sábado, 19 de julho de 2014

28° Capitulo - A Garota da Capa Vermelha

— A bruxa fugiu!
Valerie podia ouvir os gritos enquanto corria. Era difícil entender por que estavam gritando aquilo para ela; impossível entender tudo o que ocorrera. Mas lá estava ela, uma bruxa, fugindo com Henry Lazar, seu antigo noivo ou um lobisomem.
— Vamos — incentivou ele — Peter vai nos encontrar no beco, com cavalos.
Ele ainda dizia o nome como se fosse algo desagradável, como uma coisa mofada em sua boca.
“Claro!” O coração dela se acelerou. Peter não a abandonara, afinal de contas. Viria buscá-la, completando a ação que Henry iniciara.
Ela olhou para Henry, que corria na escuridão. Uma imagem lampejou em sua mente: eles três fugindo juntos, movendo-se de cidade em cidade. Ela nunca precisaria escolher.
Peter iria se encontrar com eles. Mas espere. Henry dissera: “Eu vou tirar você daqui”. Eu, não nós. Ele realmente desejaria ajudá-la, mesmo depois que ela o rejeitara?
Entraram no Beco dos Tintureiros. Os dedos de Valerie doíam de tanto que ela apertava a faca sob a capa, como se estivesse retorcendo uma toalha. As tinas reluzentes de tintura azul estavam lá. As pétalas de flores estavam lá. Mas somente quando chegou ao fundo do beco, percebeu que não havia cavalos.
— Onde está Peter? — ela se ouviu perguntar.
— Não sei. Ele já deveria estar aqui. Era esse o plano.
Henry parecia enorme, inchado pela cólera.
Eles estavam sozinhos em um lugar escuro e isolado. O mesmo lugar em que, na véspera, o Lobo dissera que ela lhe pertencia. E isso se tornara realidade: ela estava com ele agora.
Todas as peças pareciam se encaixar.
“Peter nunca virá”, pensou ela.
Valerie sentia-se inebriada pela certeza de que iria morrer. Mas lutaria até o fim; não se entregaria facilmente. Se o acertasse no lugar certo... talvez, apenas talvez... Enquanto pensava nisso, ele se inclinou sobre as tinas para examinar o fundo do beco e expôs o pescoço – provavelmente procurando por Solomon, certificando- se de que teria tempo para fazer um trabalho bem feito.
Ele atraíra sua irmã no meio da noite e a assassinara. E estava tentando fazer o mesmo com ela. Bem, com ela não seria tão fácil.
Relanceando os olhos para a lua vermelha, Valerie ergueu a faca. Viu a lâmina brilhando em sua mão, sedenta por sangue. Estava dando um passo atrás para poder aplicar todo o peso no golpe, quando se imobilizou.
Ouviu-se um rugido, tanto masculino quanto feminino, tanto humano quanto animal. A voz do Diabo. Estava longe. Não no beco.
— Ah, meu Deus! Henry!
Ele se virou e a viu com a faca ainda levantada. Encolheu-se.
— Você poderia colocar a faca de novo na sua bota? — pediu, conseguindo aliviar a tensão com um rápido sorriso.
Embaraçada, ela devolveu a faca ao seu lugar. Outro rugido terrível atravessou o ar. Mais perto, desta vez.
O alívio de Valerie teve curta duração, pois um novo e terrível pensamento lhe passou pela cabeça.
— Henry, qual foi a última vez que você viu Peter?
Mas Henry não respondeu. Soldados entraram no beco, gritando uns com os outros.
— A bruxa fugiu!
Henry puxou-a para um dos silos que estava cheio de pétalas azuis. Instantaneamente, foram envolvidos pela fragrância floral, estranhamente doce quando a morte estava tão perto. Ele a conduziu através das pilhas de pétalas até a parede dos fundos.
— Eles estão por toda parte — sussurrou.
Os corpos de ambos estavam próximos o suficiente para que se tocassem, mas não o bastante para que o fizessem. De repente, Valerie sentiu a mão dele em sua cintura, e viu seus olhos cheios de desejo. Sua respiração se acelerou. A mão deslizou por sua perna. Por que agora?
Ela entendeu somente quando ele conseguiu o que queria. A faca que estava em sua bota.
— Desculpe — disse ele distraidamente, como que em uma reflexão tardia.
Sua mente estava em outra coisa; ele nem reparara nela. Virou-se, então, preparado para repelir qualquer ataque, sempre cavalheiro. Mas ela sabia que eles não poderiam se defender. Não havia como. Seriam capturados dentro de alguns momentos. Tudo estaria terminado.
Mas Henry virou-se para ela.
— A igreja!
Ele tinha razão. O Lobo não poderia entrar em solo sagrado, e padre Solomon respeitaria o santuário por ele mesmo ser um sacerdote. Em primeiro lugar, porém, teriam que chegar lá.
Henry pensou, desesperado, olhando para a faca em sua mão.
Minutos mais tarde, os soldados de Solomon invadiram o silo – encontrando apenas pétalas de flores azuis. Algumas estavam derramando pela rua, através da brecha que fora aberta entre as tábuas.
Valerie e Henry não tinham escolha a não ser correr pela praça, arriscando-se a serem vistos.
De alguma forma, acima do burburinho dos soldados que vasculhavam a cidade, do galope dos cavalos e dos gritos dos aldeões, Valerie ainda ouvia o sussurro:
— Valerie, aonde você vai?
Uma voz sinistra, uma mistura de todas as vozes que já ouvira. Seu coração subira até a garganta e se alojara lá. Ela soube antes de vê-lo. O Lobo voltara para buscá-la.
Ela lançou um olhar a Henry, mas ele não ouvira nada. Na periferia de seu campo de visão, ela divisou uma forma escura, que desaparecia e reaparecia, pulando sobre os telhados. Só a via realmente quando a observava pelos cantos dos olhos.
Quando já conseguiam avistar a igreja, ouviram gritos e o som de botas pesadas em rápida perseguição.
Uma seta assobiou ao lado deles. E outra, mais perto.
Valerie olhou para trás – e gritou ao ver o dardo prateado voando com pontaria certeira, o dardo destinado a ela, para acabar com sua vida. De algum modo, no entanto, no derradeiro momento, quando já deveria estar sentindo o metal penetrando profundamente em seu corpo, ela não sentiu nada.
Em vez disto, foi empurrada para o lado. Com um estalido seco, a seta se alojou no tórax de Henry, que se colocara em sua trajetória para que ela não fosse atingida.
Ele oscilou com o impacto, mas estava correndo tão depressa que ainda deu alguns passos antes de diminuir o ritmo.
O projétil se alojara em seu ombro esquerdo. Não acertara o coração e, ao que parecia, nem o pulmão.
— Corra, Valerie. Corra!
Ele lhe deu um empurrão com o braço bom. Ela o conhecia desde que nascera, mas somente agora entendia como ele era bom, corajoso e honrado.
— Não, Henry. Não posso deixar você.
Olhando para trás, ela viu os soldados se aproximando. Mas a igreja estava bem perto.
Então, passou o braço ileso dele sobre seus ombros e, juntos, percorreram a última dezena de metros, cambaleando sobre a neve. O sangue dele manchava sua capa vermelha com um vermelho ainda mais escuro. Com passos trôpegos, chegaram à porta do santuário. Mais dois passos... mas Solomon estava parado diante da porta, bloqueando o caminho até o solo sagrado.
— Nós invocamos a proteção do santuário! — gritou Valerie.
— Ah, mas vocês não podem — respondeu Solomon, com voz cortante. — Vocês ainda não estão em solo sagrado.
Estendendo a mão, agarrou a seta no ombro de Henry.
— E isso pertence a mim.
Ele arrancou o dardo do ombro de Henry, produzindo um ruído semelhante ao de uma colher atravessando a polpa de uma melancia.
Cerrando os dentes de dor, Henry cambaleou para trás, segurando o ombro com a mão boa para estancar o sangramento.
Valerie teve vontade de espiar pelo ferimento aberto para saber o que no interior de Henry irradiava tanta bondade. Emitindo um clique como o de uma chave na fechadura, a pele dele voltou para o lugar. Eles poderiam viver felizes juntos, percebeu de repente. Seria a melhor coisa para todos.
Mas alguma coisa se agitou dentro de Valerie, quando ela escutou novamente:
— Valerie.
Ao se virar, viu-se frente a frente com o Lobo, cujos olhos resplandeciam como duas luas gêmeas. Seus lábios negros e úmidos estavam reluzentes. Dois soldados jaziam mortos a seus pés.
O Lobo surgia diante dela como um grande monumento. Estava imóvel. O poder daquele vulto era quase reconfortante.
Os olhos de Solomon fitaram a lua de sangue que estava baixa no horizonte, quase invisível entre as casas, e de uma cor desbotada. Com um movimento decidido, ele agarrou os cabelos loiros de Valerie e puxou sua cabeça para trás, encostando a espada na garganta exposta. Estava usando Valerie como escudo humano.
— Vamos ganhar tempo. Já está amanhecendo — confidenciou ele ao capitão, com um sussurro áspero.
— Você quer que ela viva, não quer? — gritou então para o Lobo.
O Lobo olhou para Solomon, depois ansiosamente para a lua evanescente, cada vez mais pálida no céu.
Henry moveu-se em direção a Valerie, mas Solomon apertou a espada na garganta dela. Henry recuou. Valerie sentia na pele o afiado fio da lâmina.
Pela porta aberta da igreja, pôde ver os aldeões se reunindo para assistir à cena. Haviam se abrigado em tropel dentro da igreja e tinham o cuidado de permanecer em solo sagrado como crianças que ouvem uma discussão dos pais atrás do balaústre da escada. Nenhum deles se mostrava disposto a caçar o Lobo que tão ansiosamente queriam abater poucos dias antes.
— Primeiro ele morre, depois você — sussurrou Solomon para Valerie, fazendo um sinal com a cabeça para o besteiro mascarado, que aguardava a ordem no campanário da igreja com um braço pousado no parapeito.
Rapidamente, o besteiro disparou contra o Lobo, mas este pulou ao sentir o perigo e a seta se enterrou no chão. Ao ver o tiro desperdiçado, Solomon chegou ao limite. Não conseguia aguentar mais. A sede de sangue o devorara antes que o Lobo pudesse fazê-lo. Soltou então Valerie, ergueu a espada e investiu violentamente contra o Lobo. Veias saltavam em seu pescoço como ramos de uma árvore que tivesse se agigantado dentro dele a partir das sementes de sua obsessão.
O Lobo, porém, foi mais ágil, cravando suas gigantescas mandíbulas no pulso de Solomon, cortando primeiro os tendões, e depois os ossos. A mão de Solomon caiu pesadamente na neve, inteira, com seus medonhos dedos com unhas de prata ainda agarrados ao cabo da espada.
Gemendo de agonia, Solomon cambaleou para trás em direção à igreja, à segurança. O Lobo o perseguiu.
O besteiro mascarado desfechou outra chuva de setas. Enfurecido, o Lobo pegou o escudo de um dos soldados mortos e o atirou em direção ao campanário. O disco se chocou contra o peito do besteiro, rachando sua armadura e se enterrando na carne. O besteiro bateu contra o sino, que emitiu um som agourento.
Aproveitando o instante de distração, Henry segurou a mão de Valerie e a puxou para dentro da igreja.
O Lobo pulou para frente, mas eles já estavam em solo sagrado e ele não pôde alcançá-los. A fera olhou novamente a lua de sangue que já estava se pondo. O céu exibia os primeiros sinais de luz à medida que o sol se erguia de sua tumba.
Ele sabia que teria de agir rápido. Estendeu então a pata em direção a Valerie, transpondo a soleira de pedra, mas teve que retirá-la quando começou a pegar fogo. O Lobo trincou os dentes, olhando para a presa com seus quatro olhos.
— Você não pode se esconder.
A voz distorcida do Lobo exercia uma estranha atração sobre Valerie. O Lobo cuidaria dela como ninguém jamais cuidara.
— Passe pela porta ou eu vou matar todo mundo. Entendeu?
— Sim, entendi — disse ela, quase em transe.
— Estão vendo como ela fala com o Lobo?
Solomon procurava vingança mesmo mutilado, gritando para um soldado que estava cuidando de seu ferimento.
— Tome sua decisão.
A voz do Lobo ecoava nas paredes da mente de Valerie.
Ela pensou em todas as pessoas em torno dela, pensou em Henry. Viu todos em toda a sua defeituosa e perfeita humanidade. Não poderia deixá-las morrer.
O tempo passava mais devagar para Valerie, que estava impressionada com a estranheza da existência. Havia coisas demais: beleza demais, amor demais, dor e tristezas demais para uma vida só. O que fazer com tudo isso? Seria melhor não existir?
Olhou para o Lobo, ponderando o que um passo a frente significaria. Aqueles lindos olhos amarelos. Talvez não fosse a pior coisa... A ideia se transformou em uma brecha que se alargou dentro dela como uma fenda na terra que se torna um desfiladeiro. A solução era simples e fascinante.
Ela sentiu que havia um elemento de vingança em ceder à vontade do Lobo. Ele não obteria Valerie, pois deixara de ser ela mesma. Deixaria que o Lobo a levasse.
Caminhou então em direção à porta. Era surpreendentemente fácil. Estava prestes a dar o passo decisivo, o passo que a levaria para fora do solo sagrado, quando Henry percebeu o que ela estava fazendo e a puxou para trás, para onde o Lobo não conseguiria alcançá-la.
— Não vou deixar você destruir minha casa. Eu vou com você — disse ela ao Lobo. — Para salvar essa gente.
Ela sentia que sua voz, estridente e falsa, provinha de algum lugar fora dela. Não tinha medo do que viria a seguir. Havia tomado sua decisão. O mundo deixara de ser real.
Sob um silêncio ensurdecedor, o Lobo esperou que Valerie se aproximasse. Mas o encanto foi quebrado por um movimento na multidão atrás dela, bem ao fundo. Alguém estava se aproximando, tropeçando nos joelhos e nas sacolas das pessoas.
Roxanne.
Roxanne se aproximou de cabeça baixa. O coração de Valerie bateu em três pulos quando avistou aqueles lindos cabelos cor de crepúsculo. O Lobo ela poderia suportar, mas não novas acusações das pessoas que amava.
— Eu não vou deixar você fazer esse sacrifício — disse Roxanne, plantando-se ao lado dela.
Valerie olhou para a amiga sem querer acreditar. Roxanne abanou a cabeça, com os olhos cheios de lágrimas. Rose se adiantou a seguir.
— Nem eu.
Ela olhava ruborizada para Valerie, lembrando-se de como agira antes, levada pelo fervor dominante.
Marguerite, envergonhada pela coragem da filha, acompanhou-a, assim como outros aldeões, um a um: o dono da taverna, os empregados da tinturaria, os lenhadores, os amigos do pai de Valerie. Prudence foi a última a se juntar ao grupo, mas acabou dando um passo à frente, lutando contra as próprias emoções amargas.
Daggorhorn começava a alçar voo, como um bando de pássaros que, em conjunto, descobre que pode voar.
Saindo do pesadelo, os moradores da cidade se amparavam uns aos outros, erguendo uma barreira contra o Lobo. Era também uma barreira contra o mal que haviam deixado se instalar dentro deles mesmos. Por alguns momentos, o centro do universo estava ali, no pátio da igreja.
O Lobo, que não se preparara para isso, rugiu furiosamente. Estava tão perto da mulher que desejava, mas não tinha como alcançá-la...
A lua desapareceu no céu. A manhã começou a despontar. O Lobo sabia que não poderia permanecer ali, ou revelaria sua forma humana. Seus olhos relampejaram para Valerie uma última vez. Depois, com um rosnado raivoso, ele mergulhou na noite.



Os aldeões se dispersaram, evitando olhar uns para os outros. Não queriam quebrar o encanto. Mas eles o fizeram, embora o Lobo tivesse fugido. Tinham feito o que era certo, e o fizeram juntos.
Somente Valerie viu Solomon caminhando em sua direção com uma fúria incontrolável estampada no rosto, pior que a própria fera, pronto para obter a vingança que achava merecer. Sua única mão estava estendida. Valerie ergueu seus braços para se proteger. Mas ele agarrou sua cabeça, forçou seu peso contra ela e bateu contra o muro de pedra. Uma onda de choque percorreu os abalados aldeões.
Depois, puxou Valerie pelos cabelos e ergueu o rosto dela, que alinhou com o seu.
— Você ainda vai queimar, bruxa.
Ao ver Henry investindo contra ele, Solomon se virou, pronto para retalhá-lo com as unhas remanescentes.
Porém, um chicote chegou antes, assobiando elegantemente no ar, enrolando-se no braço de Solomon e o puxando para trás. Surpreso, Solomon olhou em volta e viu o capitão se aproximar, com uma expressão dura no rosto.
— Na lua vermelha, um homem mordido é um homem amaldiçoado — lembrou o enorme capitão ao seu comandante.
Solomon permaneceu impassível diante da verdade. Mas não conseguiu deixar de dizer:
— Minhas filhas vão ficar órfãs!
— Meu irmão tinha filhos também — zombou o capitão.
Padre Solomon olhou para o braço, assimilando a ideia de que a corrupção estava crescendo dentro dele. Ele não era melhor que o Lobo que caçara. Mas era um homem fiel a suas convicções, fiel até o amargo fim. Acreditava na pureza e na purificação; na velha e impiedosa eliminação do mal.
Com a mão que lhe restava, ele fez o sinal da cruz.
— Perdoe sua ovelha desgarrada, Pai. Eu só queria servir ao Senhor, queria nos proteger da escuridão... — mas não terminou a frase.
O capitão, que também acreditava em vingança, ergueu a espada. Mais afiada que uma navalha, a lâmina atravessou rapidamente e de maneira limpa o coração de Solomon, sem esbarrar em nenhum osso – tal como Solomon matara o irmão do capitão.
Roxanne virou o rosto, mas Valerie não o fez. Um mal fora corrigido, dentre muitos. Valerie sentiu alguma coisa na têmpora. Sangue escorria da ferida que Solomon abrira ao bater com sua cabeça no muro de pedra.
O simples fato de ver sangue em seus dedos a deixou estonteada. Ela caiu de joelhos.
“Onde está Peter?” perguntou a si mesma novamente.
Então, o mundo se transformou em um lugar imponderável e ela perdeu seus alicerces. Tombou no chão, mergulhando profundamente no centro de tudo.

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