sexta-feira, 4 de julho de 2014

10° Capitulo - A Garota da Capa Vermelha

Peter andou pela aldeia tranquila, silenciada pela queda de neve e com a tristeza ainda pairando no ar. Os homens estavam na taberna, e as mulheres ainda de luto em casa. A aldeia estava até mesmo bela, unificada em sua ampla serenidade.
Entrando pela porta de trás da taberna, viu que um candelabro cheio fazia pingar cera no mesmo canto em que havia pingado por anos, coletando-a em um imponente castelo no chão. Ninguém se preocupava em limpá-lo, muito menos Marguerite, que já tinha, como sempre, trabalho suficiente nas mãos.
Vendo os barris com bandas de metal enferrujado, lembrou-se de uma longa tarde em que passara dentro de um barril vazio com Valerie. Perguntou-se se ela também se lembrava daquilo.
Enquanto deslizava ao longo da parede do fundo, Peter ouviu o padre Auguste dizendo:
— Convoquei ajuda.
O padre local era alto e ansioso. Como um caule de margarida, era ereto e determinado, embora, ao mesmo tempo, frágil e esguio.
O oficial de justiça olhou para o padre e esperou para ouvir mais, mordiscando uma cebola que descascava com os dentes.
— De alguém mais próximo a Deus — o santo homem continuou.
Padre Auguste usava, em uma corrente, uma ampola simples que continha água benta e o protegia do mal. Ele a segurou em suas mãos como se ela o deixasse mais próximo de seu ídolo.
— Padre Solomon.
O salão silenciou. Solomon. Ele era lendário: padre e renomado caçador de lobisomens, havia destruído feras por todo o reino. Era criativo, corajoso e esperto; nada o detinha na erradicação do mal. Comerciantes ambulantes diziam que ele viajava com um pequeno exército de guerreiros vindos da Espanha, norte da África e Extremo Oriente.
— Quem lhe deu autoridade para fazer isso? — O oficial de justiça se pôs diante dele.
— Deus, a autoridade máxima.
— Você pode traçar planos para a próxima vida — resmungou o oficial de justiça, enrolando as mangas — mas eu traço para esta aqui.
— Mas o Senhor...
Adrien empurrou sua cadeira para trás e se levantou.
— Este é um problema da aldeia — disse de forma incisiva. — Vamos resolvê-lo sozinhos.
O oficial de justiça mastigava sua cebola, assentindo.
Cesaire soprou um assobio leve, como se estivesse esfriando o céu da boca após beber algo muito quente. Os aldeões se voltaram para ele. Sua própria filha fora morta. Ele assentiu com a cabeça, aprovando as palavras de Adrien.
— O padre Solomon nos privaria da nossa vingança — Cesaire completou.
— Ela era a sua filha, mas... — padre Auguste olhou para Cesaire, suplicante.
— Estamos aqui — Adrien insistiu — para corrigir um erro. Hoje, devemos permanecer unidos para dizer que vamos lutar não só para vingar o nosso passado, mas também para renovar o nosso futuro. Para mostrar à fera que nos recusamos a viver com medo.
Ele andou com passos largos para trás do bar vazio descansou seu peso contra o balcão.
— Talvez o padre Auguste esteja certo — disse Henry pensativamente, levantando de um banco. — Talvez devêssemos esperar.
Do fundo da taberna, Peter conteve uma explosão de riso. Henry agarrou a borda da mesa. Adrien voltou-se para ele com um olhar fulminante.
— Talvez, meu filho — Adrien disse calmamente — você devesse encontrar a sua coragem.
Henry suspirou aflito.
— Você quer caçar o Lobo? — Estreitou os olhos, desdenhoso. — Tudo bem, então; vamos caçá-lo.
O oficial de justiça, grande e forte, com mãos do tamanho de panelas de ferro, bateu a caneca sobre a mesa de forma agressiva.
— Deixamos isso ir longe demais. Estamos aqui para conquistar nossa liberdade de volta! — gritou, reunindo os homens.
Puxou o punhal de prata da cintura da calça e o cravou na mesa. Os homens sacudiram os punhos no ar em aprovação.
— Vamos matar aquele maldito Lobo! — gritou.
— Vou beber a isso — Cesaire falou, virando o que restava em sua caneca.
Era início da noite agora, e o grupo percebeu que era melhor começar logo com aquilo. Eles começaram a se pôr para fora da porta, preparando-se para a caçada.
Padre Auguste vacilou.
— Esperem! Devemos esperar o padre Solomon!
Entretanto, sua voz histérica se perdeu no coro de vozes graves e batidas de canecas.
Cesaire parou para reabastecer seu copo e, na saída, despejou todo seu conteúdo sobre a cabeça de padre Auguste, colocando um fim aos seus protestos.



Os homens saíram apressados da taberna para a luz cinzenta. Faziam barulho ao esmagarem a neve recente, jogavam seus chapéus para o ar e rodavam suas jaquetas sobre as cabeças. Sentiam-se maiores do que eram, tomados por um objetivo.
Suas esposas ouviram o clamor e correram atrás deles, voltando para pegar pacotes de alimentos e cachecóis quentes. A neve ficava mais pesada, trazendo o inverno pleno mais cedo que o habitual.
“Serei eu”, cada homem pensava. “Eu vou conseguir”. Mal viram suas mulheres ou os filhos e fizeram questão de não notar seus rostos preocupados.
Atraída para fora pelo barulho, Valerie procurou Peter. Estava com raiva por ele não ter ido à cabana para consolá-la, mas ela não o deixaria partir sem dizer adeus.
Logo o encontrou no meio da multidão pelos seus cabelos escuros e o casaco preto que se destacavam contra a neve branca. As palavras de sua mãe ecoaram em sua mente. Perguntou-se se seria errado casar por amor uma vez que isso não havia acontecido com a mãe: ela experimentaria um amor maior que o amor que sua mãe jamais tivera.
Vendo-a, Peter entrou sorrateiramente em um galpão. Era difícil dizer se seu rosto havia obscurecido quando ele a viu, ou se era apenas a luz escassa. Deixando seus pensamentos de lado, Valerie desceu e o seguiu até a imundície repleta de teias de aranha.
— Tenha cuidado — falou, estendendo sua mão para a dele. — Acabei de perder minha irmã. Não posso te perder também.
Ela o sentiu recuar. Sua mão pairou no ar e depois caiu, com as pontas dos dedos formigando de desejo.
Peter olhou para ela, também desejando tocá-la, mas tentando ser forte.
— Eu sei. Mas, Valerie, tudo isso está errado.
— O quê?
— Não podemos fazer isso.
Valerie não entendeu. Tudo que ela via era o rosto torturado de Peter. “Vou salvá-lo”, pensou.
— Você tem de passar por isso. Você tem de se casar com Henry — ele continuou.
Confusa, ela sacudiu a cabeça como se tivesse provado algo amargo.
— Mas eu quero ficar com você — ela se sentiu uma idiota ao dizer isso, mas fora sincera — não poderia perdê-lo também.
— Sua irmã acabou de morrer...
— Não. Não, como você se atreve a usar isso!
Peter não tinha sequer se preocupado em oferecer suas condolências. E agora ele estava tentando usar a morte de Lucie como argumento.
— Valerie. Não transforme isso em algo que não é para ser — prosseguiu, endurecendo-se para ela. — Foi o que foi. Nada mais — disse, suavemente, com precisão.
Valerie deu um passo para trás diante da aspereza das palavras.
— Você não acredita nisso — insistiu, sacudindo a cabeça.
Ele estava inflexível, porém, seu rosto intransigente e austero. Ele se recusou a olhar para ela, mas tocou uma mecha de seus longos cabelos loiros com um dedo, sem conseguir se conter.
Sentindo um aperto de raiva em sua garganta, ela o empurrou bruscamente e correu de volta para a multidão. Caminhou até sua casa, mas seu corpo parecia morto dentro de suas roupas.
— Valerie, eu estava procurando você.
Era Henry Lazar.
Ela encontrou seus olhos castanhos com relutância notando o contraste entre ele e Peter. Os olhos de Henry estavam abertos, oferecidos, sem esconder nada... Ou talvez não houvesse nada por trás deles.
Ela olhou para trás e não viu nenhum sinal de Peter. Tentou disfarçar seus sentimentos de mágoa.
— Fiz uma coisa para você.
Henry pôde sentir que a mente dela estava em outro lugar, mas insistiu.
— Desculpe-me, sei que é o momento errado. O que você anda passando... Eu deveria ter esperado... — Olhou por cima dos ombros dela e viu Peter se fundindo com a multidão — Mas, caso eu não volte, queria que você ficasse com isto.
Valerie estava determinada a não amar Henry, a nem mesmo gostar dele. Seu charme e sua lealdade doce nunca poderiam dominá-la agora. Ele colocou a mão no bolso e pegou um bracelete fino de cobre. Era simples e elegante, forjado com pequenas fissuras e cristas delicadas.
— Meu pai me ensinou a fazer isso e a torná-lo perfeito para um dia eu dar à mulher que amo.
Apesar de tudo, Valerie se emocionou. Era algo oferecido em meio a tudo tomado.
— Você será feliz novamente — ele insistiu, com um ar ligeiramente maduro, apertando o bracelete ao redor de seu pulso. — Eu prometo.
Valerie se sentiu consolada de um modo estranho.
Adrien se aproximou, colocou a mão sobre o ombro de Henry e o chamou para o grupo desordenado de homens que marchavam para fora da aldeia. Henry apertou a mão dela e depois aprumou-se para se juntar à multidão.
Valerie ficou com as outras mulheres, observando os homens partirem. Não pôde deixar de se indignar com essa divisão dos sexos. Seus dedos coçavam para também empunhar uma arma, para fazer alguma coisa, para matar algo com sua ira.
Localizou seu pai caminhando decidido, silenciosamente, no fim do grupo, afundado nas profundezas de seu casaco pesado. Ela correu até ele. Seus olhos estavam quebrantados, como algo estilhaçado.
— Eu vou com você — disse-lhe ela, tentando manter a compaixão longe de sua voz.
— Não.
— Mas ela era minha irmã!
— Não, Valerie — ele prendeu seu machado sobre o ombro. — Isto não é para mulheres.
— Você sabe que sou mais corajosa que a maioria desses homens. Eu posso...
Suas palavras foram cortadas pela surpresa com que ela sentiu a mão dele agarrar seu braço. Ela não sentia a força dele desde que era garotinha, contemplando-o em sua suprema altura paternal.
— Eu cuido disso — ele falou, com seus olhos selvagens. — Você não pode ir. Você é tudo que me resta. Entendeu?
Nesse momento, ela viu seu pai e o admirou novamente. Ele havia voltado com toda a sua força. E a sensação era boa, correta e segura.
Assentiu com a cabeça.
— Certo.
Ele afrouxou o aperto.
Então, como se observasse uma vela morrer, ela viu o poder paternal o abandonar, e o homem triste que foi deixado para trás encolheu os ombros e sorriu o sorriso que há anos dizia “Sim, eu sou uma piada, mas pelo menos eu sei disso”.
— Se eu não voltar, você, minha filha, vai herdar o meu penico — brincou.
Ela não conseguiu rir, e o viu desaparecer no grupo.
“Ele não consegue sequer brandir seu machado para fender uma árvore”, ela pensou. “Como vai enfrentar um monstro voraz?”
Valerie retornou a casa, pensando no chá de sálvia que havia deixado em sua bolsa.
Quando todas as mulheres voltaram para suas casas, e sua mãe estava no meio do sono – graças a uma dose de chá da Avó – Valerie fez o que tinha de fazer. Jogou sobre si sua capa cinza com o fundo desgastado, cheia de bolinhas e gola de couro puída.
Ela sabia para onde eles estavam indo: o local onde o Lobo fizera seu covil. Havia visto ossos no caminho para o monte Grimmoor e no bosque Black Raven. Seguindo o último dos homens através da aldeia solitária, esquivou-se por becos mal iluminados para evitar que a vissem.
Ela ouvia e observava quando tomava um caminho alternativo, vendo o que os homens faziam quando estavam reunidos como um bando de animais selvagens.
Claude, carregando uma forquilha e uma faca de cozinha, apareceu em um traje de guerra que havia improvisado, feito de velhas panelas e frigideiras.
— E-e-eu estou indo — ele disse com sinceridade.
Enquanto falava, suas mãos se lançavam para os lados como pássaros volúveis.
— Não é permitido monstros! — um dos homens gritou.
O grupo riu, empurrando Claude para longe. Valerie desejava poder ir até ele e ficou satisfeita quando viu Roxanne vir correndo para conduzi-lo de volta a sua casa. Valerie sentiu pena de Claude, mas concordava que ele devia ser mantido na segurança de seu lar.
Ela observou Cesaire alcançar Adrien na frente do grupo. Parecia imponente e zangado, com suas botas se arrastando pelo chão nevado enquanto ele se movia adiante com bravura.
— Quer um gole?
Quando ele ofereceu seu frasco, algumas gotas espirraram para fora do gargalo sem tampa.
Adrien ergueu uma mão em recusa. Cesaire deu de ombros e tomou um longo gole.
— Obrigado por defender a minha Lucie — disse.
— Nós seremos uma família em breve — Adrien assentiu. — Você teria feito o mesmo.
Valerie nunca vira os dois tão companheiros. Quem poderia acreditar que o homem mais rico da aldeia e o bêbado do vilarejo poderiam ter algo em comum? Supôs que mesmo um bêbado poderia ter algo que um homem rico desejava: um pedaço de propriedade para acrescentar ao tesouro da família. O rosto de Valerie corou quando tomou consciência do fato: “Eu sou apenas uma mercadoria a ser negociada”.
Os olhos de Valerie dispararam, seguindo um coelho branco quase invisível contra a neve. Notou o lampejo de um par de olhos negros brilhantes. Agora, porém, não era hora para distrações.
Ela viu que Peter e Henry caminhavam mal-humorados ao longo de cada beira do caminho em uma disputa muda; nenhum estava disposto a ficar para trás.
Agiam cautelosamente, um curioso em relação ao outro, mas só se atreviam a espiar um quando tinham certeza de que os olhos do outro poderiam ser evitados.
Andando rapidamente para se manter o passo com eles e pisando de leve para evitar fazer barulho, Valerie olhou para a lua carmesim protuberante, grávida, anunciada ao céu noturno.
Ela não conseguiria suportar perder mais ninguém hoje à noite.

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