sela. — E quando eu descobrir onde ele está... Vou fazer o que tiver de ser feito.
Ele parecia enorme sobre o cavalo. Então, entrou na floresta desolada e se afastou do grande guerreiro.
Valerie sentia-se em débito com ele por diversos motivos. Ela escolhera o bem em vez do mal, e a defendera sacrificando a si mesmo para protegê-la do Lobo e para protegê-la de si mesma. Ela partira o coração de Henry por amor a Peter – alguém que sempre tomava as coisas sem pedir. Como ela não havia percebido a vida tranquila e segura que poderia ter com Henry? Sua nova compreensão a deixava calma.
A cada passada do corcel de Henry, Valerie, que nunca havia precisado de ninguém, sentia um pequeno vazio se abrir e crescer dentro de si mesma.
Valerie começou a correr. Suas pernas a transportavam suavemente, mecanicamente, em meio à nevasca, enquanto seus pés se afundavam na neve, encontrando a superfície quebradiça do solo invernal. Ela tinha certeza de que havia algo muito errado na casa da Avó... não que as coisas estivessem certas atualmente. Mas algo estava acontecendo, algo sombrio, e ela precisava ir até lá, pois lhe faltavam forças para se manter afastada.
Ela não parou nos campos para pensar em Lucie, nem nos bosques para pensar em Claude. Seu coração não palpitou quando passou pelo Grande Pinheiro. Suas perdas, seu passado. Os lugares eram indistinguíveis, a neve tornara tudo igual. Ela não parou para se orientar, apenas se deixou levar pela sensação de urgência.
Passando pelo rio, que o frio transformara em uma tigela de leite, ouviu o gelo estalar como um galho cortado.
Então, finalmente, chegou ao Bosque do Corvo Negro. Já não estava longe da casa na árvore – apenas uns cem metros – mas a trilha que percorrera tantas vezes parecia interminável. Ainda estava atordoada pelo ferimento na cabeça, e o mundo esbranquiçado ao seu redor entrava e saía de foco. Os únicos sons que ela ouvia eram produzidos pelas rajadas de vento, que silvavam através de ramagens congeladas.
Ela olhou em volta. Nada nas moitas. Nada à frente exceto o lugar para onde estava indo; nada atrás exceto os lugares que percorrera. Límpidas cortinas de neve se acumulavam no chão a cada segundo. Valerie seguiu em frente. Os nós de seus dedos estavam brancos de tanto apertarem a cesta; o couro de suas botas fora invadido pelo frio. O capuz de sua longa capa vermelha emoldurava seu rosto alvo, de bochechas rosadas.
Tendo percorrido muitas vezes aquele caminho, sabia instintivamente onde pousar cada pé. Mas ainda tinha que se esforçar para avançar, como se estivesse nadando em óleo. O ar a retalhava, enregelante. Os galhos das árvores se destacavam contra o céu cinzento. Havia uma ausência de odores; até mesmo seus sentidos estavam congelados. No frio, os dedos não sentiam, os olhos não enxergavam.
A neve começou a cair tão pesadamente que qualquer coisa a mais de um metro e meio à frente se perdia no branco exuberante. Valerie não tinha certeza de estar consciente. Mas ouviu um zumbido quase inaudível entre as árvores. De vez em quando, algo estalava; quando olhava, não via nada. Mas podia sentir alguma coisa atrás dela, cada vez mais próxima. Aguçou então os ouvidos e tentou não fazer barulho mesmo quando começou a correr. Um animal. Com certeza era um animal. Já é manhã, lembrou-se. Não pode ser o Lobo.
Sim. Havia alguma coisa lá. Ela tinha certeza. Estava ouvindo seus passos. Cada vez mais alto. E mais perto.
Ela diminuiu o passo. Não estava com medo, disse a si mesma. Poderia ser Suzette correndo atrás dela, aborrecida com o modo como ela havia saído de casa. Ou Henry, para dizer que ficaria com ela.
Mas... poderia ser o Lobo em sua forma humana. O que quer que fosse, decidiu, não poderia ser pior que as coisas que já enfrentara. Virou-se então, derrotada, pronta para enfrentar seu destino sombrio.
Era Peter, o seu Peter, seguindo a garota que amava, a garota sem a qual não poderia viver. Sua camisa preta estava rasgada, e sua capa havia desaparecido.
— Valerie, graças a Deus você está bem!
O frio fazia seu rosto brilhar. Ele estava lindo – neve nas pálpebras, como diamantes, o rosa pálido das bochechas, o vermelho úmido dos lábios. Ele cambaleou em direção a ela.
— Vou ter que deixar você — ele estava ofegante. — Você nunca estará segura comigo.
Fosse quem fosse, ele não poderia ser mau. Um pensamento surpreendente e terrível penetrou na mente de Valerie, dissolvendo todos os outros.
— Peter... — disse, caminhando até ele de braços estendidos.
Finalmente, ambos se abandonaram um ao outro e cingiram os corpos. Os dedos frios de Valerie encontraram o calor do rosto de Peter, cujos braços se aninharam sob a capa vermelha. Os longos e louros cabelos de Valerie esvoaçavam ao vento. Envolvidos pelo manto branco da neve, eles se destacavam em negro e vermelho. Só eles existiam. Nada mais em lugar nenhum. Valerie sabia que jamais poderia viver longe dele; sabia que era o que ele era e que seria dele para sempre. Não lhe importava que ele fosse o Lobo. Se fosse, ela também seria.
Tendo feito sua escolha, levou seus lábios até os dele.

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