sexta-feira, 4 de julho de 2014

9° Capitulo - A Garota da Capa Vermelha

Dentro de uma hora, a casa estava tão cheia de aldeões que não havia mais ar para respirar. Valerie se sentia vazia por dentro.
A família sofria separadamente, atordoada. Era como se o mundo todo fosse diferente, apesar de sua circunstância ser, inacreditavelmente, a mesma. Com exceção de um deles ter partido, tudo mais estava como sempre fora. Uma corda esticada cruzava a sala, curvando-se sob o peso da roupa lavada da família. Os biscoitos descansavam na prateleira. Tudo estava como haviam deixado.
Suzette tomara a posição ao lado da porta, olhando para fora porque não conseguia suportar o que havia dentro. O brilho da neve que apenas começara a cair se assemelhava a vidro. Valerie se perguntou se sua mãe estava decepcionada com o que lhe restara, agora que a mais bonita, a mais amorosa e a mais obediente de suas filhas se fora.
Do outro lado da sala, Cesaire tombou a cabeça para trás, tomando um gole de seu frasco. Parecia atormentado e estoico, recusando consolo mesmo de Suzette, Valerie desejava que ele fosse menos duro consigo. Era como se ele se sentisse responsável pela morte de Lucie por não ter protegido a filha.
As pessoas no velório circulavam sem rumo, em estado de choque. Eram gentis em sua solidariedade, dizendo aquelas coisas vazias que todas as pessoas dizem para as famílias enlutadas.
— Ela está num lugar melhor agora.
— Que bom que você tem Valerie.
— Você ainda pode ter outro...
Claude e as meninas vestiam o corpo de Lucie, lavando-a com ternura, seu rosto, suas mãos, mas se sentiam mal ao levantar seus membros tão pesados. Enfaixar Lucie, sentir seu corpo e torná-lo belo com flores parecia obsceno.
Valerie estava ao lado deles, mas não se movia nem falava. Seus amigos queriam apoiá-la, mas não sabiam como. Quase temendo a intensidade rígida de seu sofrimento, deixaram-na sozinha.
Os aldeões sentiam que deveriam estar falando de Lucie, mas dizer o quê? Pensavam nela, e talvez isso fosse o suficiente. Eles se sentavam nos cantos, conversando em sussurros culpados, incapazes de se concentrarem completamente no luto, pois estavam aflitos com a noite que viria. A lua de sangue subiria uma segunda vez naquela noite; nisto os anciãos conseguiam concordar. Os homens olhavam para suas próprias filhas e se perguntavam quem seria a próxima.
— P-p-por que é que o Lobo nos odeia? — Claude perguntou finalmente.
Pela primeira vez, as pessoas silenciaram enquanto ele falava.
Uma, pergunta simples. E, no entanto, ninguém sabia responder.
Roxanne tossiu, o barulhinho educado encheu a sala.
Uma batida na porta desfez a tensão.
— São os Lazar! — Valerie ouviu vagamente sua mãe dizer.
Todas as outras meninas observaram quando três gerações da família entraram: a senhora Lazar; seu filho, Adrien, o viúvo; e o filho dele, Henry. Rose lançou um amplo sorriso para o mais novo, mas ele buscou apenas Valerie. Quando os olhos dela nem sequer pestanejaram em sua direção e ela se afastou dele, ele se curvou respeitosamente e não tentou se aproximar dela.
Ele sabia que Valerie gostava de guardar as coisas para si mesma.
Ao perceber Henry lá e o desagrado de sua mãe em relação à forma como ela o tratara, Valerie queria ter mágoa dele, mas descobriu que não conseguia. No entanto, ela sabia que em meio à afeição dele por ela estava o problema da piedade. Olhou para seu pai, que assentiu com a cabeça, antes de se recolher para a cama do sótão que havia compartilhado com Lucie.
Tocou gentilmente as flores de milho que Lucie, amante da beleza, pendurara para decorar o seu lado cama. A dor fez Valerie sentir como se sua pele estive retesada até ficar fina demais, como se não conseguisse a suficiente e seus pulmões tivessem ficado rasos.
A senhora Lazar ergueu a mão para acariciar seu cabelo grisalho enquanto avaliava a cabana com uma máscara de desaprovação. Ela era uma mulher idosa que havia esquecido como agir em meio a um grupo de pessoas – ao que ninguém dava importância, porque seu olhar penetrante deixava a maioria das pessoas constrangida. Eles também não gostavam de seu cheiro de amido e de alho.
— Sinto muito pela sua perda — falou a Suzette, pesarosa e atordoada.
Adrien se seguiu a ela, movimentando-se para apertar a mão de Cesaire. Adrien ainda era bonito e vigoroso, com seu rosto alinhado àquela maneira máscula.
— Lucie foi uma boa menina — ele disse.
O uso do pretérito foi um choque. Cesaire não estava preparado para isso. Ele tinha o hábito de bochechar a bebida na boca quando não gostava de alguma coisa. Suzette sacudiu a cabeça do outro lado da sala, e Cesaire entendeu o que significava.
— Largue o seu copo.
Claude, querendo incluí-la ou então dando uma de moleque, executou seu truque do desaparecimento e reaparecimento de cartas de tarô atrás da orelha da senhora Lazar. Ela abanou a mão para dispensá-lo.
Uma carta foi lançada para fora.
Tentando uma tática diferente, ela segurou sua xicara de chá no alto e tentou fingir que ele não existia.
Valerie afastou-se da cena que se passava abaixo de sua cama; sentia o cheiro de Lucie, o cheiro de aveia, de leite quente, de alguém em quem podia confiar. Sabia que o perfume desapareceria, que até isso ela perderia. Puxou um nó de madeira, que revelou um esconderijo secreto cavado no teto, e retirou um raminho de lavanda envolto em veludo.
Valerie se lembrou de quando sua mãe costumava levar Lucie e ela para longas caminhadas. Elas passavam pelo campo de grãos, onde os talos finos balançavam ao ritmo rápido do vento. As três chegavam então a uma clareira que fulgurava com a lavanda. As meninas juntavam as flores e Lucie carregava-as na saia, até os dedos ficarem esfolados e elas tivessem de ir chorando até a mãe, Suzette, que nunca se esquecia de levar a pomada.
Afastada da cena, Valerie olhou de novo para o cômodo principal da casa. Sentiu-se confortável em sua posição habitual de observadora, lá em cima, isolada. As vozes moviam-se com fluidez dentro e fora de foco. Os rostos iam e vinham. Olhou para as pessoas, achando difícil acreditar que fossem reais. Os aldeões falavam uns com os outros, mas ninguém dizia nada. Valerie imergiu no zumbido, deixando a maré de vozes encobri-la.
O corpo da irmã, lá embaixo, estava imóvel como urna peça de mobília. Todas as pessoas fizeram a visita obrigatória, andando para cá e para lá ao redor dele, sentindo que deviam olhar para o corpo, mas sentindo como mal quando o faziam, então tentavam se afastar o mais rápido possível.
Suzette estava sentada em um banquinho perto do fogo. Valerie viu-a olhando para Henry por um longo tempo. Sua mãe ficava nervosa perto dele; parecia até que o queria mais para si que para Valerie.
Valerie deitou-se de lado, e o sono a varreu como uma onda, manteve-a flutuando e a arrebatou.



Ela acordou, lembrando-se de uma vez, há muito tempo, em que Lucie voltava para casa por volta do anoitecer. Valerie havia fingido ser o Lobo, esgueirando-se por trás dela, rosnando e em seguida atacando. O que para seus pais era uma questão de vida ou morte fora apenas um jogo para as duas meninas. Embora tenha consolado a irmã que chorava, Valerie percebeu então que havia algo de destrutivo e até mesmo predatório dentro de si. No entanto, depois de presenciar o sacrifício de Flora, nunca assustou sua irmã novamente.
Torturou-se com essa lembrança por algum tempo, abrindo a ferida como se apertasse a pele após uma raspagem, para fazer o sangue fluir mais rapidamente. Valerie espiou pela beirada do sótão. Os Lazar ainda permaneciam, e seus amigos cochilavam em banquetas, seus cabelos vermelhos, pretos e marrons sacudindo no sono. Ela viu a mãe sentada sozinha à mesa, olhando para cima timidamente, banhada pela luz fantasmagórica de uma única vela. Vendo a filha acordada, Suzette foi até o sótão.
— Há boas notícias em meio a esse momento difícil, Valerie — ela falou, subindo a escada para ficar no dela.
— Já me disseram que devo me casar com Henry Lazar. Apenas me diga se é verdade — Valerie sussurrou de volta.
Surpresa, Suzette recuperou sua compostura.
— É verdade, Valerie — respondeu com a voz tímida, rodando sua aliança entre seu polegar e os dois primeiros dedos, com um tom de alegria. — Sim, é verdade.
Valerie sentiu a vida sendo arrancada dela. Neste moimento repleto de tristeza, percebeu como seus sentimentos por Peter, de quem ela havia se perdido na confusão do dia, eram fortes. Ansiava por ele, mas sentia-se culpada por pensar dessa forma, dadas as circunstâncias.
— Mãe, parece errado falar nesse assunto agora.
— Você está certa — Suzette admitiu tristemente. — Agora não é hora. Haverá tempo para tudo isso mais tarde.
Ela acariciou o cabelo de Valerie. O tom da voz de Suzette era, de alguma forma, tanto enervante quanto reconfortante.
— Mas é verdade que agora Henry é seu noivo — acrescentou. — Você deve permitir que ele lhe ofereça suas condolências.
Olhou para Henry lá embaixo, vendo a preocupação marcar seu rosto gentil e belo.
— Eu mal o conheço.
— Você vai conhecê-lo, o casamento é assim.
Valerie não iria. Ela não podia.
— Agora não, mãe.
Suzette tomou a decisão de insistir um pouco mais.
— Você deveria saber de uma coisa... Eu não amava o seu pai quando nos casamos. Estava apaixonada por outra pessoa.
Valerie encarou a mãe em toda a sua complexidade.
— A mãe dele não permitiu que nós ficássemos juntos. Mas aprendi a amar seu pai. E ele me deu duas filhas lindas. Agora vá até lá, por favor.
— Eu disse que não — Valerie afirmou rispidamente, engolindo as perguntas não emitidas.
Suzette conhecia esse lado do caráter de sua filha e sabia que era melhor não discutir. Ela se retirou pela escada, compondo um rosto sereno, como Valerie nunca havia sido capaz de fazer.
Henry, por sua vez, havia presenciado a cena tensa. Virou-se para Cesaire.
— Venha conosco para a taberna. — Colocou uma mão firme no ombro do homem mais velho — vamos deixar que as mulheres sofram à sua própria maneira — falou ele com a sua graça característica.
Cesaire concordou, feliz por sair. Adrien também parecia agradecido por uma fuga da atmosfera opressiva da casa. Embora sempre gentil, nunca havia sido um homem particularmente aberto em relação às suas emoções. Valerie sabia que ele sempre fora bom para Lucie e que a morte dela devia ter trazido à tona as lembranças do falecimento da esposa. Não deveria ser fácil para ele.
Henry deu um aceno gentil na direção do quarto de dormir, enquanto ajustava seu longo casaco de couro, antes de seguir o pai para fora da casa.



— Não consigo acreditar que ela se foi.
Valerie finalmente desceu a escada até onde o corpo de Lucie jazia. Não havia mais lágrimas, apenas um enorme vazio.
Suzette arrumou a comida que havia sido trazida, um prato cutucado por uma faca ou duas; ninguém estava com fome agora. As outras garotas ainda estavam sentadas o redor de Valerie, mas não falavam muito. Como necessitavam de algo, qualquer coisa para fazer, tocaram o que estava por perto. Isso impedia-as de se sentirem inúteis.
Roxanne passava os dedos tristemente nos longos vestidos de lã de Lucie. Prudence cobiçava secretamente o manto de pele de carneiro da falecida e acariciava o velocino de forma possessiva, na esperança de que alguém pudesse, de repente, oferecê-lo a ela.
— Como é que ninguém viu nada na noite passada? — A senhora Lazar piscou, quebrando o silêncio. Virou-se para Valerie. — Você não estava com ela?
Valerie começou a amarrar fitas no cabelo da irmã e não respondeu. Pensou nos pedaços de papel que encontrara nas mãos de Lucie, mas os pedaços não se encaixavam, e o orvalho havia dissolvido qualquer recado que estivesse sido escrito lá. Devia ser uma mensagem, mas o que dizia? Era um convite para ir ao campo? De quem?
O mundo girava em torno de si, e ela não conseguia se concentrar no rosto da senhora Lazar – o mundo todo passava adiante dela como rodas de carroça girando.
— A fera a atraiu — Suzette, perturbada, se precipitou, desconfortável com o assunto.
— Ela estava com você. — Roxanne se virou par Prudence. — Eu sei que a vi no seu barco.
— Ela estava em meu barco, e depois disse que ia encontrar você.
— Só não entendo por que ela disse isso. Não é verdade — Roxanne sacudiu a cabeça.
— Talvez ela tenha ido encontrar algum rapaz — Prudence sugeriu, com a voz cheia de veneno.
— Minha filha não tinha nenhum interesse em rapazes — Suzette falou rapidamente.
— Ela sentia muita atração pelo meu neto — a senhora Lazar anunciou. Tinha um jeito de falar que era muito convincente e fazia suas palavras penetrarem na mente. — Ela costumava vir em casa e segui-lo por aí como um cachorrinho. Se ela tivesse acabado de descobrir que Henry estava noivo da sua irmã...
As meninas gelaram, e então se entreolharam para ver se alguém sabia desse grande segredo. Valerie baixou o olhar para seu colo e sacudiu a cabeça. Desejou que ela mesma pudesse ter contado a suas amigas. Sabia que todas elas sonhavam em estar nos braços de Henry.
Rose irritou-se por um momento, mas deu de ombros, pensando, “os olhos de Henry ainda podem circular por aí”. Prudence olhou com raiva, mas sabia que não poderia dizer nada ali. Roxanne voltou seus pensamentos novamente para Lucie – ela sabia que Henry nunca fora destinado para ela.
— Deve ter partido o coração de Lucie — Roxanne finalmente disse num sussurro distraído.
— Talvez ela tenha preferido morrer em vez de viver sem Henry — Rose acrescentou de forma sonhadora. — Ela saiu para procurar o Lobo.
— Não — Suzette emendou séria. — Isso é impensável.
— Ela nunca me contou como se sentia — Valerie pensou em voz alta, sentindo a traição em suas entranhas.
Como havia sido tão cega? Sua irmã amava Henry em silêncio. “Será que ela sabia sobre o noivado? Será que ela ouvira o que nossos pais planejavam?” Valerie supôs que era possível, mas parecia improvável, já que elas estavam sempre juntas. “Será que isso a teria desiludido?”
— Não se preocupe, pobre criança — disse a senhora Lazar, parecendo quase desinteressada do assunto da morte de Lucie. — Sei que você está preocupada com a sua irmã, mas Henry sempre teve olhos para você. Você é, e sempre foi, a mais bonita.
Ela estendeu a mão para acariciar o rosto de Valerie, movendo-se como uma rainha.
Suzette estava pensando que era melhor que visitantes começassem a ir embora, mas ao ouvir passos subindo a escada, ainda abriu a porta, antecipou-se para a varanda e fechou a porta atrás de si, para evitar a neve. Entretanto, quando viu a cabeça de cabelos escuros entrar em seu campo de visão, desejou que não o tivesse feito. Ela o reconheceu, mesmo após todos aqueles anos.
— Para Lucie — Peter disse baixinho, com a chama de uma vela santa dourada tremulando na mão.
— Saia.
Peter havia previsto esta reação e estava preparado. Ele limpou a garganta.
— Estou dando meus pêsames — insistiu, ainda tentando ser educado.
A mulher estava de luto por sua filha.
— Posso adivinhar por que você está aqui. Acabei de perder uma filha — ela disse, com a mão na porta. — Não vou perder a outra.
— Espere.
— Ela é tudo que me restou — ela prosseguiu. — E você não tem nada a oferecer a ela.
Peter sabia que ela estava certa; Valerie merecia coisa melhor. Mas não poderia desistir dela.
— Tenho profissão. A mesma profissão do seu marido.
— Sei exatamente quanto um lenhador ganha.
Peter começou a protestar, mas Suzette o deteve.
— Henry Lazar é a única esperança de uma vida.
Peter viu os olhos angustiados de Suzette; suas palavras o atingiam em algum lugar profundo. Então se deu conta: ele não poderia dar uma boa vida a Valerie.
— Se realmente a ama — Suzette continuou, com voz embargada — você vai deixá-la em paz.
Encararam-se, os olhos faiscando com emoções conflitantes. Peter tomou a iniciativa primeiro, afastando-se, irritado pela dispensa e consigo mesmo por ser tão compreensivo.
Ela entrou e fechou a porta, apoiando nela as costas. Diria para as pessoas na sala que havia sido apenas um trabalhador dando suas condolências.
Descendo a escada, Peter percebeu que, disfarçado e por trás da agonia, havia algo sobre o desapego que o fazia sentir-se bem. Ele era uma pessoa com convicção, que acreditava no valor das coisas e o mantinha como sagrado.
Só que antes nada tivera tanto valor assim para ele.

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