O pai de Valerie mantinha-se de guarda ao pé da lareira enquanto Suzette repousava mergulhada em um sono delirante. Na verdade, estava dormindo de boca aberta em um banco, segurando um machado no colo. Era um machado de tamanho normal, o mesmo que sempre usara, mas parecia grande demais para ele. Ela notou as olheiras arroxeadas sob seus olhos fechados e se acomodou ao lado dele. Ela mesma montaria guarda.
Quando voltava para casa, aturdida com o que havia visto no celeiro, avistara as três pequenas seguidoras de Lucie. Estavam sentadas no parapeito de uma janela, pálidas e imóveis, olhando para Valerie com olhos vazios e lábios contraídos. Valerie conjeturou se, em um ou dois anos, elas ainda se lembrariam de Lucie, da sua meiga generosidade, do modo como rodopiava com elas – uma de cada vez, rodopiando mais uma vez com uma delas, porque a menina pedira, depois girando mais uma vez com as outras, porque era justo. Será que se lembrariam disso?
Em meio ao caos do vilarejo, uma profunda desconfiança começou a germinar como mofo. Os aldeões andavam de olhos vidrados, sem enxergarem realmente uns aos outros.
Alguns dos homens haviam formado um pequeno grupo, uma brigada de vigilantes que batia nas portas à procura de qualquer coisa fora do normal. Em suas poucas horas de atuação, já haviam encontrado algumas coisas: uma das aldeãs mantinha um estoque de penas ao lado da cama. Outra tinha um livro em uma língua antiga, embora alegasse que não sabia ler. E outra, ainda, havia dado à luz apesar de já ter passado da idade.
Sim, eles encontravam coisas.
Mas tinham muita dificuldade para serem ouvidos pelos soldados de Solomon, que pareciam ter sua própria maneira de fazer as coisas. Dessa forma, armazenavam informações para divulgá-las mais tarde.
Perdida nesses pensamentos, Valerie também adormeceu. De repente, pai e filha acordaram com alguém batendo na porta – bam! bam! As batidas foram tão fortes que racharam a porta. Alguma coisa queria entrar na casa.
Valerie imaginou aquelas grandes garras dilacerando a madeira furiosamente e aqueles dentes enormes arrancando nacos das tábuas.
As tábuas farpadas da porta acabaram se despedaçando, mas não foi o Lobo que apareceu. Uma dupla de soldados irrompeu no aposento e assumiu o controle do espaço, reivindicando posse de tudo. Um deles chutou uma cadeira que não estava em seu caminho simplesmente por não haver razão para não fazê-lo. As pessoas também lhes pertenciam. Empurrando Cesaire para um lado, agarraram Valerie e a arrastaram para fora. Suzette nem mesmo despertou.
— Diga a eles o que você me contou — ordenou Solomon, debruçado sobre o balcão da taverna.
Roxanne estava sentada em frente a Valerie, mas não olhou para ela. Ficou encarando a parede ao fundo.
A taverna fora apressadamente transformada em um tribunal. Os bancos tinham sido agrupados para formar bancadas. Quando faltou espaço, as pessoas usaram tamboretes. Valerie estava amarrada em uma cadeira na frente da sala para que todos a vissem. Soldados fortemente armados montavam guardas nas saídas, empertigados em suas armaduras.
Valerie vira Peter entrar, percebendo como era difícil para ele vê-la naquela situação. Ele estava em pé, sozinho, no canto mais afastado da sala.
Roxanne sabia que teria de responder: as pessoas estavam esperando para ouvir o que ela havia prometido dizer. Reunindo coragem, falou em voz trêmula.
— Ela consegue subir nas árvores mais altas — começou, repetindo obedientemente o que contara a Solomon, o que acreditava ser verdade — uma verdade que despedaçava seu coração. — Ela consegue correr mais depressa que todas as garotas. Ela usa essa capa vermelha. A cor do Diabo — acrescentou, caso alguém não estivesse conseguindo juntar as peças.
Com a corda penetrando cada vez mais na pele de Valerie, Roxanne continuou:
— E ela consegue falar com lobisomens. Vi isso com meus próprios olhos.
Os aldeões deram um suspiro coletivo. O rosto de Roxanne adquiriu um tom rosado sob os cabelos vermelhos e ficou coberto de lágrimas. Tremendo angustiada, Valerie ouvia a amiga desfiar sua história.
— Você nega essas acusações? — perguntou Solomon, virando-se para Valerie com fingida incredulidade.
Valerie sentia-se entorpecida.
— Não.
A multidão murmurou.
— Não nego.
Prudence mantinha-se ereta e silenciosa. Sua mãe se encolhera na extremidade da bancada, mordiscando os cabelos. Henry estava sentado entre sua avó, que vestia seus trajes de luto, e um amigo. Rose se alojara atrás de Henry, ainda tentando ser notada mesmo naquela situação. Peter continuava sozinho.
— E qual foi a natureza dessa conversa?
Solomon juntou as pontas dos dedos.
Valerie, feliz em descobrir que ele ainda conservava um resto de humor, conteve um fraco sorriso. Ela lhe daria a informação, mas na ordem em que desejava contá-la.
— O Lobo disse — ela fez uma pausa. — que o senhor não sabe com o que está lidando.
Sentindo que todos os olhares se deslocavam para ele, Solomon sorriu pomposamente.
— Tenho certeza de que ele disse isso — admitiu ele amavelmente. — O que mais ele disse?
Valerie tinha a sensação de que sua cabeça estava cheia de lã, o que sempre acontecia quando estava resfriada. Era como se estivesse separada de seu corpo.
— Ele prometeu deixar Daggorhorn em paz. Mas só se eu partir junto com ele — pensou Valerie, descobrindo logo em seguida que falara em voz alta.
O corpo de Roxanne reagiu. Em choque, não conseguiu conter as lágrimas. Valerie sentiu os olhos de Peter pesarem sobre ela.
Um silêncio opressivo tomou conta da sala. Solomon pensou por um momento. Aquilo estava sendo melhor do que ele esperava. Inclinou-se então para bem perto de Valerie, como se não houvesse mais ninguém presente.
— O Lobo é alguém do vilarejo que quer você, Valerie — disse, na voz que reservava para plateias. — Você sabe quem ele é? Eu pensaria muito bem se fosse você.
Valerie permaneceu em silêncio. Não sabia de nada, ao certo, e não poderia dizer nada. Olhou para Peter novamente, tentando avaliar suas reações. Mas ele não estava mais lá.
Solomon era um observador astuto. Já conhecia Valerie muito bem; sabia que não obteria mais nada.
— Ele está querendo ela, não vocês — gritou para os aldeões, tentando uma tática diferente. — Salvem a si mesmos. É muito simples. Vamos dar ao Lobo o que ele quer.
Henry pulou da cadeira. Seu amigo olhou para com ar desgostoso. O apego dogmático de Henry a princípios sempre havia incomodado os que conviviam com ele, pois o tornava mais esforçado e menos divertido do que poderia ser. Não corria pelas ruas sacudindo roupas de baixo femininas que havia arrancado em algum varal, não trocava um peão por um bispo num jogo de xadrez quando o adversário não estava olhando; daquela vez, entretanto, ele estava se colocando em perigo.
— Nós não podemos entregar essa mulher ao Lobo. Isso é sacrifício humano.
— Nós todos temos feito sacrifícios — disse Madame Lazar, em sua voz inexpressiva, como se estivesse apenas fazendo uma observação.
Henry observou os presentes em busca de apoio, mas não encontrou nenhum. Os aldeões nunca se mostravam tão unidos como quando se juntavam contra alguém.
Desesperado, Henry olhou para o lugar onde vira Peter, pouco antes. Mas Peter se fora; havia abandonado seu posto.
Valerie ficou comovida com o esforço de Henry, embora tivesse a impressão que ele estava mais preocupado com fazer o que era certo do que com a segurança dela. Mas pelo menos ele havia enfrentado o padre Solomon. Nem mesmo a família dela fizera isso.
Seus pais e sua avó estavam sentados juntos, com medo de falar. Não ofereceriam nenhuma ajuda agora. De que adiantaria serem todos presos? Teria de haver outra saída.
Sua mãe ainda parecia doente devido ao ataque que sofrera; Valerie nem mesmo sabia ao certo se ela estava totalmente consciente. Cesaire parecia furioso, mas nada podia fazer; finalmente se conscientizara da própria impotência. E a Avó – bem, Valerie esperava que ela tivesse um plano, mas se falasse naquele momento estaria arriscando a própria vida. Roxanne, pelo menos, não envolvera a Avó em sua denúncia, e Valerie sentia-se grata por isso.
Solomon, sempre um homem de ação, aproveitou a oportunidade para ordenar aos soldados que desamarrassem Valerie e a levassem dali. O julgamento terminara.
Os aldeões estavam ansiosos para deixar a taberna – um amargo lembrete da decisão que haviam tomado com base na convicção de que tinham mais direito à vida que Valerie. Assim, foram saindo lentamente, reservando a tagarelice para quando estivessem no lado de fora. Ninguém ousou falar com padre Solomon; ninguém ousou olhar para ele. Ninguém queria se destacar do resto.
Somente padre Auguste permaneceu na sala. Queria ter uma pequena conversa com padre Solomon.
— Eu pensei que você tinha vindo aqui para matar o Lobo, não para apaziguá-lo.
Solomon olhou para ele como se fazer isso fosse um teste para sua paciência.
— Não tenho intenção de apaziguar o Lobo — disse em tom conspiratório. — A garota é só a isca para a nossa armadilha de hoje à noite.
— Claro, claro — murmurou Padre Auguste, com a fé restaurada e feliz em deixar seu herói fazer o trabalho de herói. “Não havia pensado nisso!”
Então se afastou, satisfeito com a ordem natural das coisas e sentindo que havia cumprido o dever. Valerie viu que ele também se eximia de qualquer responsabilidade. Ela estava sozinha.
Os aldeões haviam se reunido em grupos diante da taverna. Quando avistaram Cesaire, Suzette e a Avó deixando o estabelecimento, o burburinho cessou – principalmente quando viram a Avó, que não costumava comparecer aos eventos do vilarejo.
Madame Lazar, no entanto, continuou a falar em voz alta com Rose e um grupo de mulheres mexeriqueiras.
— A avó dela vive sozinha na floresta.
Embora não fosse a primeira vez que era alvo de preconceitos, algo fez com que a Avó parasse para escutar.
— A primeira vítima foi a sua irmã a segunda, o pai do noivo. E não se esqueçam da pobre mãe desfigurada para o resto da vida — declarou ela em alto e bom som. — Se a garota não é uma bruxa, como se pode explicar isso?
Cesaire percebeu que a Avó estava sendo atraída pela voz de Madame Lazar, cujas palavras reverberavam dentro dela.
— Não ligue para o que ela está dizendo.
— Ela não está errada — ponderou — Valerie esta no centro disto.
Cesaire pareceu preocupado, mas se limitou a menear a cabeça antes de se afastar com Suzette para recolocá-la na cama. A Avó fez uma pausa para ouvir as últimas palavras.
— Eu tentei fazer com que Henry deixasse de gostar dela — prosseguiu Madame Lazar, semicerrando os olhos. — mas não tem jeito. Ele perdeu o juízo. Se isso não parece feitiçaria para vocês...
Ela deixou a frase em suspenso, mas todas as ouvintes manifestaram sua aprovação.
Ninguém falou com Henry quando deixou a taverna e foi confrontar Peter, que estava de pé no outro lado da rua, encostado em um canto escuro e observando a multidão. Ao ver que Henry se aproximava aprumou o corpo, preparando-se para a briga.
— O que está acontecendo?
A voz de Henry saiu mais alta do que ele pretendia.
— Psiu.
Os olhos de Peter percorreram a praça.
— Eu pensei que você gostasse dela — disse Henry, abaixando a voz.
Peter esfregou os olhos e depois os abriu, esperando que Henry tivesse ido embora. Mas ele não fora.
— Eu gosto — suspirou Peter, percebendo que teria de dar uma resposta verdadeira, pois Henry aceitaria menos que isso — mas... — Peter acenou direção da porta da taverna, onde estava o capitão — estou tentando ser esperto.
Henry olhou em volta rapidamente, e percebeu que nem mesmo seu rápido olhar escapara à atenção do capitão.
— Você vai salvar Valerie — disse Henry, finalmente entendendo.
Peter não se deu ao trabalho de responder.
Henry perscrutou o rival. Seus sentimentos lhe diziam que poderia confiar nele, mas seus pensamentos lhe diziam que talvez fosse melhor não confiar. Mas não era soberbo o bastante para sacrificar a garota que amava. Viu um soldado arrastando Valerie para fora da taverna – certamente iria trancafiá-la em algum lugar. Ao perceber como as cordas haviam esfolado a pele dela, que ficara em carne viva, achou fácil tomar uma decisão.
— Vou ajudar você.
— Não estou tão desesperado — Peter respondeu com frieza.
Aparentemente, o orgulho dele permanecia intacto.
— É mesmo? E qual é o seu plano?
Peter mudou a posição dos pés.
— Você não tem nenhum, não é? Escute, a ferraria agora é minha. Eu tenho ferramentas e sei usá-las. Você precisa de mim — Henry queria ter a satisfação de ver Peter concordar. — Admita isso.
Peter não estava gostando daquilo, mas a ideia de que Valerie fosse levada pelo Lobo o agradava menos ainda. Ele sabia que as coisas seriam mais fáceis com a ajuda de Henry.
— Tudo bem.
Peter começou a pensar no assunto, e seu rosto se iluminou. Mas foi uma mudança sutil, quase imperceptível, como a gradação de tonalidades em uma sombra. Ele não precisaria, necessariamente, confiar em Henry: bastava acreditar na força de seu amor por Valerie. E se esse amor fosse forte demais? Sobrenaturalmente forte?
— Se você for o Lobo, vou cortar sua cabeça e mijar no buraco do pescoço.
— E eu farei o mesmo com você, se você for o Lobo. Com prazer.
— É justo.
Os dois homens se entreolharam inquisitivamente, surpresos com a trégua que estabeleceram, por mais desconfortável que fosse.
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