sexta-feira, 4 de julho de 2014

11° Capitulo - A Garota da Capa Vermelha

Percebendo a multidão negra de corvos alçar voo, partindo do solo branco e cintilante da floresta, a Avó soube que os homens estavam vindo. Foi para o alpendre esperar.
Logo eles estavam lá. Olharam para ela como se fosse uma deusa assustadora, com as chamas de suas tochas ondulando no ar enquanto eles se movimentavam ou ficavam parados, esperando por um vislumbre da Avó. Ela era um ser lendário, eterno, bela e jovem para sua idade embora tivesse envelhecido alguns anos, de tristeza, nos últimos tempos. Seus cabelos estavam presos em tranças por cordões cinzentos, e o rosto, molhado de lágrimas, não mostrava nenhuma ruga. Não era de admirar que as pessoas a acusassem de bruxaria. Ela desceu, trazendo uma vela para iluminar seus passos.
— Filho, eu soube de nossa Lucie — ela falou para Cesaire, abraçando-o. Não explicou como. — Prometa-me que será cuidadoso, meu rapaz.
Ela lhe entregou o pacote que havia preparado.
— Não se preocupe. O Lobo não vai se interessar por mim — ele respondeu, sorrindo através da sua dor. — Sou pura gordura.
A Avó subiu as escadas, com o coração pesado. Da varanda, observou a movimentação do grupo quando um dos homens, o último da fila, se desviou e começou a subir na direção dela. A Avó pôde sentir o ranger da madeira conforme o vulto punha seu peso a cada passo. Movia-se rapidamente, cada vez mais para cima. Estremeceu quando o visitante não convidado subiu ao alpendre.
Aproximando-se silenciosamente dela, o vulto jogou para trás o capuz de sua capa e... Era Valerie.
Ela sacudiu a cabeça, liberando sua tensão numa risada.
— Querida, minha querida, o que você está fazendo?
— Por que eu não devo ir com eles? Ela era minha irmã! — Valerie franziu o cenho.
A Avó suspirou e a tomou nos braços.
— Você já está congelada com esta capinha fina. Acho que você não vai conseguir.
— Bem, não, acho que não — Valerie respondeu, tremendo quando a Avó a guiou para dentro com um ruído de seus talismãs e amuletos.
Ela se animou por estar lá, na casa da árvore selvagem da Avó. Os galhos cresciam através do telhado, e dentes-de-leão invernais irrompiam pelo assoalho; havia algum tipo de ninho em cada canto. A casa estava repleta de coisas curiosas; ela deixou os olhos vaguearem por seu pequeno interior. Conchas de moluscos que eram como orelhas gigantes, uma almofada de alfinetes incrustada com madrepérola, um copo de chifre, inhames secos, uma garra de abutre. As bainhas desfiadas de tapeçarias empoeiradas, com desenhos de pavão em rosas e azuis desbotados, roçavam contra intermináveis fileiras de garrafas fechadas, de forma descuidada, com rolhas tortas. Uma chaleira enorme com chá tremia no fogão.
Valerie amava o estilo de vida da Avó, embora ela fosse assunto do folclore local e ridicularizada pelos aldeões. Mesmo que o preço pago pela Avó fosse o fato de alguns a culparem pela presença do Lobo na aldeia.
— Você vai precisar do seu sono.
A Avó entregou a Valerie uma xícara fumegante de sua poção de sálvia.
Ela ignorou o chá e se pôs à janela, vendo os homens seguindo seu caminho através da floresta escura. Encarou o rochedo e viu o vento frio passando pelas árvores, úmido com a neve, e soprando tempestuosamente como uma criança soprando velas de aniversário. Ele alongou as tochas dos homens quando o último deles se apressou até a rocha íngreme e desapareceu dentro da caverna. Uma das tochas pertencia a seu pai, outra ao homem que amava e outra ao homem que ela poderia ter. Todos foram reduzidos a pontos de luz brilhando ao longe. Sentindo o estomago revirar, Valerie se afastou da janela.
Quem vai voltar? Será que algum deles vai voltar? Outra rajada repentina de vento a enervou. Assustada, sentiu a facilidade com que o vento estremecia os alicerces da casa da árvore, o tronco grosso e seus galhos pesados.
Nada estava certo.
Lucie partira.
Valerie podia sentir a ausência da beleza. Sabia que Lucie estava além dos limites do seu sótão, da aldeia, das terras e do mundo. Que ela, agora, estava em outro lugar, um não-lugar.
— Sou a irmã dela. Eu deveria ter ficado com ela — Valerie explodiu, afundando-se no sofá.
— Você não pode se culpar — falou a Avó, servindo uma tigela de guisado.
Esta se inclinou para salpicar algumas ervas amargas amassadas sobre a tigela. Elas tinham gosto de algo que não deveria ser comido.
— Claro, como minha própria avó costumava dizer, “Lágrimas com pão...”
— “...passageiras são” — completou Valerie, a frase que ela conhecia tão bem.
A Avó tentou sorrir debilmente. Ela não se incomodou.
— Ainda está com frio?
Valerie percebeu que estava.
Sem dizer nada, a Avó saiu da sala. Valerie observou os galhos carregados de neve varridos pelo vento, oscilando, desenhando um oito. A Avó veio por trás dela e colocou algo sobre seus ombros.
— Que tal?
Ela olhou para baixo. Era uma bela capa, de um vermelho vivo.
— Vovó...
Valerie nunca vira nada parecido. Virra o vermelho de lugares distantes, de fantasias; um vermelho do além-mar, um vermelho que Daggorhorn nunca vira, um vermelho que não pertencia àquele lugar.
— Fiz para o seu casamento.
Valerie olhou para seu bracelete.
— O casamento não parece fazer parte de mim. Parece que estou sendo vendida.
As palavras de Peter a arrebataram, mas ela não disse nada a respeito. Sabia que seus pais não aprovavam Peter; mas, e se ele vingasse a morte de Lucie? E se voltasse depois de ter matado o Lobo? Começou a fantasiar sobre a redenção dele. Mas então as palavras duras de Peter voltaram à tona, e ela sabia que nada daquilo importava mais.
— Há outra pessoa, não é? — A Avó se inclinou.
— Havia alguém... — Valerie disse lentamente. — Mas talvez não haja agora.
A Avó concordou. Ela parecia ter a capacidade de dar sentido à explicação sem lógica de Valerie.
— Só não consigo acreditar que ele desistiria de mim tão facilmente.
— Talvez haja mais coisas nessa história.
A Avó tomou um gole de chá.
— Talvez. Odeio pensar nisso agora, logo após morte de Lucie.
— Como eu gostaria que você pudesse seguir o seu coração... — a mulher mais velha disse finalmente.
Valerie pensou ter visto um lampejo de ira cruzar os olhos de sua Avó.
— Há pouca chance disso acontecer. — O próprio rosto de Valerie ficou sombrio em resposta. — Minha mãe só se preocupa com dinheiro, e meu pai está bêbado demais para perceber metade do que se passa ao redor.
A Avó se virou; um sorriso brincava em seus lábios.
— Você, Valerie, nunca foi de medir as palavras.
As duas se afundaram no silêncio, deixando pesar sobre elas o que havia sido dito com tanta leveza. Os sinos que a Avó mantinha na frente da casa tilintavam ao vento.
— Quando eu era jovem — começou a Avó; sua voz suavizava o ar tenso — o Lobo atacava famílias inteiras. Ele as atraía para o bosque.
— Como? — Valerie pensou nos pedaços de papel que encontrara na mão de Lucie.
— Ninguém sabe.
— Mas a matança parou quando começaram a sacrificar animais para amansá-lo — Valerie prosseguiu.
A xícara de chá estava pesada e quente em suas mãos.
— Sim, mas isso foi depois de um longo período de brutalidade. Foi então que começamos a usar os sinos. Essas quatro badaladas. Todos os meses — ela olhou para baixo, com as lágrimas brotando. — Pensei que esses dias haviam acabado.
Houve uma época em que Valerie não sabia o significado daqueles sinos da igreja.
Tinham cinco ou seis anos. Ela estava nos arredores da praça da aldeia, à espera de Peter. Mas ele não estava lá.
— Cuidado com a cabeça!
Ela olhou para cima. Peter havia subido na torre do sino.
Zangada por ele ter pensado nisso antes dela, escalou o beiral da igreja para encontrá-lo, recusando a sua ajuda. Eles eram tão parecidos... Eram pequenos o suficiente para caber sob a boca do sino. O próprio mundo particular deles. Nenhuma lei. Na sombra do metal, Peter disse:
— Toque.
— Basta tocá-lo?
— Alerta de morte pelo Lobo. Quatro vezes, quatro badaladas.
Peter sempre trouxe à tona o melhor e o pior de dela. Valerie agarrou o badalo e o jogou contra a lateral do sino.
Bleim! Bleim! Bleim! Bleim!
O badalo mergulhou a aldeia no caos; pais cerravam os dentes enquanto empurravam mulheres frenéticas e atordoadas, mães contavam seus filhos enquanto os conduziam para a taberna.
Peter e Valerie pularams para fora do sino com o barulho. Alguém os viu.
— A menina do lenhador!
Viu a mãe a procurando lá embaixo, branca de horror. Assistiu à mudança de seu rosto do terror para o desapontamento e para a raiva. Sua mãe e seu pai a levaram para longe de Peter, que chutou a terra enquanto a praça se esvaziava e o dia de trabalho era retomado.



Agora tudo havia mudado. Valerie deixou-se afundar no colo da Avó.
O meio da noite chegara sem elas perceberem. Valerie começou a cair no sono, mas acordou bruscamente com um ruído.
Ploc, ploc, ploc.
Era apenas um pano molhado pendurado em um gancho. Ela suspirou. Inesperadamente, o assoalho se deslocou e rangeu.
A Avó percebeu que Valerie não conseguia dormir. A noite, ela sabia, era o momento em que os pensamentos sombrios puxavam os pensamentos como cordas.
— Beba, querida.
— Minha irmã está morta... — disse, tentando aceitar o fato.
— Eu sei, querida. Beba um pouco mais.
A chaleira era velha, e deixara seu gosto de ferro.
Valerie sentiu seus olhos secos se tornarem pesados e fechou-os, sentindo o toque frio das pálpebras molhadas. Pensava na morte de Lucie, olhando para ela como algo que esperava na outra extremidade de um túnel.
— O Lobo matou Lucie...
No entanto, não concluiu seu pensamento, porque o sono a havia tomado como a morte.

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